Tarrafal ...
Hoje, 3O de dezembro de 2O1O, é o primeiro dia do resto da minha vida.
A manhã, acordou cinzenta. Uma neblina baça, cobre o céu da Cidade da Praia. Foi então que partimos, em duas pequenas carrinhas. Por estradas sinuosas, subindo e descendo montes e vales, vamos vislumbrando casas modestas, com roupa colorida a secar nas cordas, sacudida ao ritmo de uma brisa forte. Rumamos em direção a Assomada, povoação singela, com o seu pequeno mercado e uma rua estreita, entupida de carros, camionetas e motociclos. Nos passeios, as pessoas cruzam-se na sua azáfama, entrando e saindo das pequenas lojas de comércio, com a mercadoria exposta à entrada das portas. Seguimos viagem. A estrada é agora em terra batida. Aos solavancos e com um estranho barulho metálico na traseira da camioneta, talvez por se ter soltado o escape, passamos por uma casa invadida por ervas daninhas e ao abandono. Não é uma casa qualquer. Ali viveu Amilcar Cabral. Prosseguimos então na nossa rota. Depois de rodarmos mais uns quilómetros, do cimo de uma colina, divisamos ao longe uma povoação, de casario simples. É a vila do Tarrafal. Avançamos em cadência lenta. Ladeando a estrada, moradias de um só piso, com muitos idosos sentados nos muros, que nos vão observando em silêncio. De repente, as carrinhas viram à esquerda, num descampado, e os meus olhos esbarram de frente com uma muralha escura. Chegámos ao Campo de Morte do Tarrafal. O grupo, normalmente alegre e tagarela, recolhe-se ao silêncio. Demarco-me dos meus companheiros de viagem e dos seus rostos carregados e olhares sombrios. Quero viver aquele momento sozinho. Quero que os meus olhos me transportem para a alma, todo aquele inferno que foi transversal à minha meninice e adolescência e de que ouvia falar. Aquele antro de criminosos, um covil de matadores, uma vergonha para a Humanidade.
Por uma porta em arco, entrei. No chão, lá estavam os malditos carris, no empedrado da calçada. De um lado e de outro, enormes pavilhões gradeados. Entrado no pavilhão da direita, constatei que as paredes estavam forradas de documentos. Ofícios da PIDE, documentos internos do Campo e listas contendo nomes de vítimas do presídio. Também muitos relatos pungentes, daqueles que sofreram na carne, os horrores do seu degredo. De todos, fixo-me no depoimento de um angolano, Armando Ferreira da Conceição: “Logo à entrada, o Diretor da Cadeia, Queimado Pinto, mandou tirar a roupa toda”. “Estes terroristas, tirar a roupa toda, todo o mundo!”. “A desconfiar que trouxéssemos armas. E nisso havia pais e filhos, um dos filhos levanta-se (primeiro mandou-nos sentar no chão) e dirige-se a ele”: “Senhor Diretor, desculpe, mas aquele velho ali é meu pai, tenho o pudor e o respeito de não me despir diante dele !”. “Não quero saber, nem quero ouvir mais nada, trate de tirar a roupa!”.
Por minutos, fico a ler e a reler, toda aquela avalancha de martírios. Lá fora, o sol apareceu no seu esplendor. Porém, o vento é cada vez mais forte e assobia sobre os telhados de zinco dos pavilhões, num cantar sinistro. Também as portas abertas, em madeira maciça com grossos ferrolhos, não resistem à violência do vento e vão batendo, com estrondo, contra as paredes das casas. O capim, ressequido pela falta de chuva, vai dançando aos caprichos da brisa agreste que ruge, dando ao Campo um aspeto ainda mais lúgubre.
Junto-me então aos meus companheiros de viagem. Está na altura de prestarmos às vítimas do Tarrafal, a nossa homenagem. Ao Maestro Paulo Moniz, peço autorização para integrar o grupo. Não sabendo cantar, mantenho-me em silêncio, aos acordes de “Acordai!” de Fernando Lopes Graça. Por todo o pavilhão, ecoam as vozes dos coralistas. Porém, a meio do tema, o António Cabral, calou-se. Olhei para ele e tinha as lágrimas a correr pela cara abaixo. Também o Maestro, tal como todos nós, estava muito emocionado.
Depois, partimos. De novo percorri aquela avenida da morte em direção à saída. Tarrafal, já não fazia apenas parte do meu imaginário. Agora eu estava ali, a pisar o chão mítico das mais tortuosas lembranças. E a pedir, mentalmente, para que aquele campo se mantenha intacto, como monumento intemporal à indignidade e à perversidade. Para que não seja curta a memória dos homens.
Q.P.
A manhã, acordou cinzenta. Uma neblina baça, cobre o céu da Cidade da Praia. Foi então que partimos, em duas pequenas carrinhas. Por estradas sinuosas, subindo e descendo montes e vales, vamos vislumbrando casas modestas, com roupa colorida a secar nas cordas, sacudida ao ritmo de uma brisa forte. Rumamos em direção a Assomada, povoação singela, com o seu pequeno mercado e uma rua estreita, entupida de carros, camionetas e motociclos. Nos passeios, as pessoas cruzam-se na sua azáfama, entrando e saindo das pequenas lojas de comércio, com a mercadoria exposta à entrada das portas. Seguimos viagem. A estrada é agora em terra batida. Aos solavancos e com um estranho barulho metálico na traseira da camioneta, talvez por se ter soltado o escape, passamos por uma casa invadida por ervas daninhas e ao abandono. Não é uma casa qualquer. Ali viveu Amilcar Cabral. Prosseguimos então na nossa rota. Depois de rodarmos mais uns quilómetros, do cimo de uma colina, divisamos ao longe uma povoação, de casario simples. É a vila do Tarrafal. Avançamos em cadência lenta. Ladeando a estrada, moradias de um só piso, com muitos idosos sentados nos muros, que nos vão observando em silêncio. De repente, as carrinhas viram à esquerda, num descampado, e os meus olhos esbarram de frente com uma muralha escura. Chegámos ao Campo de Morte do Tarrafal. O grupo, normalmente alegre e tagarela, recolhe-se ao silêncio. Demarco-me dos meus companheiros de viagem e dos seus rostos carregados e olhares sombrios. Quero viver aquele momento sozinho. Quero que os meus olhos me transportem para a alma, todo aquele inferno que foi transversal à minha meninice e adolescência e de que ouvia falar. Aquele antro de criminosos, um covil de matadores, uma vergonha para a Humanidade.
Por uma porta em arco, entrei. No chão, lá estavam os malditos carris, no empedrado da calçada. De um lado e de outro, enormes pavilhões gradeados. Entrado no pavilhão da direita, constatei que as paredes estavam forradas de documentos. Ofícios da PIDE, documentos internos do Campo e listas contendo nomes de vítimas do presídio. Também muitos relatos pungentes, daqueles que sofreram na carne, os horrores do seu degredo. De todos, fixo-me no depoimento de um angolano, Armando Ferreira da Conceição: “Logo à entrada, o Diretor da Cadeia, Queimado Pinto, mandou tirar a roupa toda”. “Estes terroristas, tirar a roupa toda, todo o mundo!”. “A desconfiar que trouxéssemos armas. E nisso havia pais e filhos, um dos filhos levanta-se (primeiro mandou-nos sentar no chão) e dirige-se a ele”: “Senhor Diretor, desculpe, mas aquele velho ali é meu pai, tenho o pudor e o respeito de não me despir diante dele !”. “Não quero saber, nem quero ouvir mais nada, trate de tirar a roupa!”.
Por minutos, fico a ler e a reler, toda aquela avalancha de martírios. Lá fora, o sol apareceu no seu esplendor. Porém, o vento é cada vez mais forte e assobia sobre os telhados de zinco dos pavilhões, num cantar sinistro. Também as portas abertas, em madeira maciça com grossos ferrolhos, não resistem à violência do vento e vão batendo, com estrondo, contra as paredes das casas. O capim, ressequido pela falta de chuva, vai dançando aos caprichos da brisa agreste que ruge, dando ao Campo um aspeto ainda mais lúgubre.
Junto-me então aos meus companheiros de viagem. Está na altura de prestarmos às vítimas do Tarrafal, a nossa homenagem. Ao Maestro Paulo Moniz, peço autorização para integrar o grupo. Não sabendo cantar, mantenho-me em silêncio, aos acordes de “Acordai!” de Fernando Lopes Graça. Por todo o pavilhão, ecoam as vozes dos coralistas. Porém, a meio do tema, o António Cabral, calou-se. Olhei para ele e tinha as lágrimas a correr pela cara abaixo. Também o Maestro, tal como todos nós, estava muito emocionado.
Depois, partimos. De novo percorri aquela avenida da morte em direção à saída. Tarrafal, já não fazia apenas parte do meu imaginário. Agora eu estava ali, a pisar o chão mítico das mais tortuosas lembranças. E a pedir, mentalmente, para que aquele campo se mantenha intacto, como monumento intemporal à indignidade e à perversidade. Para que não seja curta a memória dos homens.
Q.P.
Propositadamente inóspita ( o próprio Decreto que a criou assim o estabelecia no seu preâmbulo…), a Colónia Penal de Chão Bom, fazia constar e publicitava a tortura e o sofrimento infligidos aos prisioneiros, para servirem de exemplo e amedrontar os opositores do regime que se encontravam ainda em liberdade. Para, pelo terror, lhes conter os ímpetos…
ResponderEliminarNuma fase inicial foi destinada aos opositores, maioritariamente comunistas, tendo muitos deles ali morrido vitimas da tortura e das péssimas condições sanitárias do campo.
A partir de 1961, para além desses, pela cadeia penal começaram a passar membros e lideres dos diferentes movimentos de libertação colonial da Guiné e de Angola.
Estou inteiramente de acordo com o Quito, quando pede que o Campo da Morte se mantenha preservado, para que a memória nunca o esqueça. Mau grado ser um espinho cravado na nossa História, trata-se de um local por onde muitos passaram e alguns deram a vida em prol da liberdade de que hoje desfrutamos.
Dou por mim a observar a fotografia com que o Quito ilustrou a sua crónica.
ResponderEliminarNada de mais, dirão alguns. Uma simples porta de madira com um ferrolho.
Sim,aparentemente, é uma vulgar porta, como tantas outras.
Mas só aparentemente...
Aperta-se-me o coração com o simples pormenor de ter o ferrolho do lado de fora e não por dentro.
Faz-me lembrar já o ter visto nas pocilgas dos animais.
Faz-me pensar que era com ainda menor humanidade do que a concedida aos animais, que assim que eram tratados os prisioneiros encafuados dentro da solitária à torreira do sol africano.
Esta foto, foi-me gentilmente cedida pelo Tóchico, um amigo residente na cidade da Praia e que acompanhou sempre o grupo, desde que chegámos a Cabo Verde. Foi tirada no próprio local a meu pedido, pois tinhamos ficado sem bateria na máquina. Atrás daquela porta e do lado esquerdo, existem apenas três celas húmidas e sombrias.
ResponderEliminarPara complemento de informação, dizer que a célebre "frigideira" foi demolida, havendo opiniões contraditórias quanto ao local do campo onde se encontrava. Em resumo: um desterro que fica sempre na memória de quem tem a oportunidade de o visitar.
A vila do Tarrafal, em si, é simpática. Ali almoçámos e fomos recebidos com cordialidade. Os animais a passearem pelo meio das ruas, patos, galinhas e vacas, convivendo pacificamente com pessoas e o escasso trânsito, ficam, para sempre, na retina do viajante.
Obrigado Quito.
EliminarUm Abraço.
Acordai
ResponderEliminaracordai
homens que dormis
a embalar a dor
dos silêncios vis
vinde no clamor
das almas viris
arrancar a flor
que dorme na raíz
Acordai
acordai
raios e tufões
que dormis no ar
e nas multidões
vinde incendiar
de astros e canções
as pedras do mar
o mundo e os corações
Acordai
acendei
de almas e de sóis
este mar sem cais
nem luz de faróis
e acordai depois
das lutas finais
os nossos heróis
que dormem nos covais
Acordai!
Aquilo,não devia ser tão mau.
ResponderEliminarO seu criador,ainda há pouco tempo,foi doutor "honoris causa" pela universidade lá da terra...
Essa não sabia eu!
EliminarSempre ouvi dizer que foi o homem das botas!
Afinal ele não era homem para isso!
Quem assinou aquilo?!
EliminarClaro que o botas teve a ver com tudo.Mas sempre precisou de quem assinasse com ele.
Neste caso concreto,foi o "democrata" Adriano Moreira.
"Na minha primeira prisão, levaram-me para Caxias. Fiquei indignado, tratavam-me como preso de pouca qualidade, já que os de qualidade iam directos para Peniche.
ResponderEliminarNa minha segunda prisão, já me levaram para Peniche. Não posso dizer que fiquei contente mas posso dizer que fiquei grato pelo reconhecimento da minha qualidade de preso político. E, em Peniche, quando a maré era alta e a água me entrava na cela, ia jurando que não desejava o aumento de qualidade pois, a partir daí, teria o Tarrafal por destino. Confesso que a frigideira me assustava e sabia que do campo da morte ninguém voltava. E eu queria voltar para a luta! "
In "Testemunhos" - João Coutinho Veiga.
Porra! Só no fim li que não era discurso directo!
EliminarMeu caro Quito, foi a melhor forma que encontrei para comentar o teu excelente texto sobre o Tarrafal.
ResponderEliminarJá agora, uma pequena nota:
Hoje é difícil de se localizar a famigerada "frigideira" pela simples razão que foi destruída, assim como outros materiais de tortura, logo que soaram os acordes de Abril.
Grande abraço.
Também já fiz exactamente esta viagem pelo Tarrafal, visitando em pormenor esta sinistra prisão.
ResponderEliminarTenho várias fotos e uma delas exactamente por detrás das grades de uma cela!
Merecem-me muito respeito todos quantos passaram por esta prisão!
É um tempo passado que evidentemente não pode ser esquecido!
Rui Lucas
ResponderEliminarConfirmo a afirmação de que Adriano Moreira foi Doutor "honoris causa". Foi agraciado pela Universidade do Mindelo. Soube-o, pelo jornal "Expresso", de lá.
Um artigo de página inteira, face a vozes discordantes.
Carlos Viana
De facto, foi demolida. Mas não há certezas, de onde se encontrava.
O que foi dito é que a enorme chaminé cónica, da cozinha, não era mais do que um forno crematório.Porém, esta afirmação não é completamente segura.
Abraço a ambos os dois
Também já visite esse lugar tenebroso! Tanto eu como a Daisy, mal conseguiamos falar!... Penso nem conseguimos fazer perguntas ao nosso guia.
ResponderEliminarEste texto do Quito conseguiu levar-me novamente até lá!... Também acho que é um lugar a preservar para que nunca seja esquecido!...
Visitar o Tarrafal é levar um murro no estômago!
ResponderEliminarNós sabíamos, mas...estar lá, ver as celas ´, " a frigideira", os ferrolhos, os testemunhos escritos, livra!
Mas gostei de me banhar nas quentes e límpidas águas do seu mar e de saborear uma cachupa!
O edifício do presente e do futuro também se constroi com as memórias amargas dum tempo vivido e com o respeito que nos merecem todos aqueles que souberam lutar por um mundo melhor.
ResponderEliminarNão conheço o Tarrafal mas também julgo importante a sua preservação para que quem o visite saiba que representa um tempo que ninguém jamais deseja.