Éolo
Todas as tardes é assim. Sentado numa varanda neste recanto
da Europa, eu olho o mar. Então, quando
o sol desce no Firmamento, vejo ao longe as traineiras, de proa apontada a
Sagres. Depois, desaparecem como por mistério, deixando um rasto de espuma, que
se dilui no verde inquieto de um mar que é pão.
De mansinho, chega o vento . O Vento Eterno de Lagos. Tenho,
com ele, uma relação de cumplicidade. Hoje, aquela aragem que fustiga de
mansinho a copa das árvores, já não me traz novas do meu país. Mas, de Eterno
que é, sussurra-me lembranças do meu passado. Da minha infância lacobrigense. E
geme de saudade.
Partimos abraçados, ao encontro de um Tempo remoto. Nas suas
asas, nas asas de Éolo, pairo sobre o cais da estação de comboios da cidade.
Quanta alegria na hora da chegada. Quanta tristeza na hora da partida.
Ela, a Lucília que tanto me amava, derramava um beijo na
minha face tenra de criança. Era um beijo molhado, como molhadas eram as
lágrimas de saudade, de quem ainda nem tinha partido. Um beijo que tinha que
durar um ano, naquele hiato de tempo em que eu regressava ao meu berço
coimbrão. Nesse período de afastamento físico, multiplicavam-se os afetos, até
à glória do regresso.
Falar do Largo do Adro, é falar do António Maluco. Falar do
Largo do Adro, é homenagear o Jorge Pacheco. Falar do Largo do Adro, é lembrar
a Henriqueta de passo ligeiro, que andava a aprender o ofício de cabeleireira.
O Jorge Pacheco, era o meu herói de infância. Como se eu
desfolhasse um livro de banda desenhada. No dia em que o pai, o António Maluco,
já não tinha forças para batalhar com o mar, foi o Jorge que garantiu o sustento
na mesa. Destemido, cavalgava as ondas na procura da sobrevivência. Tinha a
bravura dos nossos antepassados. Era um marinheiro do Infante.
Sempre foi e sempre voltou com as marés. Quer fosse verão ou
inverno. Eu, na minha inocência de criança, achava que ele tinha um segredo com
o Atlântico. Um pacto de amizade, que nunca soçobrou à fúria da suestada.
O António Maluco partiu, e já não remenda no seu quintal
acanhado, as redes do Destino. O Jorge, também. Foi apanhado à traição, pela
doença que o vitimou. Porque, olhos nos olhos, a morte não lhe fazia frente. A
Henriqueta, também partiu. Não da vida, mas para a capital, na procura de um
qualquer sonho dourado.
Agora, quando lá fora uma calma plena já desce sobre Lagos, e
as gaivotas de asa branca riscam o céu da cidade, continuo no meu posto de vigia,
a conversar em surdina com o Vento Eterno que me abraça. Quantas memórias doces,
do meu reviver algarvio, terá Éolo ainda hoje para me contar ?...
Quito Pereira
E que linda esta tua conversa com o Vento Eterno trazendo-te à memória o tua meninice e deixando-te a esperar outras "memórias doces". Quando elas chegarem não deixes de nos contar...
ResponderEliminarObrigado, amiga Ló. Do alto da cidade, tenho uma vista abrangente sobre o Atlântico. Desta sala, nada me escapa. Desde as traineiras, ao paquete luxuoso que aqui passou ontem, talvez rumo ao Funchal.Vou contabilizando memórias. Memórias doces e algumas amargas, com o desaparecimento da familiares que tanto me queriam. O Vento Eterno de Lagos, que aparece ao fim da tarde,vai preenchendo as minhas lembranças.
EliminarMais uma vez obrigado pelas tuas palavras ...
Companheiro como estas no teu posto de vigia por esses lados, quando eles chegarem, para tomar conta do pouco que resta, avisa que é para eu me defender com o porrete que comprei na candonga.
ResponderEliminarAqui é mais difícil a vigilância pois o terreno é mais acidentado.
Tonito.
Companheiro, cá vou descansando e fugindo às multidões. Desejo-te um bom fim de semana, de preferência rodeado dos nossos amigos à mesa ....
EliminarÉ pá este Éolo tem uma familia complicada comó caraças!
ResponderEliminarComo é que te foste meter com ele? Para mais a voar nas asas dele!
Mas tu lá sabes e pelos vistos sabes lidar com ele até porque te leva a revesitar todos os recantos que pisaste na tua infância nessa Cidade que adoras.
Leva-te às recoradações de pessoas que amavas como a Lucilia, ou de fuguras que jamais esqueces como oAntónio Maluco! E tinhas um herói da tua infãncia! Tudo dança na tua cabeça...
Mudando de assunto: já molhaste os pés no mar...ou foi só na banheira?
Continuai os dois a disfrutar estes dias de descanço, porque depois Salgueiro do Campo espera por vós...excepto aos fins de semana!! Aqui somos nós a requesitar-vos!
Uma abraço e um beijo!
Bem Fernando, não sendo um particular apreciador de praia, tenho feito as férias que quero e como quero. Lá por baixo, pelo Sebastião, gente é aos magotes e levei uma hora e meia para arranjar uma mesa para jantar. De resto,estou por aqui pelo meu refúgio caseiro, o que me dá muito gozo.
EliminarUm abraço
As tuas memórias, Quito, passaram pelos meus olhos como se estivesse a ver todo o filme!
ResponderEliminarAguardo um final feliz, com memórias doces só pode...
Obrigado, Celeste. Quase 6O anos a caminhar para Lagos, deixam marcas. Sou do tempo da cidade ser apenas dentro das muralhas. Hoje é uma cidade grande, bonita e harmoniosa ...
EliminarUm abraço
Que toda a tranquilidade encontres ,nestas férias, tal como ao longo desses 60 anos e cujos locais,histórias e pessoas conheces como conheces as tuas mãos.
ResponderEliminarLagos, também teve momentos muito bons para mim quando aí passava férias magníficas no Parque de Campismo da Trindade e depois, no novo,o Municipal na década de 70 com um grupo amigo aqui do nosso bairro......As tuas memórias "puxaram" as minhas. Beijinho.
Eu sei, Olinda linda, que também andaste por aqui. São as memórias que ficam ...
EliminarUm abraço
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarCom o milagre da internete, sentado bem longe do Algarve, pude estar com o Quito e ouvir as suas memórias. Sim, não li. Ouvi-as. Que lindo texto... Obrigado pela companhia.
ResponderEliminarUm abraço, Chico.Realmente a NET, é um fator de aproximação entre amigos. Quem diria,que após estes anos todos, embora virtualmente, recomeçasse uma amizade ..
EliminarBom domingo
Quito, que maneira agradavél de escreveres as tuas memórias, és realmente especial ! Beijinho e boas férias.
ResponderEliminarZequita, cá de baixo vai um abraço. Como hoje é domingo, se puderes, junta-te aos amigos, para conviver e almoçar. Não te deixes vencer pelo silêncio ...
EliminarBeijo nosso
São e Quito
Quito,
ResponderEliminarEstive dois ou três dias sem vir ao EG e pronto. Bem se queixa o Tonito que "aquilo anda a uma velocidade doida"...
Quero sentir o teu " ABRAÇO DO VENTO ETERNO ..." com calma. É tarde, cá voltarei amanhã. Já não tenho "cabedal" para fusos tardios.
Até amanhã, continuação de boas férias para ambos os dois.
Amigo Viana
ResponderEliminarHá quem se limite a ler. Apenas a rapaziada cá da nossa tertúlia, costuma vir aqui dar umas "bicadas". Eles e as moças, como diz o Tonito.
Pelo teu comentário, percebo que estás bem disposto. O que me alegra.
Toma lá um abraço
O pacto de amizade que, aos teus olhos de criança, o Jorge Pacheco tinha com o Atlântico não era mais do que a herança que lhe fora deixada e que ele próprio teria de transmitir aos seus descendentes. Por vezes o mar é cruel e traiçoeiro, quebra esse pacto, e a tragédia acontece. É a sina dos pescadores, autênticos heróis que enfrentam perigos diários para conseguir o sustento da família.
ResponderEliminarE serves-te das asas de Éolo para sobrevoar as tuas recordações, que se vão sobrepondo, como que expostas em finas camadas, memórias de uma vida rica em multifacetados sentimentos, embora sempre pautados pela rigorosa paixão pela gente simples, pelo povo do qual te sentes parte integrante.
E assim nos vais fazendo chegar nacos de vidas que, com toda a tua simplicidade, classificas de puro entretenimento de quem gosta de conversar com os amigos.
Mas é mais, muito mais do que isso. Vais somando, com a tua invulgar capacidade de saber olhar em volta de ti, pequenos quadros de vida, construindo um riquíssimo espólio da sociedade portuguesa.
Olha, toma lá um abraço.