quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

A LOJA DA FLORISTA ...

Quando flor rima com dor ...

Há uma paz glaciar, neste patamar de Inverno. Uma aragem fria, percorre as ruas da cidade. Um carro, sobe a avenida empedrada em marcha lenta. Corre ao ritmo da Vida, navegando pela planície adormecida, no berço da Beira – Baixa. Aqui e ali, grandes maciços de pedra granítica, agigantam-se na malha urbana, como que lembrando a sua intemporalidade, agora que o Homem, em galope atrevido, lhes discute, palmo a palmo, todas as nesgas de terra virgem. Inglória tarefa. Porque a dureza da rocha escura, é a marca de soberania de que só elas são intérpretes, neste brando caminhar do Tempo.
No meu rodopiar apressado pelas entranhas do burgo, gozo da claridade de um dia de sol desmaiado, resguardando a cara na gola do casaco, da brisa agreste que fere como navalhas. É então que entro num pequeno Centro Comercial. Já foi o melhor da cidade. Ali lançaram as suas âncoras de sobrevivência, muitos lojistas. Também gente que passava, na procura deste ou daquele produto necessário ou apetecido. Lembro a Loja dos Chocolates, o Café cheio de estudantes do liceu ali ao lado. E a Loja de Música, que debitava pelo pequeno corredor, canções festivas, naquele clamor palpitante de convívio e de ritmo.
Agora, tudo morreu. Ali, naquele lugar, que já foi um hino de esperança a todos os que ali ganhavam o seu sustento, já quase nada resta. À minha volta, tudo é sombrio. Até as luzes do teto, para poupar energia, foram reduzidas à penumbra. Morreu o Café. Morreu a Loja do Barbeiro. Morreu a Loja das Fotografias. Morreu a Loja dos Chocolates. E, da Loja de Música, já nem os acordes soturnos do “Requiem” de Mozart.
Apuro então a vista. Uma luz ténue, escorre pela vidraça da única loja aberta. É o refúgio da florista. Lá dentro, uma mulher de cara larga e pálida, sentada num banco, observa-me do fundo das suas olheiras roxas. Tem o cabelo mal cuidado e, no rosto, as marcas do sofrimento e das privações. Nas prateleiras, jazem alguns ramos de flores, para clientes que já não existem. Fixo então os olhos, num ramo de rosas vermelhas. Num ímpeto, compro o “bouquet”, pousando em cima do balcão, a nota que me pediu. Estabelecemos então diálogo. Diz-me que, se calhar, serei o seu único cliente do dia e que agora lhe é exigido ter a loja computorizada. Fala-me das suas dificuldades e da incapacidade económica para cumprir o que lhe é exigido.
Com as flores debaixo do braço, saio porta fora, compungido. Porque, naquela hora, flor não rimava com amor. Apenas rimava com dor …
Q.P.

11 comentários:

  1. "Requiem" beirão que se estende ao país que "ainda" é nosso...observação e vivência reais que nos transmites com mágoa.
    Nem as flores nos transmitem uma réstea de esperança...
    Sinto o "jazer" por todo o lado ...
    Desejo que esse ramo de flores signifique o afecto e a amizade que hão-de sobreviver à miserável vida que uns poucos nos vão impondo,dia a dia!
    Bemvindo,Quito!

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  2. Tudo para que meia dúzia de aldrabões encherem o bandulho a pagar pensões de miséria e pagarem impostos na Holanda ...

    Enfim ...

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  3. Ao ver a beleza das flores que encimam a crónica, preparei-me para ler uma descrição de alegria com elas condizente.
    Mas na vida nem tudo o que parece é. Por mais belo que seja o invólucro, dentro dele se esconderá sempre o penar quotidiano que lhe está subjacente. Porque as rosas têm espinhos.
    Espinhos tanto mais dolorosos nestes tempos que correm e que o Quito nos aponta da forma a que estamos habituados.
    À medida que ia lendo, um nó na garganta se me foi formando, como quem quer engolir e não consegue, uma comida que não lhe apraz, mas que não pode ignorar.
    Estão moribundos e perdidos os espaços de pequeno comércio que proliferaram nas cidades criando ilusórias esperanças àqueles que se empenharam para ganharem o sustento.
    Mas, mesmo assim, a gula do Estado não desiste enquanto lhes pressentir ainda o mais leve sopro de vida. Há-de sangrar os sobreviventes até os levar à exaustão. Chegando ao cúmulo de exigir-lhes a informatização das suas lojas para melhor lhes poder sacar o que têm e o que não têm.
    Sem sequer curar de saber se a venda de um único molho de flores por dia é suficiente para alimentar quem tem ainda a sua porta aberta, no estertor final, para comprar um computador, pagar a internet, a renda, os impostos…
    É o desprezo total por quem trabalha!

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  4. Talvez não fosse este o texto que estava à espera que escrevesses após o teu regresso da que foi, tenho a certeza uma viagem alegre, maravilhosa a essa ilha fantástica que é Cabo Verde!
    Mas logo tinhas que passar por Castelo Branco e entrares nesse Centro Comercial!
    O que viste tocou-te fundo na tua maneira com vives estes problemas, não só da desertificação do interior do país, mas também a falta de capacidade económica da população, seja pelo desemprego ou pelos salários baixos que recebem e que por arrasto não permitem sustentar a vida comercial desses Centros ou do comércio em geral!
    E terá sido por isso que resolveste trocar o texto que tinhas pensado escrever e que penso eu seria sobre a digressão que acabavas de fazer!
    É um texto dramático do quotidiano que se está a passar pelo país!
    Mas é preciso que o desânimo não seja a palavra de ordem que o país precisa de ouvir neste momento!
    Vão ser muito complicados os tempos que aí vêm, mas tenhamos esperança que melhores dias virão!
    Alma até Almeida!
    Um abraço!|

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  5. O Quito com a sua sensibilidade não poderia ser indiferente a este turbilhão de empobrecimento do nosso povo.

    Tudo está mais triste e cinzento e as montras das nossas cidades, aos poucos e poucos, vão-se vestindo de papel pardo colado nos vidros, enquanto alguns travestidos em grandes e entendidos senhores nos vão apontando o dedo dizendo que andámos a gastar mais do que podíamos, que temos de apertar mais o cinto, quando sem qualquer pudor vão sediando as suas empresas onde menos impostos pagam.

    São os tristes sinais deste tempo em que a compra dumas flores, tendo o sabor amargo duma esmola, podem ser o sinal de que este nosso Portugal nunca estará morto enquanto florir a esperança de que saberemos resistir e no momento oportuno dizer NÃO, NÃO QUEREMOS IR POR AÍ.

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  6. Com o texto do Quito, veio-me à lembrança um episódio que se passou na viagem que fiz à Irlanda.
    Estávamos em SLIGO, uma pequena e bonita cidade da Irlanda. Na O’Connel Street, entrámos numa loja de lãs (a “F.P. Dooney Son”) e trocámos conversa com a dona, senhora de 86 anos, branquinha, de olhinhos claros atrás dos óculos redondos, há 60 anos no negócio. Tinha dias seguidos que nada vendia, mas foi uma loja que ela e o marido, já falecido, tinham aberto ainda jovens e recém-casados, e como não pagava renda, não a queria fechar. Era a vida dela, do marido e da filha que ali estava, recordações que não podia nem queria esquecer. A filha, professora na Universidade local, em férias, ajudava-a. Fotografei a velha Senhora, de nome Sichoan, como a filha, que significa Joana em gaélico. Coincidência dos nomes, a nossa prima Joana também estava connosco, e despedimo-nos, já amigos.
    De regresso a Portugal, enviei por e-mail a foto que lhe tínhamos tirado, que a filha, de imediato, agradeceu. Cerca de um ano depois, recebo um e-mail da filha, dizendo que sua mãe tinha falecido. Escrevia-me dizendo que tinha sido desejo de sua mãe, oferecer a fotografia que lhe tirei, a todas as suas amigas e que ela, a filha, a gostaria de colocar na lápide e pedia-me autorização para o fazer.
    Foi com um nó na garganta que lhe escrevi dando, obviamente, autorização para fazer o que bem entendesse com a foto e que era uma honra para mim!
    Episódios destes tenho muitos. Mas este, estava, de certa forma, relacionado com o belo texto do Quito.

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  7. Alfredo
    O teu testemunho impressionou-me bastante.
    Por vezes, somos protagonistas de experiências, que pela sua riqueza humana e emocional, bem merecem ser compartilhadas.
    Só pelo teu testemunho, já valeu a pena o tema que introduzi no blogue, admitindo que é incómodo.
    Estórias felizes, fazem-nos bem ao ego, mas não podemos ignorar estas tragédias gregas ...à portuguesa.
    Abraço

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  8. Quito, o que tão bem nos relatas é, infelizmente, um facto do quotidiano!
    As flores ainda se mantêm?
    Sinal de esperança!

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  9. Este comentário foi removido pelo autor.

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  10. As preocupações sociais do Quito patentes, como sempre.
    A argúcia do seu olhar, da sua capacidade de observação, trazem-nos mais um texto de grande riqueza e humanismo.
    A sua forma solidária de estar na vida, bem patente na compra daquele "bouquet" de flores.
    Meu querido amigo, prepara-te para muitos outros gestos solidários. A procissão ainda vai no adro...
    Grande abraço.

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