Rio Mondego junto à Portela |
Desconhecia-se-lhe a genealogia, mas o seu porte altivo, raiando às vezes a sobranceria, fazia com que os camponeses se desbarretassem e se curvassem à sua passagem, cumprimentando-a reverentemente e apelidando-a de Senhora Fidalga.
Depois de lhe terem morrido os pais em anos sucessivos, vivia sozinha no enorme casarão apalaçado, fronteiro ao Mondego, antes de se chegar à Portela, rodeado pela quinta cheia de pomares, bungavilias, madressilvas e um extenso vinhedo. Solteira, com quarenta anos feitos há pouco, nunca constou que se tivesse enleado nos amores de algum namorado ou amante.
Caminhou pelo corredor, atravessou o salão de jantar, aproximou-se da gaiola pendurada junto a uma janela, meteu a mão pela frincha da grade entreaberta e pegou no minúsculo canário que afagou docemente. Repetindo uma rotina diária, falou com ele, chamou-lhe meu bijou, enfiou-o entre os seios e foi até ao varandim, ainda lambido pelos derradeiros raios de sol do crepúsculo.
Chamou o capataz que, por baixo, alinhava as ferramentas agrícolas que o pessoal lhe vinha entregando no dealbar de mais um dia de labuta no campo.
- Faça Vossa Senhoria o favor de dizer, Senhora Fidalga, respondeu o Francisco olhando para cima.
A atitude submissa do Francisco contrastava com o seu corpo possante, entroncado, musculoso, de homem jovem de trinta e poucos anos, bem parecido, o rosto tisnado pelo sol, cabelo negro de azeviche, nascido e criado na quinta onde também já tinham servido os seus pais enquanto foram vivos.
- Vem cá acima e traz uma mão cheia de aveia para dares de comer ao canário.
Passado um bocado, o Francisco bateu à porta da sala pedindo licença para entrar, trazendo na mão fechada a comida para o pássaro. Dirigiu-se à gaiola e, admirado, viu que estava vazia.
A fidalga, de olhos mortiços como ele nunca antes tinha visto, meio deitada no longo sofá, deslizou devagar a alva mão pelo veludo vermelho e macio do cadeirão e, em voz cava, disse ao Francisco:
- Anda cá, homem! O bijou está aqui!
Atónito, o Francisco viu-a abrir o generoso decote, entrevendo lá dentro as penas amareladas do pássaro que se espanejava, irrequieto, entre as fartas carnes da Senhora Fidalga.
- Estás à espera de quê, homem? Vá, traz cá a comida depressa, que o meu bijou está esfomeado.
Desde então, os camponeses que trabalhavam na quinta comentavam entre eles, à boca pequena:
- O raio do canário anda gordo! Pudera! O Sr. Francisco dá-lhe de comer várias vezes ao dia…
Rui Felício
E vai ser, neste domingo, o Conto Felício nº 63.
ResponderEliminarObrigado São Rosas. Será um prazer, senão maior, pelo menos igual ao da Senhora Fidalga e do canário.
ResponderEliminarEu, o canário, não invejo. Não há-de poder dormir descansado, o pobre diabo...
EliminarJunta-se uma fidalga de generoso decote, com um canário multicolor. Acrescenta-se um capataz peitudo, a toda a trama. Ao ingrediente explosivo, ainda adicionamos uma boa dose de picante. Pronto a servir à mesa, aí está um manjar com fino humor, dos tempos da bengala e do monóculo.
ResponderEliminarTem o carimbo e a assinatura do Rui Felício. Agora, já só falta o diligente empregado de secretaria, passar o mata - borrão em movimentos ritmados, para secar a tinta - permanente derramada neste conto. E seguir para o prelo.
Abraço Felício
A Quinta conheço-a pois passo junto dela sempre que faço a minha caminhada!A casa é apalaçada e o varadim também existe!
ResponderEliminarNada até aqui é ficção!
O resto do texto tanto pode ser ficção...como não!Vou até mais pelo "como não"
Agora que o caseiro desse comida várias vezes ao dia...aí a fartura é muita!
Até porque o caseiro tinhas outros trabalhos para fazer!
E o canário "chamaril" a certa altura já nem penas devia ter! E um "bijou sem penas é desconfortável!
Há não muito tempo passei por lá e vi que a casa. embora velha, ainda existe, como dizes. E está até valorizada com uma piscina que antigamente, à data dos factos, nem sequer existia.
EliminarPor outro lado, a quinta deve ter sido vendida a retalho, porque até ao alto da colina todos aqueles terrenos a integravam e agora estão cheios de prédios e arruamentos urbanisticos.
Então, se a quinta foi vendida ao retalho, o senhor Francisco, se não abriu uma loja de periquitos ou uma pastelaria com bijous (a sua especialidade) é capaz de estar a viver apenas do rendimento mínimo...Coitado!
EliminarPapagaio lindo
ResponderEliminarDe pena amarela,
Que consola o Chico
E a dama da Portela!
É verdade Celeste que o bicho satisfazia a dama da Portela. Mesmo sendo canário e não papagaio, o que para o caso é indiferente.
EliminarBoa malha.
ResponderEliminarTonito.
Tenho uma vaga ideia desse canário...
ResponderEliminarEscrevi, desapareceu e...transformei o canário em papagaio!
ResponderEliminarCá para mim, não era um canário. Era um bijou esfomeado...
ResponderEliminarO Sr. Francisco bem se esforçou por o engordar, digo eu...
Mais um texto com assinatura reconhecida.
Estupendo!
Aquele abraço.