quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

BIBLIOTECA "ENCONTRO DE GERAÇÕES"-Contos da Daisy

O PAI BATEU-ME

O pai bateu-me.
A carrinha do colégio parou à porta do meu prédio. O Senhor António disse-me adeus, a sorrir. Gosto do Sr. António.
— A mãezinha está em casa, Sr.ª Eduarda?
A Sr.ª Eduarda aparece à porta da casinha dela, que é casinha de porteira.
— Não a senti sair, menino…
Subi os degraus a dois e dois. A mãe estava em casa!… Ainda bem. Tinha tantas coisas para lhe contar!… A senhora professora, no colégio, falou nela e disse coisas muito bonitas à cerca do que ela escreve… como a mãe é inteligente…
Abri a porta com a chave que a mãe me ofereceu quando eu fiz sete anos. Já era um senhor e já podia entrar em casa, mesmo que não estivesse lá ninguém. Já não precisava de ir para a casinha da Sr.ª Eduarda até a mãe chegar…
— Não batas com a porta, Zé Alexandre!
Só lhe via a cabeça, depois, eram as costas do sofá.
— Desculpe, paizinho…
Cheguei-me a ele e beijei-o na cara. A barba picou-me. E ele nem sequer me olhou.
Corri à cozinha. A mãe não estava lá. Fui ao quarto dos pais. A mãe não estava lá.
— A mãezinha não está?
— Não!
Disse-o secamente, sem desviar os olhos do jornal. Parecia zangado.
— Mas a Sr.ª Eduarda disse…
— Não interessa o que a porteira disse!
Estava zangado. Agora, eu sabia que ele estava zangado.
Sempre agarrado à pasta dos livros, fui para o meu quarto. A mãe não estava. Teria ido fazer alguma compra? Pousei a pasta em cima da cama.
Na salinha, o pai continuava a ler o jornal.
Sentei-me na sua frente, a olhá-lo.
— A mãezinha foi às compras?
— Não sei!
Porque será que o pai me mete medo? Nunca senti este receio da mãe. E, hoje, ele está zangado.
— A mãezinha demorar-se-à muito?
Ele tirou os olhos do jornal e fixou-os em mim. A barba por fazer dava-lhe aspecto de mais velho. Parecia o avô. E via-se bem que não estava contente.
Não me respondeu. Depois de me fixar, voltou a atenção para o diário e ficou assim. E eu ali, solitário. Não sabia que fazer. Mexia-me e remexia-me no "maple" inquieto por nada saber do que acontecera à mãe.
— Pára quieto, Zé Alexandre!
Fiquei na posição em que a frase me surpreendeu. Não tive coragem para mexer nem um dedo da mão. E cansei-me de respiração suspensa. Não podia mais. De mansinho, levantei-me e fui para o meu quarto.
Que teria acontecido? Eu já tinha percebido que a mãe e o pai, nos últimos tempos, discutiam muito. E se se zangaram? E se a mãe se foi embora? Não! A mãe não se ia embora sem mim. Iria? Quem era aquele homem que ia com a mãe no carro, no outro dia, quando eu e o Sr.ª António e os outros meninos, passámos por eles?
— Zé Alexandre!
Corri para a porta do meu quarto e espreitei. O pai tinha pousado o jornal e olhava para mim, muito sério.
— Sim, paizinho…
— Veste o casaco que vamos jantar fora…
O coração deu-me um pulo. Íamos ter com a mãe…
— Vamos ter com a mãezinha?…
— Não fales mais na tua mãe!
Não falar mais na mãe… Não falar mais na mãe… Não falar mais na mãe!
— Mas eu quero a mãezinha!
E o pai bateu-me.
As lágrimas de dor da bofetada, misturaram-se com as lágrimas de saudade da mãe…
E o pai bateu-me.
7 de Janeiro de 1971


Ilustração de Agustín Casillas, Escultor Espanhol de Salamanca, 

5 comentários:

  1. Mais um excelente conto da Daisy com uma excelente ilustração!

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  2. Receio bem que me torne repetitivo, mas que o seja!
    O "acre-doce" é uma constante nos contos da Daisy.
    Porque agruras da vida de uma criança são equilibradas e compensadas com a doçura própria da criança.
    Um grande beijinho, querida amiga.

    Olha, se te lembrares, diz ao Moreirinhas que lhe mando um grande abraço.
    Porque ele também tem "culpa" na matéria!
    A propósito, correndo mais uma vez o risco de me tornar repetitivo, para quando o 2º. volume dos contos da Daisy?

    .

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  3. Um pai que não sabia como explicar ao filho as razões do seu desconsolo, da sua revolta até!
    Que em vez disso, substituia as explicações pela violência.
    Que não sabia, ou achava que não devia saber, que tudo na vida tem uma explicação e que os filhos a elas todas têm direito.
    E que, com isso, intimidava e afastava de si o seu filho.

    Porque o relacionamento entre pais e filhos deve ser de aproximação, abertura, compreensão. E nunca de distanciamento e ocultação. Muito menos, acompanhadas de violência...

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  4. Os textos da Daisy, trazem sempre ao leitor sentimentos contraditórios.
    A doçura natural de uma criança, em contraponto rispidez de um pai, também ele enleado numa teia de emoções, que só não o aproximam, como cavam um fosso com o próprio filho.
    Mas há sempre subjacente aos contos, uma candura que nos é transmitida por uma linguagem simples e fluente.
    Continua a escrever Daisy. Como diz o nosso amigo comum Carlos Viana, é altura de mandar a segunda remessa de contos para o prelo ...
    Um abraço

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  5. Quantos Zés Alexandres!?
    Perdidos num labirinto de incógnitas, inseguros e perplexos perante os comportamentos dos adultos que, em princípio, os deveriam proteger e acarinhar.
    Lindo, Daisy!
    A ilustração, feliz!

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