Mário ...
É neste gélido recanto beirão, que assisto ao tombar da tarde. As cores invernais são agora mais desmaiadas, até serem tragadas pela escuridão da noite. Uma neblina desconfortável, toma conta deste lugar. A luz mortiça dos candeeiros da estrada, parece dissolver-se nesta humidade fria que me trespassa o rosto. Sente-se o cheiro da esteva, a sair pela chaminé atarracada dos fornos. Aqui e ali, o barulho do motor de uma alfaia, que tardiamente regressa a casa. Depois é o silêncio. E no silêncio da noite, um clarão. É a entrada do Café “Portas da Serra”. Lá dentro, um chão em cimento. E dois balcões corridos. Várias garrafas de vinho e licor, preenchem as prateleiras. E um calendário do Sporting. Debruçada da parede, uma televisão, que preenche as tardes de um ou outro desempregado, que, no fundo de um copo de vinho, vê a imagem de uma vida de labuta e de frustrações. Mas também há a lareira. Em seu redor, algumas cadeiras de ferro, e uma ou duas mesas de tampo de mármore gasto pelo Tempo. E em cima das mesas, atirados sem critério, alguns jornais da região. E é ali, junto à lareira, que nestes dias de frio intenso, passo alguns momentos da minha existência. Tal como o Mário, de que um dia Vos falei. Há tempos, num final de tarde, com o frio espesso, procurámos o aconchego do lume. Foi então que iniciámos conversa. Falámos da Vida e do Destino. E eu lembrei que tudo tem um fim. Que um dia deixaria o Salgueiro do Campo, para regressar à minha Coimbra. O Mário, por momentos, ficou a esgravatar na lareira, com um pedaço de ferro, enquanto ia meditando. Depois, olhou-me olhos nos olhos e perguntou, perplexo : “ … partir!?... mas partir … porquê? …”. Disse-lhe: ” … Sim, Mário … partir … para junto da família e dos muitos amigos que lá tenho …” - acrescentei. De novo ficou a olhar o lume, pensativo. Depois ergueu a cabeça, e, em tom amistoso, questionou-me: “ … mas o senhor não gosta cá da gente … ? ”. Respondi-lhe: “ … gosto, Mário … claro que gosto !!!...”. Foi então que ele, com o esgar de um sorriso dorido, adiantou: “ … então deixe-se cá estar … não se vá embora … porque nós também gostamos de si !!! …”. Levantei-me então de supetão e deixei em cima da mesa duas moedas para pagar o meu café e o dele. Apressei o passo e entrei na farmácia. Trazia um novelo na garganta …
Q.P.
Q.P.
Vais ter que te partir ao meio... pelo menos...
ResponderEliminarEste texto tem 1 ano. Não era para ser publicado.Foi escrito no inverno passado.
ResponderEliminarPorém, o Mário faz 51 anos hoje, e, no Lar cá do Salgueiro, onde vive, foi-lhe promovida uma festa de aniversário. Um grande momento de felicidade para ele, toda a vida um infeliz.
Esta é minha prenda. E amanhã, quando encontrar, o maço de tabaco que não puderei recusar .
Parabéns, Mário ...
Parabéns, Quito...
ResponderEliminarMais um texto para ler com a alma.
ResponderEliminarObrigado,Quito.
Está a fazer um ano que me comovi com este Rei Sem Trono ( assim titulou o Quito, nessa altura, o seu conto ).
ResponderEliminarE agora de novo senti o novelo na garganta de que o Quito fala.
São estes os trilhos de que falei há dias a propósito de Caio Pagano.
Os caminhos que o Quito trilha não distinguem as gradas figuras das gentes humildes.
Este homem, o Mário, faz parte já do meu imaginário, mesmo sem o conhecer.
Porque ele é o amigo que não entende porque há-de o Quito sair de Salgueiro do Campo onde é querido de toda a gente.
Porque ele é aquele que ficou admirado quando o Quito o questionava sobre a vida e lhe respondeu de forma desarmante: Eu sou um Rei, Sr. Quito. Eu sou um Rei!
Eu não quis dizer "Sr. Quito", mas sim "Sr. Pereira", porque foi assim que o Mário o tratou perto do Natal do ano passado.
ResponderEliminarDesculpem-me o lapso, só possivel por escrever ao correr da pena sem antes me certificar das palavras exactas...
Caros Amigos, Paulo, Viana e Rui Lucas
ResponderEliminarEu já tinha feito um texto com o Mário (Crónica de um rei sem trono).
Por isso não tinha a intenção de meter este.
Mas hoje, casualmente, passei pelo Lar e vi aquela festa. Nunca tinha visto o Mário tão contente e rodeado de idosos e funcionárias do Lar. Bateram palmas e o aniversariante soprou as velas. Juntei-me à festa.
Mas sabem o que mais me impressionou?
Foi o bolo. Não era de confeitaria. Via-se que tinha sido feito na cozinha do lar. Era um bolo singelo e sem grande aparato.
O recheio não era de ovos. Era de amor e amizade desinteressada por ele.
Por isso fui ao meu arquivo procurar o texto. Era obrigatório.
Uma abraço
O meu abraço também para o Felício, que entretanto constatei que apareceu igualmente a comentar.
ResponderEliminarNem sempre comento os teus textos, mas leio-os sempre atenção e com emoção, pela simplicidade com que nos relatas a vida beirã e as pessoas que te rodeiam.
ResponderEliminarDa forma apaixonada com que sempre falas da tua Coimbra, dos teus amigos e da tua família.
Ler-te é para mim muitas vezes uma lufada de ar fresco, o voltar ás origens, é a certeza de que quando comecei a gostar de ti era eu ainda um puto e tu já um homenzinho e adorava ir a tua casa " invejar" a tua larga colecção de carinhos, não era só por eles que eu lá ia era também por ti e pela tua disponibilidade para me aturar, porque tu my friend ás "boa pessoa" e olha que não há por aí muitas.
Um abraço Maiato para Salgueiro do Campo.
Também para ti a minha saudação, Pedro.
ResponderEliminarVou partir. Já tenho 240 Km de carro no pêlo e levantei-me ás 7 da matina ...
Até amanhã, amigos ...
Pois é Quito! Também eu já pensei ir viver para Coimbra, para ao pé dos amigos, mas para já, estou decidido a ficar pela Azurva, e enquanto poder, lá vou até Coimbra quando me dá na gana. A decisão, também não foi fácil, até porque eu aqui não tenho ninguém que goste de mim, como tu tens em Salgueiro do Campo. Qualquer dia dá-me na veneta e faço-te mais uma visita, quanto mais não seja, para te baralhar os hábitos dos dias muito iguais...
ResponderEliminarÉ escusado dizer que gostei do conto.
abç
Reler os textos do Quito é sempre um encanto!
ResponderEliminarEstava a ouvir o Rui Pato na viola... e o Ataíde...cantando Zeca Afonso, quando vim ao Blog (obrigação diaria!) e li este belo texto! Só podia! Experimentem lê-lo a ouvir "os acordes" do Rui...Faz-nos bem...e essa lareira "aquece-nos" a alma! Caro amigo Quito, toma lá um abraço (sic...!!!???) e outro para o teu amigo Mário! Compra-lhe um maço de tabaco por mim.ok?
ResponderEliminarO novelo na garganta é complicado.
ResponderEliminarUm Abraço, QUITO.
Tonito.
Foi no dia 20/12/2010 que o Quito fez a postagem:
ResponderEliminarCRÓNICA DE UM REI SEM TRONO!
Entre nós, apenas o som reconfortante do crepitar da chama acolhedora. Foi então, que aquela frase fugidia me saiu involuntariamente da boca e perguntei-lhe: “… Mário … tu és feliz? …”. A pergunta pareceu surpreendê-lo. Por uns instantes, olhou-me, como que incrédulo, para depois me responder: “… eu, Senhor Pereira !?… eu sou um rei !!! …”.
Tal como naquela postagem-era quase Natal-o Quito escreve agora a propósito do aniversário do MÁRIO mais este excelente texto!
Mas este deixou-lhe marcas mais profundas...um nó na garganta!
O Senhor Pereira é amado pelas gentes de Salgueiro do Campo!
Não vai ser fácil o regresso a Coimbra!!!!
Um abraço!
Quando cá vieres também levas da minha parte um maço de tabaco para o Mário!
Gostei muito de, mais uma vez, ler os teus escritos, Quito.
ResponderEliminarUm beijinho e... ficamos à vossa espera no Alentejo.
Ontem, o Mário foi um REI com trono.
ResponderEliminarObrigado a todos pelos comentários, pela amizade e solidariedade para com ele ...
Abraços
Eu que sou de lágrima fácil...senti um nó na garanta!
ResponderEliminarMas foi bom Quito, porque esta tua narrativa só veio confirmar o que penso de ti e desse teu coração do tamanho do mundo,onde albergas tanta gente, sem nada pedires em troca e onde há sempre lugar para mais um!!!!
Gostei muito querido Amigo, e só peço que continues a postar estes teus textos tão humanos, que nos ensinam e nos limpam a alma!Beijinho.