Desde os tempos de escola que se consideravam namorados. Mas de facto só o eram de nome, porque jamais tinham trocado um beijo que fosse. Pelas festas do padroeiro São Sebastião, em Agosto, era a única altura do ano em que se encostavam de forma mais próxima no baile do pátio da Junta ao lado da igreja, ao som dos conjuntos então em voga na região de Coimbra.
A Conceição, profunda devota da Virgem Maria, frequentadora assídua da igreja das Torres do Mondego, cumpridora escrupulosa dos santos mandamentos, preservava a sua castidade, senão totalmente nos pensamentos, pelo menos nas obras, fixando o braço estendido contra o ombro do Júlio, que empurrava com firmeza quando o rapaz, ao dançar, parecia querer ultrapassar a fronteira do decoro.
E mesmo assim, o olhar crítico e atento das velhas da aldeia, impedia-os de irem longe nesse roçagar disfarçado dos corpos ao ritmo da música.
Agora, em finais de Setembro, estavam sentados um ao lado do outro, integrados num rancho de homens e mulheres que se afadigavam na desfolhada do milho ceifado dois meses antes e secado na eira da quinta do Sr. Fachada. A algazarra era enorme quando alguém desfolhava uma espiga vermelha, o milho rei, que se aprestava a dar beijos e abraços aos demais, de forma especial e mais demorada aos respectivos namorados ou namoradas.
Sentados em pequenos bancos num dos cantos da eira estavam o João França e o Ti Zé Carne Assada a tocarem concertina e tambor para animarem a dura labuta do pessoal que, numa azáfama, descamisava as espigas.
Tinha sido o dia escolhido para o Julio e a Conceição anunciarem finalmente o noivado.
Ao Julio pulava-lhe o coração desencontrado no peito arfante, rebrilhavam-lhe os olhos, naquela que era a primeira vez em que falavam já com o assentimento da família dela e por isso com um sabor diferente de antes, quando trocavam palavras só de fugida.
Mas as respostas da rapariga aos convites sussurrados pelo Julio, eram dadas com uma inflexão estranha e entoações herméticas, pouco explícitas que o deixavam desorientado.
Quando chegou o Padre João que vinha abençoar a desfolhada, a Conceição levantou-se, beijou-lhe respeitosamente a mão e pediu-lhe que intercedesse por ela para um milagre.
- Que milagre queres tu Conceição?
- Queria que o Sr. Prior pedisse ao São Sebastião a graça de eu ficar sempre virgem. Antes do casamento, durante o parto se o houver e depois dele, para eu manter a minha castidade até à eternidade.
O Júlio, tornou-se homem e é pai de três filhos. Tantos anos passados, continua a ser muito amigo da Conceição que, contudo, se mantém imaculadamente virgem.
E solteira…
Rui Felicio
Rui Felicio
Vá lá, que se mantém virgem, mas não pariu como a outra!...
ResponderEliminarA "desfolhada" e o "milho rei",como palco de uma história de amor desencontrada;
ResponderEliminarSe o final, fosse com a estafada fase "e viveram muito felizes para sempre", poderia dizer-se que este conto do Felício, obedecia ao guião de um filme dos anos 4O;
Mas não. O surreal pedido ao prior, para que fosse mensageiro das angústias da Conceição, perante o Santo devoto,dá ao conto o picante necessário que mais não é, que o condimento de um conto que se serve à mesa para satisfação de quem o leu;
Belo conto, Rui.
Abraço
em tempo: desencontrado
ResponderEliminarNossa Senhora da Conceição!
ResponderEliminarE vão 64 contos Felícios.
ResponderEliminarA cachopa foi à desfolhada, tirou as folhas...mas guardou a flor!
ResponderEliminarE onde terá guardado a maçaroca?...
EliminarBoa estória com o selo inconfundível do Rui Felício.
ResponderEliminarNem sei se tenho pena, ou melhor, efectivamente tenho pena desta casta Conceição não desfolhada que solteira e sem cumprir o mandamento bíblico, "crescei e multiplicai-vos", assim ficou.
Temos que estar agradecidos à Conceição sempre virgem.
ResponderEliminarAté nos deu um feriado...
A Conceição não percebeu que Júlio não era José, nem tão pouco carpinteiro.
ResponderEliminarJosé e carpinteiro, capaz de ser pai sem roubar a virgindade a alguém, houve só um.
E, que se saiba, esse nem conheceu as Torres do Mondego. Para sua sorte e azar da Conceição que morreu solteira mas imaculadamente virgem...
São Sebastião, com a "cunha" do padre João, lá lhe fez a vontade.
Cunha!?
Eliminarpara mim é uma denominação nova!
São diversos e muitos os pormenores deliciosos deste conto do Felício.
ResponderEliminarNão posso deixar de referir este: "roçagar disfarçado dos corpos ao ritmo da música."
Alguém, jovens da minha idade, que me pergunte porque é que escolhi este pormenor...
Porque tens "Boa Memória"
Eliminareu às vezes também sonho com isso...
EliminarLá gostar, gostei!
ResponderEliminarAgora perceber o que se passou verdadeiramente na desfolhada e na conversa com o senhor Prior das Torres do Mondego, não apanhei o fio à meada.
Mas tirei apontamentos:
Virgem
Pariu
Desfolhada
Milho rei
Nossa Senhora da Conceição
64 contos (atuliza-te, já estamos a trabalhar com euros!)
Flor
Maçaroca
Casta
Feriado
Ah! Vou procurar o Fachadas que mora aqui no Bairro e saber se está dentro do assunto!
EliminarAbençoado milho rei que entesa,dá prazer e faz filhos...mas não desfolha
ResponderEliminara espiga da Conceição...entendi,finalmente, a Virgem Maria!
Que imaginação pura e criativa tem o nosso Felício!
Temos que fazer uma desfolhada qualquer dia...
Olinda, Olinda, já lhe ouvi chamar muitos nomes mas "milho rei" é que nunca... Parece que a Conceição era boa como o milho (donda virá esta expressão?) mas que era uma espiga não desflorada lá isso era por sua vontada e de S. Sebastião.
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