terça-feira, 3 de janeiro de 2012

PRESÍDIO

Presídio Militar da Trafaria

Latagão, sentia-se agrilhoado dentro do casaco acabado de estrear,  que o alfaiate Sr. Melo lhe tinha feito, depois de ter virado um fato com anos de uso no corpo franzino do seu pai. Ia conhecer Lisboa finalmente! O Arnaldo embarcou, ansioso, na Estação Velha, no Flecha de Prata que o levaria à capital, pela linha do Oeste.
Depois de uma viagem de mais de sete horas, os solavancos do comboio prateado, o chiar dos rodados nas mudanças de agulha, a súbita escuridão exterior, o acender das ténues luzes das lanternas amareladas que alumiavam a carruagem ,  assinalavam a entrada no túnel percorrido em marcha lenta até desembocar na claridade da gare do Rossio. 
Sentiu as costuras do casaco darem de si, quando se esticou para recolher a mala de cartão acomodada na rede junto ao tecto da carruagem e saiu. Na plataforma, esperava-o o seu tio que morava em Algés em casa de quem iria passar uns dias.
A praça do Rossio, as ruas da baixa, a estátua de D. José no Terreiro do Paço pouco o impressionaram. Também em Coimbra já tinha visto coisas semelhantes, e até mais bonitas, na Portagem, na Praça Velha, na Praça 8 de Maio, na Rua da Sofia...
Donde ele não conseguia desprender os olhos era do mar à boca do Tejo. Já o tinha visto uma vez em Mira, quando foi para lá acampar nas férias. Aquela vastidão a perder de vista deixava-lhe sempre um nó na garganta, uma sensação de incompreensão pela lonjura que nele se escondia.
Foi num desses longos momentos de contemplação no areal da Cruz Quebrada, que se sobressaltou com um inesperado toque no ombro.

Voltou-se e deu de caras com o doce sorriso de uma rapariga de belos olhos negros que não se despegavam dos seus.
- Nunca o tinha visto por aqui, disse-lhe ela numa voz suave e triste.
- Não sou de Lisboa, estou aqui apenas alguns dias de férias, respondeu-lhe o Arnaldo.
- Veio ver o seu pai?, perguntou-lhe a rapariga. Eu venho aqui todos os dias ver o meu.
Ao ar intrigado do Arnaldo, que ali não via ninguém além deles os dois, ela explicou, apontando com o queixo para o Presídio da Trafaria, do outro lado do rio:
- O meu pai está ali. É sargento, preso político.
O Arnaldo abraçou-a com ternura.

 Só conheceu o pai dela, muitos anos mais tarde, depois da Revolução, a quem foram mostrar, quando o libertaram,  o neto já com nove anos e que nunca tinha visto o avô.

Rui Felício

16 comentários:

  1. Para inicio de 2012 um belo texto!
    Quando o comecei a ler e à medida que ía avançando,pensava: deixa lá ver como vai ser o final!
    Vislumbrei uma ou duas hipóteses...mas sinceramente, nem mesmo depois do abraço que o Arnaldo deu na moça, suspeitei que o final fosse aquele!
    Gostei comó caraças!
    Bom ínicio de Ano

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  2. E o Rui,sempre em grande forma,a dar-lhe...
    "Isso" nunca existiu,dizem alguns.
    Um abraço.

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  3. Revi o Sr. Melo, alfaiate na Rua do Infante Santo, que me fez um fato azul-marinho. Lindo!
    A memória remeteu-me para um fato "virado", herdado de meu pai, que, poucos anos antes, me tinha servido para ir ao casamento da Ilda, irmã mais velha de um grande amigo na minha adolescência.
    Recordo-me, também, da tristeza que pairava no casamento pela ausência do pai da Ilda, preso em Caxias.
    Tinha havido a esperança de uma autorização para estar presente no casamento da filha. Mas, afinal...
    A Ilda estava inconsolável e foi necessária a grande insistência da mãe para que se deixasse levar até à igreja.
    Também me lembro que a Ilda teve um filho.
    Só não sei, porque não sei mesmo, se o rapaz chegou a conhecer o avô.


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    Meu Caro Felício,
    O meu comentário, à tua moda mas sem a tua arte, tem um grande fundo de verdade.
    É uma forma de te saudar, a ti e aos teus textos...
    Grande abraço.

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  4. O Arnaldo viveu maritalmente com a linda filha do sargento preso na Trafaria, mas só se casaram anos mais tarde. Situação que sendo hoje vulgar, era mais um estigma a juntar ao do pai preso.

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  5. João Proença Adãojaneiro 04, 2012 1:06 da tarde

    Bela evocação para início de ano. Gostei de ver a menção ao sr. Melo, alfaiate que me fez mais que um fato. Estou a ve-lo, muito pequenino, nas provas que me fazia, e parece-me estar a ouvir os seus comentários ao trabalho que tinha em mãos.

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  6. Só para referir que o sr. Melo era meu vizinho da frente.
    Mas não era meu alfaiate...pela simples razão que tinha um alfaiate na familia!

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  7. Que dizer?
    Apenas uma história real,linda e triste ao mesmo tempo...
    Amigo,escrever é viver e ler também!
    Continua!

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  8. De quando em vez, o Rui vai polvilhando os seus textos com figuras conhecidas e estimadas do nosso bairro. Recordo o Arnaldo, bem como o Senhor Melo alfaiate. Parece que o estou a ver, baixinho e gordinho, com um tom afável de voz, a riscar com um pedaço de giz as baínhas dumas calças e as bandas de um casaco.
    O texto, tem a matriz do Felício, juntando a este ou aquele pormenor, uma vertente emocional.
    Deliciosa também a alusão ao "Flecha de Prata", a versão nº2 do "Foguete" que fazia o Lisboa - Porto e vice - versa. Andar no "Foguete", era uma espécie de estatuto, com que qualquer um gostava de deslumbrar os outros.
    Retive, o excelente apontamento da rede que segurava as bagagens, por cima da cabeça do viajante. Era exatamente assim !!!
    Um belo texto, neste começo de ano.
    Parabéns, Felício

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  9. bem a propósito - 3 de janeiro é uma data marcante na hitória das prisões políticas do fascismo...

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  10. No inicio de 1960, tinha eu 16 anos mas ainda me lembro bem, falava-se à boca pequena, porque as paredes tinham ouvidos, que em 03 de Janeiro desse ano tinham fugido de Peniche uns presos políticos que ali se encontravam reclusos ( Alvaro Cunhal, Jaime Serra e muitos outros...).
    E era verdade!
    E o regime nunca se recompôs dessa "afronta" acontecida na prisão de maior segurança que então existia!

    E o Lino Zé, na altura um rapazinho ainda muito novo, não se terá apercebido desse facto histórico, mas lembrou-se agora e bem.

    Porque a nossa História não pode ser esquecida...

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  11. Excelente texto!

    Também revi as tardes que passava na Praça Velha, quando o meu Pai nos mandava à Praça Velha,ao Veiga Alfaiate, o Pai do malogrado Miro!A sessao de provas era uma "seca" dos diabos e por, vezes, o tecido até picava! Se calhar por ser de lä!E como eu detesto a lä, nao era de admirar! Lembro-me que o Veiga Alfaiate me impingiu um fatinho "pied de poule", tipo xadrês em pequenino!Very British!!!

    E quando era para pagar, mandava-se "pôr na conta"!Era uma pràtica muito corrente entre comerciantes da Baixa!Eles também deviam dinheiro na CASA UMBELA!!E eu é que fazia as cobranças nas férias!!!De vez em quando, là ia buscar, 5,10,20 paus para comprar revistas de musica!!!

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  12. Neste tempo de grande desilusão e sofrimento é de enorme oportunidade lembrar aqueles que deram anos de vida, para que outros um dia pudessem saborear a liberdade e ter uma vida mais digna.
    É uma história linda de amor que à boa maneira do Felício é muito mais do que isso. Um abraço.
    Abílio

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  13. Recordo o meu vizinho alfaiate, Sr. Melo e da sua esposa, Dona Júlia.
    Pequenino, sempre a correr, com a fita métrica ao pescoço e a almofada dos alfinetes, e a obra no braço...
    Nesse tempo também a minha mãe virava as saias, os casacos e ficavam como novos!
    Sabia e gostava da costura, durante vários anos foi modista no "Último Figurino".

    Quanto à situação política da época, assim era, os pais avisavam que o que se falava em casa não se contava lá fora!

    Imagino, ou talvez não, a alegria daquele avô.

    Boa, Rui Felício!

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  14. Os "belos olhos negros" vão para «a funda São».

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