É uma taberna na esquina do Tempo ...
É uma taberna na esquina do Tempo. Passou de pais para
filhos. Ali, naquele santuário de granito. Por uma rua estreita, vamos dar à
capela. Pela outra, trilhamos uma estrada empedrada, delimitada por muros
altos, até desaguar num largo de casas modestas, em contraste com outras de
reluzentes telhados, janelas verdes e vasos floridos nas janelas. Foram feitas
a pulso, com dinheiro mourejado além fronteiras.
É na venda, que se cruzam percursos de vida. O estreito
balcão, é também o local de culto onde se pousam os cotovelos em meditação,
desta ou daquela história contada por um conterrâneo, enquanto pequenos copos
de vinho se vão alinhando à medida que a tarde se derrama pela noite e mais um
freguês chega da courela, derreado dos golpes da enxada com que fere a terra
dura. Ou daqueles que, desde as frias madrugadas e horas sem fim, se arrastam
por montes e vales a pastorear o gado. Nas paredes, anúncios de muitas festas,
pelas aldeias da região. Na parte superior dos cartazes, os artistas convidados
e o destaque ao fogo – de - artifício. Normalmente, os arraiais são em honra de
Santos. Também a procissão, vem apregoada. Na parte inferior da propaganda, as
firmas que deram dinheiro para a festa, na ajuda do solver de compromissos aos
artistas, animadores e à banda, se a houver. Naqueles papeis coloridos, que uma
qualquer tipografia ofereceu, há muito de espiritualidade. São o traço de união
entre as gentes de várias aldeias. Em romaria, os povos visitam-se entre si,
devolvendo a cortesia de quem os visitou e deixou dinheiro na sua festa. É à
volta da mesa e na” barraca de chá”, que se passa o garrafão de mão em mão, e
se reparte um pedaço de frango. Dentro da pequena ermida, na penumbra, está o
andor da Santa, de azul vestida. Da sua capa, pendem notas de muitos euros, que
os locais e os forasteiros dão, envoltas em pedidos fervorosos e em promessas.
Mas é na taberna, à luz da lâmpada mortiça pendente do tecto,
que caem sobre o balcão escuro e tosco,
fragmentos de vida. Um dia, para cumprimentar o João Morgado, entrei na venda.
Era uma tarde invernosa, fria e húmida. De guarda - chuva pendurado no braço e
chapéu de aba larga descaído sobre o rosto, o Rosa, sentado num banco da única
mesa existente, cumprimentou-me, com uma vénia. Quis conversar e eu deixei.
Percebi que queria romper aquela malha de solidão, que lhe sufocava a garganta.
Enquanto sorvia um copo de vinho em pequenos tragos, falou-me do seu único
filho, que um dia partiu para Lisboa. E da mulher com quem casou e a quem
sempre amou, agora retida no leito por doença incurável. E chorou. Comovi-me.
Depois, falei. Falámos. E ele, já em jeito de partida, acrescentou à sua
desdita, como que conformado com as armadilhas do Destino: “ são as pedras do
caminho meu amigo … são as pedras do caminho …”.
Quito Pereira
“(…)O estreito balcão é também local de culto onde se pousam os cotovelos em meditação(…)”
ResponderEliminarEste o mote que nos diz tudo.
Mesmo que mais nada o Quito tivesse escrito, esta frase lapidar seria suficiente para nos dar, a traço grosso, o retrato de uma taberna de aldeia.
A meditação é o refúgio das ideias, dos sonhos, das preocupações de que as personagens só revelam pequenas partes, guardando como num sacrário inviolável o que de essencial consideram ser só seu.
E aqueles que, em desabafo incontido, entreabrem a porta desse sacrário, só o fazem a quem atribuem um respeito e uma consideração especiais.
Como foi o caso do Rosa que, em sinal desse respeito e dessa consideração, sinalizados por um cumprimento e uma vénia que a educação lhe ensinou.
E que, para abreviar razões, terminou o desabafo e as confidências, com o fatalismo que caracteriza estas gentes:
“São as pedras do caminho!
“
Toda a envolvente, todos os pormenores descritivos da aldeia, são as pinceladas em que o Quito é mestre, que dão o colorido, aprimoram e enquadram o essencial.
E o essencial, para mim, é o mote!
Bravo!
EliminarO meu comentário, lá para baixo, foi publicado propositadamente em duplicado, ao contrário do que possas pensar.
EliminarUm foi para o Quito ler. O outro foi para tu leres.
Ambos têm o mesmo mote, como se perceberá...
Magnifico texto e lindissimo comentàrio do "nosso intelectual de serviço" o grande amigo Rui Felicio!
ResponderEliminarFiquei a meditar se foi a parte final que te levou a abrir uma Farmàcia!
Todos eses teus textos jà dariam para um magnifico livro. Quando é que te lanças? Grande abraço aos 2!
A taberna é o local para os habitantes socializar... conversar,rir,chorar,jogar o dominó e lá vai mais um copo de 5...cenário que conheci em criança,em Penela,quando o meu avô me levava com ele.
ResponderEliminarE eu gostava.Comprava-me 2 tostões de rebuçados mas eu tinha que responder sempre à pergunta que ele me fazia:Olha,diz lá onde é eu moro? Eu respondia:
Na quelha!( ladeira)
Todos os homens riam e eu sentia-me uma "princesa"...
E lá vinhamos para casa para a janta.
Também havia pedras no caminho na nossa vida à semelhança das que referes no teu texto!
Mais um texto bem arrancado! Bem português! E com muita sabedoria popular. Parabéns Quito.
ResponderEliminarConheci algumas também.
ResponderEliminarSantuários de conversas, e desabafos.
Um Abraço Quito.
Tonito.
Um retrato perfeito de muitas das tabernas que existem por esse Portugal desconhecido.
ResponderEliminarMais um belíssimo poema, em prosa, do Amigo Quito.
Um abração!
Como não podia deixar de ser, apreciei como de costume mais este teu belíssimo texto!
ResponderEliminarDe uma maneira geral todos temos pedras no caminho...mas muitos têm autênticos "pedragulhos", que transformam a sua existência num autêntico calvário!
Gostei muito tanto do texto do Quito como do comentário do Rui Felício.
ResponderEliminarTodos precisamos de uma taberna,mesmo na nossa própria casa.
Um abraço.
Mais um protagonista salta da penumbra, pelo olhar atento do Quito e pela sua extraordinária capacidade de nos fazer ver e conhecer os mais recolhidos e escondidos cantinhos da vida.
ResponderEliminarDesta vez, foi o Rosa o eleito.
Outros se seguirão, estou certo.
À margem deste conto e podendo parecer pouco a propósito dele:
Este ano é ano de Festas da Cidade. Coimbra também verá pelas tasquinhas, cafés e outros pequenos estabelecimentos, o cartaz das Festas da Cidade e da Rainha Santa. Também por lá aparecerão os artistas, o fogo de artificio, a Santa...
As diferenças não são muitas. Também, por aqui, encontraremos os nossos "Rosas" cansados das pedras do caminho.
Assim houvesse quem os tirasse do anonimato...
E, mais uma vez, parecendo pouco a propósito, este ano também é ano de Prémio Literário Miguel Torga. Sei que o júri já atribuiu o Prémio que será entregue durante as Festas.
Também sei, mais uma vez a despropósito..., que o Prémio voltará a ser atribuído daqui por dois anos.
Toma lá um abraço.
Mais um protagonista salta da penumbra, pelo olhar atento do Quito e pela sua extraordinária capacidade de nos fazer ver e conhecer os mais recolhidos e escondidos cantinhos da vida.
ResponderEliminarDesta vez, foi o Rosa o eleito.
Outros se seguirão, estou certo.
À margem deste conto e podendo parecer pouco a propósito dele:
Este ano é ano de Festas da Cidade. Coimbra também verá pelas tasquinhas, cafés e outros pequenos estabelecimentos, o cartaz das Festas da Cidade e da Rainha Santa. Também por lá aparecerão os artistas, o fogo de artificio, a Santa...
As diferenças não são muitas. Também, por aqui, encontraremos os nossos "Rosas" cansados das pedras do caminho.
Assim houvesse quem os tirasse do anonimato...
E, mais uma vez, parecendo pouco a propósito, este ano também é ano de Prémio Literário Miguel Torga. Sei que o júri já atribuiu o Prémio que será entregue durante as Festas.
Também sei, mais uma vez a despropósito..., que o Prémio voltará a ser atribuído daqui por dois anos.
Toma lá um abraço.
Aposto que vai aparecer um engraçadinho a dizer que estou gago.
ResponderEliminarPaciência, é o risco de me por para aqui a dedilhar em horas impróprias...
Um abraço, Viana. Hoje lembrei-me de ti, porque estive a almoçar no Norton, em amena cavaqueira com mais uns compinchas do nosso Bairro. Um franguinho frito e duas jarras de tinto ...
ResponderEliminarPois, é ano de Rainha Santa e de Prémio Torga. A Santa vai descer à cidade e o laureado com prémio literário, subirá à galeria dos predestinados da escrita. Que o júri decida bem, é o meu desejo ...
Toma lá outro abraço
Ainda me sentei a jogar às damas e dominó contigo e com o avô Filipe umas vezes. Muitas vezes estes estabelecimentos acumulavam funções, além de tasca eram também mercearia e retrosaria. É património bem português que se perde, pela raiz de todos os males (e por aqui me fico) ...
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