sexta-feira, 22 de junho de 2012

AS PEDRAS DO CAMINHO ...


É uma taberna na esquina do Tempo ...
É uma taberna na esquina do Tempo. Passou de pais para filhos. Ali, naquele santuário de granito. Por uma rua estreita, vamos dar à capela. Pela outra, trilhamos uma estrada empedrada, delimitada por muros altos, até desaguar num largo de casas modestas, em contraste com outras de reluzentes telhados, janelas verdes e vasos floridos nas janelas. Foram feitas a pulso, com dinheiro mourejado além fronteiras.
É na venda, que se cruzam percursos de vida. O estreito balcão, é também o local de culto onde se pousam os cotovelos em meditação, desta ou daquela história contada por um conterrâneo, enquanto pequenos copos de vinho se vão alinhando à medida que a tarde se derrama pela noite e mais um freguês chega da courela, derreado dos golpes da enxada com que fere a terra dura. Ou daqueles que, desde as frias madrugadas e horas sem fim, se arrastam por montes e vales a pastorear o gado. Nas paredes, anúncios de muitas festas, pelas aldeias da região. Na parte superior dos cartazes, os artistas convidados e o destaque ao fogo – de - artifício. Normalmente, os arraiais são em honra de Santos. Também a procissão, vem apregoada. Na parte inferior da propaganda, as firmas que deram dinheiro para a festa, na ajuda do solver de compromissos aos artistas, animadores e à banda, se a houver. Naqueles papeis coloridos, que uma qualquer tipografia ofereceu, há muito de espiritualidade. São o traço de união entre as gentes de várias aldeias. Em romaria, os povos visitam-se entre si, devolvendo a cortesia de quem os visitou e deixou dinheiro na sua festa. É à volta da mesa e na” barraca de chá”, que se passa o garrafão de mão em mão, e se reparte um pedaço de frango. Dentro da pequena ermida, na penumbra, está o andor da Santa, de azul vestida. Da sua capa, pendem notas de muitos euros, que os locais e os forasteiros dão, envoltas em pedidos fervorosos e em promessas.
Mas é na taberna, à luz da lâmpada mortiça pendente do tecto, que caem sobre o   balcão escuro e tosco, fragmentos de vida. Um dia, para cumprimentar o João Morgado, entrei na venda. Era uma tarde invernosa, fria e húmida. De guarda - chuva pendurado no braço e chapéu de aba larga descaído sobre o rosto, o Rosa, sentado num banco da única mesa existente, cumprimentou-me, com uma vénia. Quis conversar e eu deixei. Percebi que queria romper aquela malha de solidão, que lhe sufocava a garganta. Enquanto sorvia um copo de vinho em pequenos tragos, falou-me do seu único filho, que um dia partiu para Lisboa. E da mulher com quem casou e a quem sempre amou, agora retida no leito por doença incurável. E chorou. Comovi-me. Depois, falei. Falámos. E ele, já em jeito de partida, acrescentou à sua desdita, como que conformado com as armadilhas do Destino: “ são as pedras do caminho meu amigo … são as pedras do caminho …”.
Quito Pereira            

15 comentários:

  1. “(…)O estreito balcão é também local de culto onde se pousam os cotovelos em meditação(…)”

    Este o mote que nos diz tudo.
    Mesmo que mais nada o Quito tivesse escrito, esta frase lapidar seria suficiente para nos dar, a traço grosso, o retrato de uma taberna de aldeia.
    A meditação é o refúgio das ideias, dos sonhos, das preocupações de que as personagens só revelam pequenas partes, guardando como num sacrário inviolável o que de essencial consideram ser só seu.

    E aqueles que, em desabafo incontido, entreabrem a porta desse sacrário, só o fazem a quem atribuem um respeito e uma consideração especiais.
    Como foi o caso do Rosa que, em sinal desse respeito e dessa consideração, sinalizados por um cumprimento e uma vénia que a educação lhe ensinou.
    E que, para abreviar razões, terminou o desabafo e as confidências, com o fatalismo que caracteriza estas gentes:
    “São as pedras do caminho!

    Toda a envolvente, todos os pormenores descritivos da aldeia, são as pinceladas em que o Quito é mestre, que dão o colorido, aprimoram e enquadram o essencial.

    E o essencial, para mim, é o mote!

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    1. O meu comentário, lá para baixo, foi publicado propositadamente em duplicado, ao contrário do que possas pensar.
      Um foi para o Quito ler. O outro foi para tu leres.
      Ambos têm o mesmo mote, como se perceberá...

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  2. Magnifico texto e lindissimo comentàrio do "nosso intelectual de serviço" o grande amigo Rui Felicio!

    Fiquei a meditar se foi a parte final que te levou a abrir uma Farmàcia!

    Todos eses teus textos jà dariam para um magnifico livro. Quando é que te lanças? Grande abraço aos 2!

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  3. A taberna é o local para os habitantes socializar... conversar,rir,chorar,jogar o dominó e lá vai mais um copo de 5...cenário que conheci em criança,em Penela,quando o meu avô me levava com ele.
    E eu gostava.Comprava-me 2 tostões de rebuçados mas eu tinha que responder sempre à pergunta que ele me fazia:Olha,diz lá onde é eu moro? Eu respondia:
    Na quelha!( ladeira)
    Todos os homens riam e eu sentia-me uma "princesa"...
    E lá vinhamos para casa para a janta.
    Também havia pedras no caminho na nossa vida à semelhança das que referes no teu texto!

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  4. Mais um texto bem arrancado! Bem português! E com muita sabedoria popular. Parabéns Quito.

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  5. Conheci algumas também.
    Santuários de conversas, e desabafos.
    Um Abraço Quito.
    Tonito.

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  6. Um retrato perfeito de muitas das tabernas que existem por esse Portugal desconhecido.
    Mais um belíssimo poema, em prosa, do Amigo Quito.
    Um abração!

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  7. Como não podia deixar de ser, apreciei como de costume mais este teu belíssimo texto!
    De uma maneira geral todos temos pedras no caminho...mas muitos têm autênticos "pedragulhos", que transformam a sua existência num autêntico calvário!

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  8. Gostei muito tanto do texto do Quito como do comentário do Rui Felício.
    Todos precisamos de uma taberna,mesmo na nossa própria casa.
    Um abraço.

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  9. Mais um protagonista salta da penumbra, pelo olhar atento do Quito e pela sua extraordinária capacidade de nos fazer ver e conhecer os mais recolhidos e escondidos cantinhos da vida.
    Desta vez, foi o Rosa o eleito.
    Outros se seguirão, estou certo.

    À margem deste conto e podendo parecer pouco a propósito dele:
    Este ano é ano de Festas da Cidade. Coimbra também verá pelas tasquinhas, cafés e outros pequenos estabelecimentos, o cartaz das Festas da Cidade e da Rainha Santa. Também por lá aparecerão os artistas, o fogo de artificio, a Santa...
    As diferenças não são muitas. Também, por aqui, encontraremos os nossos "Rosas" cansados das pedras do caminho.
    Assim houvesse quem os tirasse do anonimato...
    E, mais uma vez, parecendo pouco a propósito, este ano também é ano de Prémio Literário Miguel Torga. Sei que o júri já atribuiu o Prémio que será entregue durante as Festas.
    Também sei, mais uma vez a despropósito..., que o Prémio voltará a ser atribuído daqui por dois anos.

    Toma lá um abraço.

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  10. Mais um protagonista salta da penumbra, pelo olhar atento do Quito e pela sua extraordinária capacidade de nos fazer ver e conhecer os mais recolhidos e escondidos cantinhos da vida.
    Desta vez, foi o Rosa o eleito.
    Outros se seguirão, estou certo.

    À margem deste conto e podendo parecer pouco a propósito dele:
    Este ano é ano de Festas da Cidade. Coimbra também verá pelas tasquinhas, cafés e outros pequenos estabelecimentos, o cartaz das Festas da Cidade e da Rainha Santa. Também por lá aparecerão os artistas, o fogo de artificio, a Santa...
    As diferenças não são muitas. Também, por aqui, encontraremos os nossos "Rosas" cansados das pedras do caminho.
    Assim houvesse quem os tirasse do anonimato...
    E, mais uma vez, parecendo pouco a propósito, este ano também é ano de Prémio Literário Miguel Torga. Sei que o júri já atribuiu o Prémio que será entregue durante as Festas.
    Também sei, mais uma vez a despropósito..., que o Prémio voltará a ser atribuído daqui por dois anos.

    Toma lá um abraço.

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  11. Aposto que vai aparecer um engraçadinho a dizer que estou gago.
    Paciência, é o risco de me por para aqui a dedilhar em horas impróprias...

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  12. Um abraço, Viana. Hoje lembrei-me de ti, porque estive a almoçar no Norton, em amena cavaqueira com mais uns compinchas do nosso Bairro. Um franguinho frito e duas jarras de tinto ...
    Pois, é ano de Rainha Santa e de Prémio Torga. A Santa vai descer à cidade e o laureado com prémio literário, subirá à galeria dos predestinados da escrita. Que o júri decida bem, é o meu desejo ...
    Toma lá outro abraço

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    1. Ainda me sentei a jogar às damas e dominó contigo e com o avô Filipe umas vezes. Muitas vezes estes estabelecimentos acumulavam funções, além de tasca eram também mercearia e retrosaria. É património bem português que se perde, pela raiz de todos os males (e por aqui me fico) ...

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