escura era a noite ...
MARIA SILVA, empurrou a porta do velho casebre, com a lenha que trazia no regaço. Nos braços magros, aconchegava as cavacas que eram a alma da fogueira. Pelas paredes da pequena cozinha, diluía - se o clarão amarelado do braseiro, que dava a cada objeto um perfil fantasmagórico. Há muito, que a noite se derramara sobre os campos. A silhueta de Maria, sentada no pequeno mocho de cortiça, confundia-se com o negrume da pedra da lareira, defumada pelo uso. O lenço preto atado na cabeça e o vestuário a condizer, eram sinónimo da ausência do marido. O Manuel, fora mineiro. Feria as entranhas da terra com uma picareta, na procura de volfrâmio. No inicio, todas as semanas regressava ao lar, calcorreando os atalhos da serra pela orvalhada ou nos dias clamorosos de calor, ao som do cantar das cigarras. Vinha trazer a féria, que era o sustento da mulher e do tenro ser, que não nascera em berço de prata. Era a vaca que pastava na planície, que fornecia o leite, para o sustento do rebento. Ao longo dos anos, o Manuel trabalhou na mina. Porém, a juventude, partira. As idas a casa, eram agora mais espaçadas. O calcorrear das mais de quatro dezenas de quilómetros entre a aldeia de Salgueiro e a Panasqueira, tornara-se um martírio. Mesmo quando vinham em grupos de sete e oito, cantando pelo caminho, na fé de se animarem uns aos outros. Um dia, o Manuel cuspiu sangue. Mas continuou a trabalhar. Era a necessidade que o empurrava para o abismo . Aquele terrível pó nos pulmões, que, em passos silenciosos, lhe destruia a alma antes de lhe consumir o corpo.
Era nisto que Maria Silva meditava, enquanto mexia o caldo na panela de ferro, lambida pela língua escarlate do fogo acolhedor. Depois levava a colher de pau à boca, saboreando o caldo de couves, aguardando, pacientemente, que a magra refeição estivesse pronta. Então, levantou-se, pesadamente. Na mesa de toalha alva e fina, colocou um prato, uma colher e um naco de pão de centeio. Num sussurro, chamou o filho, rapaz já espigado, para a refeição. Do humilde catre, o Luís levantou-se, estremunhado. Vestiu as calças e o pesado casaco para os rigores do inverno. Sorveu a sopa, cabisbaixo, e alguém bateu à porta. Pelo vozear, percebeu que eram os seus companheiros da mina, que o esperavam para a caminhada noturna, de regresso ao poço, naquele domingo soturno. Acabou a sopa em silêncio e benzeu-se. No baraço que servia de cinto das calças, atou a taleiga, com a merenda para a viagem. Na soleira da porta, beijou a mãe com ternura e partiu na peugada dos companheiros. A mina, a herança maldita, passava agora de pai para filho. Maria Silva, ficou especada na porta, num pranto surdo, até ver o seu único alento na vida desaparecer, tragado pelas sombras, na curva do caminho.
Escura era a noite, naquele gélido mês de Janeiro, do inicio da década de cinquenta.
Q.P.
Era nisto que Maria Silva meditava, enquanto mexia o caldo na panela de ferro, lambida pela língua escarlate do fogo acolhedor. Depois levava a colher de pau à boca, saboreando o caldo de couves, aguardando, pacientemente, que a magra refeição estivesse pronta. Então, levantou-se, pesadamente. Na mesa de toalha alva e fina, colocou um prato, uma colher e um naco de pão de centeio. Num sussurro, chamou o filho, rapaz já espigado, para a refeição. Do humilde catre, o Luís levantou-se, estremunhado. Vestiu as calças e o pesado casaco para os rigores do inverno. Sorveu a sopa, cabisbaixo, e alguém bateu à porta. Pelo vozear, percebeu que eram os seus companheiros da mina, que o esperavam para a caminhada noturna, de regresso ao poço, naquele domingo soturno. Acabou a sopa em silêncio e benzeu-se. No baraço que servia de cinto das calças, atou a taleiga, com a merenda para a viagem. Na soleira da porta, beijou a mãe com ternura e partiu na peugada dos companheiros. A mina, a herança maldita, passava agora de pai para filho. Maria Silva, ficou especada na porta, num pranto surdo, até ver o seu único alento na vida desaparecer, tragado pelas sombras, na curva do caminho.
Escura era a noite, naquele gélido mês de Janeiro, do inicio da década de cinquenta.
Q.P.
As minas da Panasqueira, remontam a finais do século XIX. Foram entidade empregadora de muitos homens desta região e não só. Duas firmas inglesas, sucessivamente, exploraram a mina entre 191O e 1973. Depois, a mina passou a incorporar capitais portugueses ( Beralt Tin & Wolfram Portugal SA.)
ResponderEliminarO seu período áureo, foi entre 1939 e 1945 - Grande Guerra.
Este é um conto de ficção, baseado em factos reais, que me foram transmitidos, por testemunho oral, por dois ex-mineiros de Salgueiro do Campo.
Memórias à lareira ...
Em pijama, sentado à lareira na tarde do último domingo, lia “Suite 605” de João Pedro Martins, obra muito bem fundamentada sobre os desmandos da off-shore da ilha da Madeira, tema ácido que nos revolve os fígados, quando resolvi telefonar ao Quito, para amainar por instantes a agonia daquela leitura.
ResponderEliminarPareceu-me perceber, da conversa, que ele estava a ultimar um texto sobre as minas da Panasqueira. Julgo ser este...
Mal imaginava eu a abundância de pormenores, a crueza da realidade de uma família aldeã, a dureza da sua labuta diária, a doença e a morte do pai de família e o fado, o destino, a obrigatória e exclusiva alternativa de um filho jovem que tem de se sujeitar aos riscos da mina para se sustentar a si e à mãe, seguindo as pisadas do pai em direcção a uma mais que certa morte prematura.
Que diferença entre um livro eminentemente técnico, que apesar disso vale a pena ser lido, e a teatralidade do cenário humilde de uma família beirã, pincelado da forma envolvente que caracteriza os contos do Quito!
Se o primeiro revolta e indigna, este comove e sensibiliza-nos.
Preferia, de longe, ter tido acesso a este conto na tarde do último domingo...
Na realidade, quando o Rui me ligou, eu estava a limar as arestas deste texto, que tinha escrito há dias.
ResponderEliminarGosto de escrever. É um pouco da minha terapia para a solidão. Porém, nem tudo o que vou alinhando em palavras, me dá prazer fazer. Este é um caso. O motivo é a história ser alicerçada em factos de antanho.
Hoje, neste rodopio da vida, de uma sociedade egoísta e consumista,onde um caso recente nos faz compreender a ganância doentia de quem não olha a meios para atingir fins, é saudável parar para refletir. Mesmo que a saga destes mineiros do século passado, seja vista pela sociedade como peça de museu, que fossilizou no tempo, e a quem, a tal sociedade que alimentamos, passou uma esponja por cima.
A quem este texto incomodar, peço desculpa. Recuso pensar que as pessoas são fraldas descartáveis, de usar e deitar fora. Afinal, um preocupante sinal dos nossos tempos.
Gostas de escrever e nós de ler!
ResponderEliminarSituações dolorosas descritas com uma enorme sensibilidade por quem conhece bem as agruras desta gente simples e muito sofrida!
A vida de mineiro é realmente muito dura e são textos destes que servem para sensibilizar as pessoas para os verdadeiros dramas que se passaram no passado nestas e noutras minas.
Ainda hoje se passam situações dramáticas, mas os meios técnicos de agora são infinitamente mais modernos que então, e que proporcionam uma vida de mineiro em muito melhores condições e de menos risco!
Parabéns Quito!
O comentário do Rui Felício, complementa muito bem o teu texto!
Parabéns ao Quito pelo texto que acaba de escrever.Todos nós conhecemos quão é difícil a vida dos
ResponderEliminarmineiros, seja na Panasqueira ou nas minas de carvão da valónia belga. Foi
aí que vi partir o meu amigo Camile que, apesar dos belíssimos cuidados médicos, não conseguiu resistir à dose maciça do pó que lhe cobria os
pulmões.Não o vi cuspir sangue, mas
vi-o a cambalear e aos ziguezagues pela rua, amparando-se aos carros
estacionados, tal a falta de oxigénio.Resistiu o que pôde....mas
já não conseguiu voltar pela 3ª vez
a Portugal, país que adorava.Morreu
serenamente, na cidade de Charleroi.
mariorovira
Não vou dizer muito sobre este texto, tudo o que possa dizer fica muito aquém da sua beleza e do seu valor. Tenho, no entanto, que dizer o quanto eu gostei de o ler.
ResponderEliminarPara mim, está entre os melhores, ou é mesmo o melhor texto, de todos os que já li, do Quito.
Parabéns!
O Quito mais uma vez nos brinda com um texto de enorme ternura na forma cuidada como aborda a estória e o drama duma vivência dura de enorme sacrifício por muitos de nós já esquecida.
ResponderEliminarParabéns Quito. Gostei.
Obrigado,Quito.
ResponderEliminarMais um texto com alma,para ler com a alma.
Se um dia vires o meu BI,verás a minha naturalidade:Pampilhosa da Serra!Nasci em 43,nos tempos em que se palmilhavam aquelas serras,até às minas da Panasqueira.
Que eu saiba ninguém da família o fazia,mas fomos ouvindo as histórias do dia-a-dia.
Tenho pena que a minha geração,em devido tempo,se recusasse a transmitir a realidade da vida aos putos.Não queríamos que eles soubessem que existia esse lado da vida.
Tenho uma sobrinha-neta,com 21 anos,a acabar Medicina que se farta de rir quando ouve falar de uma sardinha a dividir por três...
Um abraço.
A noite era escura e o Quito aqui nos traz toda a crueza do seu negrume.
ResponderEliminarDe forma sublime, transmite-nos a herança maldita de um povo, daquele que não nasceu em berço de prata, que herdou a escuridão e nela teve que se debater para sobreviver.
Aquilino Ribeiro não desdenharia deste texto.
Parabéns, Quito
Vida muito difícil e a dos mineiros!
ResponderEliminarAinda hoje assim é, apesar de mais cuidados, as suas vidas são todos os dias misteriosas e sempre em risco.
Nem imagino o sofrimento destas mães e mulheres...
O Quito descreve com grande sentimento, mas a realidade ainda haverá de ultrapassar!
Mais um lindo texto escrito além serras.