Sinto-me só e estou só. Entregue à minha sorte ...
Recordo o Alentejo, naquele início de tarde quente e primaveril. Um clamor de paz, derramado sob o sol intenso, que vai mordendo o dorso atarracado do velho e desgastado comboio. Pachorrento, vai deslizando sobre os carris plantados na planície, numa rota que parece não ter fim. Aqui e ali, o tilintar estridente de uma passagem – de - nível de um lugarejo. Lá fora, uma mulher avantajada e de avental, vai segurando na mão uma bandeira verde enrolada, sinal de ausência de perigo para a composição. A balançar, em ritmo compassado, prosseguimos viagem. Vou olhando pela janela, absorto com a nudez da paisagem. Naquele minúsculo compartimento sombrio, sentados frente a frente, habitamos três passageiros. Vejo um militar, vestido de verde e uma boina castanha que lhe repousa sobre os joelhos. É como me estivesse a ver ao espelho, pois também estou de verde vestido. A boina castanha – essa – tenho - a segura no ombro onde um dia me colocarão uma divisa. A divisa de furriel. Não falamos. Apenas nos olhamos nos olhos, vendo no rosto um do outro, as marcas fundas do cansaço e do desencanto. O outro passageiro é um padre. Da sotaina preta cuidadosamente limpa, dá ainda para reparar nos enormes sapatos envernizados colados ao chão da carruagem, ocupando largo espaço, como se o cura viajasse em equilíbrio instável. Vai lendo o breviário, completamente indiferente à nossa presença. Uma barba loura e rala, ocupa-lhe a face pálida, enquanto os seus lábios finos vão debitando em surdina um estranho monólogo. Presumo que está a orar. Com um apitar estridente, o comboio trespassa o coração do Alentejo. Ponho a cabeça fora da janela e vejo a pequena azáfama que vai no cais. De mala na mão, olho o branco reservatório de água que diz em letras negras e gordas, “Estremoz”. Cheguei ao meu destino. De repente, como num passe de magia, a plataforma ficou vazia de gente. O Tempo tinha sugado o presente, agora que, ao longe, vejo diluir-se na bruma do calor ondulante, a última carruagem da lenta composição. Sinto-me só e estou só. Entregue à minha sorte. Pela avenida larga, inicío a minha caminhada em direcção ao Regimento de Cavalaria. Apenas os buracos e as irregularidades no empedrado da calçada, me acordam dos meus soturnos pensamentos. Ali, na planície alentejana, vou formar batalhão, para partir para a Guiné. Estremoz é, para mim, a antecâmara da guerra. Pela porta – de – armas entrei, naquele convento escuro, adaptado às necessidades militares. Na secretaria, um sargento de rosto tisnado e magro, vai olhando a minha guia de apresentação. Ignora-me, como se eu não existisse. Surdamente, comecei a odiá-lo. No fim, foi-me dizendo em tom áspero: “ no quartel apenas dormem os soldados … sargentos e oficiais têm que arranjar alojamento lá fora”. De novo me vi sozinho naquela cidade desconhecida, de mala na mão e sem ter onde repousar do desgaste da jornada. Por indicações, fui batendo de porta em porta. Então, por uma escada estreita, subi. Apresentaram-me um quarto com três leitos. Escolhi a cama que tinha junto uma cadeira, onde podia pousar a minha mala de viagem. Reparei que não havia onde guardar a roupa, mas, exausto, aceitei. E do bolso da farda tirei o dinheiro da mensalidade, ali exigida de pronto pela proprietária, vestida de negro e olhar sinistro. Recordei então o meu pai, que no bolso da farda me tinha metido algumas notas para as “primeiras necessidades”. Agora chegado, rápido me vi espoliado de grande parte do meu magro pecúlio. Saí então para jantar. Numa taberna entrei e, sentado a um canto sobre uma toalha de oleado, comi uma frugal refeição. De novo cá fora, regressei ao quarto. Descobri que tinha companhia. Um transmontano de Vila Real, muito falador. Cedo me apercebi, ser muito dado a exercícios de narcisismo. Contava-me as proezas da recruta, onde dizia ter sido o melhor em todas as provas em que participava. Com a água do chuveiro a correr, continuava da casa – de - banho o seu monólogo. Fardado e calçado, com as mãos atrás da nuca à guisa de travesseiro, adormeci de cansaço. Acordei de manhã. O meu companheiro de quarto dormia a sono solto. Afastei a cortina da janela. Lá fora, na praça central, os feirantes e tendeiros dispunham a mercadoria para a feira que se ia realizar, na labuta pela vida. Uma mulher vestida de branco, cruzava a praça com um cesto de pão à cabeça. Por muito tempo, fiquei a olhar aquela lida, já com um cardo de saudade de Coimbra e dos meus pais, no coração. Em silêncio, deixei o quarto e rumei ao quartel. E quando de novo entrei, cabisbaixo, pela vetusta porta – de – armas, percebi que não era mais do que um simples cidadão anónimo aprisionado numa farda. Um soldado sem pátria, sem quartel e sem destino.
Q.P.
Q.P.
Já fui da tropa.
ResponderEliminarConsegui arranjar um PENEDO com muitas toneladas e foi posto em cima de toda a tropa com chefes antigos e actuais.
Estou safo.
Tonito.
Excelente,Quito.
ResponderEliminarObrigado.
Um abraço.
É um relato/recordação que nos prende na leitura até ao final, numa descrição duma passagem da tua vida militar e que antecedeu a tua partida para a Guiné!
ResponderEliminarInteressante sem dúvida num tipo de escrita que te identifica perfeitamente!
Gostei!
A recordação de um dia difícil que marcava a fronteira entre o conhecido e o desconhecido, entre a paz e a guerra, entre o amor e o desamor, descrita pela pena segura e a memória privilegiada do Quito.
ResponderEliminarClaro que gostei.
Grande abraço.
Percurso diferente, na paisagem, mas em tudo idêntico ao que o Quito nos conta, foi o que me veio de imediato à memória quando li este pungente texto.
ResponderEliminarFoi aquele sombrio dia em que, no ronceiro comboio da Linha do Oeste, senti os mesmo solavancos no corpo e na alma a caminho do C.O.M. do Convento de Mafra onde ia assentar praça, para tentarem fazer de mim oficial!.
Tarefa ingrata a deles!
Penosa para mim a nova vida para que não tinha sido criado.
O Morais ( Toneca ) acompanhava-me para o cadafalso do mesmo destino. Quase só trocámos olhares durante a viagem segurando as nossas exíguas bagagens de mão, a que nos agarrávamos como quem, através delas, se prende à vida...
Aquele foi o primeiro dia de mais de mil em que andei embrulhado numa farda verde, como rebuçado foleiro em que o celofane nunca assentou convenientemente.
"Sinto-me só e estou só. Entregue à minha sorte"!Era mesmo essa a sensação, Quito!
ResponderEliminarE, apesar de também procurar ter um "PENEDO" como o que o Tonito refere,as toneladas do mesmo não impedem que ele, de vez em quando, consiga boiar...
Abraço, Quito!
Por mais penedos com que queiramos abafar a memória, esta, como a água,encontrará sempre uma fissura por onde se esvai.
ResponderEliminarPara mais, quando, mais importante do que reactivar essa memória, que na relaidade todos desejamos eliminar, é a beleza da escrita do Quito.
Não é qualquer um que consegue descrever com tamanha verdade os sentimentos que nos apertavam o coração naquela época distante...
Afastemos a memória se isso nos constrange, deixemo-la para segundo plano,mas debrucemo-nos e deliciemo-nos com a profundidade e qualidade da escrita que se serviu dessa memória como simples leitmotiv...
Não vos confidenciei um pedaço de guerra. Apenas um pedaço de vida.
ResponderEliminarMemórias que ficam. A solidão, o desconhecido, uma carruagem dividida por três. E a surreal falta de alojamento no quartel.O oportunismo de quem se valia de quem estava em dificuldades.A refeição da noite comida numa taberna, muitas vezes sozinho, paga do meu bolso.
A filosofia da guerra, não se traduziu, naquela época, apenas em tiros e canhões. Todos temos outros pequenos - grandes pormenores que gostávamos de expulsar da nossa vida.
Para mim, em Estremoz, o que mais me impressionou, foi o oportunismo e a falta de solidariedade para com os militares, vitimas de uma guerra.
E essa, não é uma lição de guerra. É uma lição de vida.
Um abraço a todos
40 anos depois continuamos os mesmos aldrabões de sempre. Não mudámos nadinha, e se o fizémos foi para pior ...
ResponderEliminarA insónia levou-me à leitura dos comentários posteriores ao meu.
ResponderEliminarSegundo o Rui Felício, a memória não se pode abafar. Não se deve abafar, acrescento eu.
Segundo o Quito, é um pedaço de vida que nos confidencia. De forma sublime, acrescento eu.
Só me resta acrescentar que, mesmo tendo tido a sorte de não ter sido obrigado a pisar os terrenos de guerra, vivi momentos em tudo semelhantes.
É a tal fronteira de que vos falei.
E parece-me saudável falar dela, não permitindo que se transforme num vulcão em erupção...
Aquele abraço.