quinta-feira, 17 de maio de 2012

VELHICE...


Noutros tempos, era requisitado, disputado até, numa pomposa cerimónia, num funeral, numa festa, num casamento, numa comemoração solene, tanto por grandes senhores, como por ilustres damas, ou por frescas, joviais e apetitosas donzelas.

Do mais poderoso ao mais humilde, todos consideravam indispensável a sua companhia em qualquer lugar, debaixo da mais impiedosa intempérie ou sob um sol tórrido. Gabavam-lhe as vestes acetinadas, de padrões modernos, escolhidas com gosto, sempre impecavelmente vincadas. Admiravam-lhe a elegância e a firmeza do corpo, a sobriedade e recato da sua presença e do seu trato, a simpatia e disponibilidade para servir os outros.  Percebia que todos tinham até um certo orgulho em tê-lo junto deles.
Não se envaidecia por isso. A sua natureza simples e humilde, não conhecia a vaidade, nem o preconceito, nem o ódio. Pelo contrário, tinha um espírito verdadeiro democrático, era igualmente prestável e educado para com os pobres, os ricos e os remediados, fossem homens, mulheres, crianças ou jovens.

Com o passar dos anos, foi gradualmente perdendo os favores dos mais poderosos, sofrendo calado, a petulância dos novos ricos, e sentindo o desprezo daqueles a quem a vida oprimia e que não se dispunham já a dedicar-lhe a atenção a que antes o tinham habituado.
Já ninguém reparava nele, esquecendo-o como se não existisse, abandonando-o às suas memórias. Chegavam a virar-lhe a cara para não terem que suportar a sua presença, de que chegavam a sentir vergonha. Entristecia-se e amargurava-se, sem um queixume, por causa dos risos de chacota da juventude que, cruelmente, às vezes o invectivava, chamando-lhe velho, desactualizado, fora do seu tempo, quase inútil.
Como se a velhice fosse um estigma, conjecturava ele… Como se ele já não tivesse sido também jovem, bonito, adulado, moderno, como agora eram os que o enxovalhavam.
Sofria de artrose que lhe fora deformando o corpo. O vestuário antigamente elogiado e olhado com espanto e mesmo invejado por todos, estava agora amarrotado, com alguns rasgões aqui e ali, que ele procurava disfarçar com remendos toscos que almas caridosas lhe costuravam.

No hospital, pediu que o consultassem e que lhe receitassem algo para combater a doença que lhe ia paulatina e inexoravelmente entortando as articulações, e que lhe impedia os movimentos mais ligeiros, sem um ranger doloroso.
Não lhe disseram cara a cara, mas veio a saber que, no hospital, decidiram que não se justificava, do ponto de vista económico, atendendo à sua idade, e à crise que atravessamos, fazerem-lhe os dispendiosos tratamentos de que carecia. E que bem sabiam que não o curariam, apenas lhe aliviariam a doença…
Tinha sido belo quando era jovem. Agora, com as varetas enferrujadas, duas delas partidas e atadas com arames, o velho guarda-chuva jazia abandonado, forçadamente conformado, no estertor da vida, junto ao Ecoponto do hospital, à espera de ser levado para a lixeira…

Rui Felicio

12 comentários:

  1. Gaita, gaita!... Ainda bem que deste a volta ao texto, já me estava a sentir retratado!!!...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Ora,ora, Alfredo!

      Jamais me serviria de ti como modelo para retratar a velhice.
      Seria muito má escolha da minha parte, porque em vez de desenhar a velhice, estaria a fazer o retrato de um homem maduro, na força da vida...

      Eliminar
  2. O Rui é mestre na arte de encaminhar o leitor por determinado caminho e depois, como que num golpe de magia, cobrir o texto com um manto de fantasia.
    Desta vez, foi um guarda-chuva. Um prosa bem elaborada. Refinada de minúcia. Atrevo-me até a dizer, que este texto não foi feito ao correr da pena. Exigiu atenção em todos os pormenores, como quem encaixa as peças coloridas de um jogo do Lego. Porque colorido é o texto. De talento.

    ResponderEliminar
  3. Rui Felício gosta de nos deixar bem dispostos com os seus contos...
    Só por isso, desta vez, terá inventado o guarda-chuva para nos fazer sorrir.
    Se assim não fosse, teríamos aqui um texto carregado de nuvens negras, pelo seu realismo, pela sua verdade sobre a velhice e, mais ainda, sobre o estigma da velhice.
    Estigma esse que, todos nós, os que têm capacidade de o combater, recusam aceitar.
    Nem que para isso tenhamos de inventar um novo guarda-de-chuva...

    Preciso de dizer que gostei muito deste teu "linguado"? Penso que não.
    Aquele abraço.

    ResponderEliminar
  4. Só pode ser um guarda chuva do Seminário.
    Boa prosa.
    Tonito.

    ResponderEliminar
  5. Ia lendo, ia lendo e pensando com os meus botões:
    _ Ná, a história vai acabar à moda do rui Felício. Como será?!
    Prossegui a leitura e, lá surgiu um velho guarda chuva, que já nem o amola tesouras compõe!

    ResponderEliminar
  6. Caí que nem um patinho!
    Claro que caí porque li o texto sem que ainda tivesse algum comentário...e me desse a tentação para ir espreitar...
    Confesso que à medida que ia lendo o texto achava que era realista, pois não custa acreditar que esta caminhada para a velhice e numa fase mais avançada em que o apego à vida já seja "de deixar correr", se possa entrar no desleixo,no interesse de comunicar com a familia ou amigos, na resignação até de dores provocadas, como as tais artroses. Há estou certo casos destes!
    Só quando cheguei à parte final do texto...me dei conta que estava a ler uma prosa do Rui Felício!Claro, dirão alguns, Rafael isso é um sinal de velhice!
    Terão razão em assim pensar...mas recuso-me a admitir que foi por isso!
    Ai se o Rui escrevesse mais vezes, não aconteceria.Logo no primeiro parágrafo diria para comigo:como é que este safardana vai terminar a "estória"?
    Mas este texto foi o Rui no seu melhor!
    Tem direito a receber (quando nunca se saberá!)ajudas de cus(t)po a dobrar!

    ResponderEliminar
  7. A marca de água do Rui Felício cá está mais uma vez neste final inesperado.
    O estigma da velhice a todos assusta quando vão aos poucos querendo tornar-nos invisiveis como naquela outra história da vida...
    Um abraço

    ResponderEliminar
  8. Pois.Mais uma da magia do Rui.
    Consegue dizer,e escrever,uma série de coisas sérias,das que doem e deixar-nos a sorrir abertamente.
    Já nem me tenho nas varetas.
    Obrigado,Rui.
    Um abraço.

    ResponderEliminar
  9. Enganaste-me pá!!!.., por gostar de ler e pela curiosidade de saber quem era lá fui lendomas fostes formidável pelo final.
    Um abração
    Azenha

    ResponderEliminar
  10. maria helena morgadomaio 19, 2012 5:14 da tarde

    Como a Celeste, ia lendo e pensando:
    - Será um caso real ou mais uma estória à Rui Felício?!
    Inclinava-me para a segunda hipótese. Acertei! Uma forma muito bonita de tratar um problema sério, a velhice.

    ResponderEliminar