terça-feira, 26 de agosto de 2014

PÁGINAS DE VIDA ...





Está um calor abrasador. Ontem e hoje, nem a brisa marítima refresca as ruas estreitas e medievais do centro da cidade. 

Deambulo por vielas apertadas, com esplanadas semeadas no meio de um curto espaço, que nos faz quase pedir licença para passar.

Acolá, naquele beco, matando o tempo, fala-se inglês entre copos de cerveja e garrafas de vinho. Gargalhadas e troncos vermelhos da exposição ao sol, compõem um quadro de época estival.

Meio zonzo da canícula, olho o Mercado de Escravos. Outras épocas e outros dramas. E, naquele pequeno largo, logo por detrás, o antigo Quartel dos Bombeiros.

Volto a encalhar nas memórias. Ao olhar o velho portão pintado a vermelho, juro que vi a imagem do Manuel da Glória

Estava ali, com o seu porte esguio, a camisa branca e as calças cinzentas, de onde pendia uma grossa corrente prateada. E, no extremo da corrente, um molho de chaves, que o Manuel era homem de muitas vidas. 

Quem o visse, no seu semblante brando e risonho, com a sua modéstia assumida, não diria que estava ali uma das figuras mais queridas da cidade. Foi Comandante dos Bombeiros de Lagos e, aquando do seu passamento em mil novecentos e noventa e dois, a consternação foi geral. Toda a gente gostava do Manuel da Glória. 

Conheci-o na Quinta do Sargaçal, lá para os lados do aeródromo e ficámos amigos para sempre. Uma amizade que se manteve, até ao seu desaparecimento físico.

Assim, em vinte um de agosto de dois mil e dois, com bombeiros fardados a rigor, estandartes e discursos inflamados, o Manuel teve direito a uma Rua com o seu nome na Freguesia de Santa Maria, nesta cidade de Lagos.

Ela, Dona Eduarda da Luz, descerrou a lápide. Depois chorou o companheiro de uma vida e voltou para a sua casa simples de janelas com cortinas brancas e rendilhadas, viradas para o passeio empedrado, de uma rua entre tantas ruas estreitas e singelas.

Dona Eduarda da Luz, resistiu enquanto pôde ao trucidar do Tempo. Conheci - lhe os dotes de doceira de eleição. Ainda está para nascer, quem faça os tradicionais pasteis “Dom Rodrigo”, com a competência com que ela os elaborava. Era apenas para consumo da casa e dos amigos. Mas fazia - os com prazer e com amor. Sobretudo com amor.

O correr dos anos, fez tocar a sirene. Dona Eduarda, tinha já uma idade provecta e o seu único filho, que um dia partira para o Brasil na procura de uma vida melhor, veio retribuir o amor que ela lhe tinha dado e levou-a consigo para o outro lado do Atlântico. Ela, de coração negro de tristeza, partiu com a consciência que jamais voltaria à Sua terra amada. Aos familiares lacobrigenses, escrevia cartas de saudade. 

Falava da sua inadaptabilidade à nova realidade brasileira. Perguntava pelas gentes e pela cidade da Sua vida. Depois, as cartas foram espaçando. Um dia, calou-se. Páginas de vida de um Livro que se fechou para sempre.

Ele, o Comandante Manuel da Glória, está sepultado em Lagos. Ela, a Dona Eduarda da Luz, num qualquer cemitério de São Paulo, no Brasil. Há um oceano, a separar quem tanto se amou na vida. Talvez a esperança de que se tenham reencontrado na morte.
Quito Pereira

13 comentários:

  1. Quito,

    Precisas de ir mais vezes de férias, não só por uns dias durante o ano. Através do Comandante Manuela da Glória e Dona Eduarda da Luz que conheceste bem, trazes até nós o desenrolar da vida terrena de muitas pessoas, com as suas alegrias e dissabores. Mas mais do que isso, a própria Saudade.
    Um abraço.

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    1. Chico

      Pois, férias. Aqui ficaria por mais dois ou três meses, sem me custar nada. Mas ainda tenho esperança que um dia o possa fazer. Aqui, neste ambiente calmo, no alto da cidade e com vista da cidade e do mar, entretenho-me por vezes a escrever. É um passatempo, como seria fazer "palavras cruzadas", por exemplo. Na escrita, há os escritores, uns mais conhecidos e mediáticos que outros. Os que o fazem por dever de ofício, como os jornalistas. E depois, por esse mundo fora, há milhões de amadores, como é o meu caso. Fazem-no por uma certa carolice. Um texto, só me dá prazer enquanto o elaboro. Pode levar 2O minutos a fazer ou 2 horas. Leio, corto aqui, emendo ali, e assim vou passando o tempo. Muito do que já escrevi, destruí. Por vezes, vou ao arquivo e faço um "limpeza". Normalmente, textos de carácter desportivo ou jocoso (brincadeira) deito fora.E outros. Não servem a ninguém.O blog é apenas um entretenimento e uma forma de expressar ao Fernando Rafael a minha amizade por ele. Meto os textos, sabendo de antemão que estou entre amigos que percebem que sou um completo amador. Fiz durante dois anos, uma colaboração com o Jornal do Fundão. Foi uma experiência nova. O mais agradável de tudo, foi a mensagem que a viúva de José Saramago me enviou e que me surpreendeu pelo tom informal e amistoso.Jamais vou esquecer. esse momento

      Vou continuar a colaborar com o blog. Espero que outros façam o mesmo. Isto é apenas uma forma de aproximação entre amigos e nada mais que isso.

      Um abraço.

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    2. "Isto é apenas uma forma de aproximação entre amigos e nada mais que isso"...
      Achas pouco?!
      Abre aço!

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  2. Lá vais recordando os amigos om os quais mantiveste laços de amizade e que aqui em Lagos de férias, percorrendo as ruas, becos e largos ires desfilando na memória o que depois irias passar ao papel e daqui ao computador e que num ápice chega até nós!
    É um escrever que te dá prazer e que cada vez mais te liga a esse refúgio de verão!
    Molhar os pés é que não...mesmo com o calor que dizes se faz sentir por aí!
    vais á praia...mas estás sempre a olhar para o relógio para ver se os ponteiros já chegaram à hora do almocinho! Pelo que contas os kilos vão aumentando, em vez de diminuirem!
    Cuidado que ainda vais ter que usar suspensórios, o cinto não leva assim tantos furos!!!
    Tudo bem. Boa continuação das férias para o resto dos dias que faltam.
    Então nem uma foto? A maquineta ficou na Farmácia? Ai São,São!

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    1. A São está de greve. Quer aumento de ordenado. Chega-te à frente Rafael ...

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  3. Momentos agradáveis de memórias, em prosa, para ti e para nós...
    Continuação de boas férias,menino e menina!

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    1. Obrigado, Olinda. Boas férias para ti igualmente se for caso disso....

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    1. António, um abraço. Espero e desejo que estejas bem ...

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  5. Lembranças tristes de pessoas que amaste e não esqueces. Boas férias, meus queridos amigos

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    1. Este texto vai ter ao Brasil. Familiares de Dona Eduarda e Manuel da Glória, vão avisar o filho deles para ler o E.G.. Emocionaram-se e agradeceram-me a lembrança do casal já falecido. Foi um momento de recordações à mesa do almoço. Foi gratificante para mim e ainda bem que me lembrei de elaborar esta homenagem.

      Um abraço

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  6. Como sempre, li o teu texto com agrado e alguma emoção, pois tu tens esse dom de nos sensibilizar!

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  7. Mais uns bons momentos de leitura proporcionados pelo Quito.
    Obrigado e aquele abraço.

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