sexta-feira, 29 de junho de 2012

O CESÁRIO ...


As ruínas da fábrica de conservas de peixe de Lagos ...
Recordo a rua estreita, neste meu cirandar pelas vielas do passado. Lá ao fundo, ao fundo da rua, um arco. Do lado de lá do arco, uma estátua. Do lado de lá da estátua, o mar. Sentado, de semblante altivo no seu chapéu de aba larga, o Infante. Deu novos mundos ao mundo – dizem. Mas é pelo empedrado da rua estreita, que me vagueia a memória. Lembro as casas humildes, com gaiolas de canários coloridos a chilrear ao sol algarvio. E aquele gato gordo e pachorrento, que me olha com uma curiosidade expectante. Por entre as cortinas da janela, vou olhando o interior sombrio da habitação modesta. Vejo uma Ceia de Cristo, pendurada na parede. E muitas fotografias em cima de uma cristaleira, cuidadosamente conservada. Os retratos, não são mais que certificados de dias felizes. Naquela moldura dourada, os noivos. Ela, vestida de branco, com um ramo de flores cor – de - rosa, que lhe enfeita as mãos acetinadas e finas. Ele, de fato preto, laço a roçar o queixo largo. E o cabelo farto, alisado com brilhantina. Os padrinhos, sorridentes, ladeiam os noivos, comungando daquele momento solene.
Mas tudo passou. Lá dentro, lá dentro da casa, já só vislumbro o velho Cesário sentado à mesa, com aquela sua tosse irritante. É tosse de fumador. Do cigarro, o inseparável amigo de uma vida inteira. É o único companheiro que tem, para além da mulher que, envolta num xaile negro, vai procurando ouvir no empedrado da rua, os passos de uma vizinha a quem possa chamar, para dois dedos de conversa. Talvez falar do Renato, que chegou a casa a horas tardias. Ou da Amália, que pediu um saco de arroz fiado na mercearia da Alice. Da rua, de cotovelos a repousar no parapeito da janela, chamo pelo Cesário. Conheço-o há muitos anos. É então que ele, com aquele sorriso envergonhado que sempre lhe conheci, me diz para aguardar. Segundos depois, está junto de mim, naquela rua estreita que vai desaguar ao mar. Tem vestido um casaco de sarja azul, desbotado pelo Tempo. É a roupa que usava, quando trabalhava horas a fio na fábrica das conservas de peixe. Da fábrica, agora, já só restam as ruínas. Mas o Tempo, ainda não lhe estrangulou as lembranças. Das boas e das más. Mais más que boas, esclarece, enquanto vai, pacientemente, enrolando a mortalha do cigarro. E o Tempo, também não lhe aniquilou a dignidade. Vai navegando ao sabor da Vida e das marés, com aquela maldita tosse que não o larga. E as dores de estômago que vai aliviando com a água cristalina que vai bebendo, duma velha e milagrosa fonte de Espiche …
Quito Pereira

6 comentários:

  1. O mal é a tosse.
    Obrigado Quito pela prosa.
    Tonito.

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  2. A qualidade. A qualidade de quem sabe escrever, tricotando as palavras em "napron" do mais fino recorte.
    Há imagens e frases que ao lê-las, como num filme, vamos penetrando naquela sala, naquele ambiente em que as fotografias são certificados de dias felizes...Gostei. Um abraço.

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  3. E é assim que o Cesário sai do anonimato, transformando-se em mais uma figura representativa do povo, do mais humilde, que é aquele que o Quito mais gosta de nos mostrar.
    Ao desbotado casaco de sarja azul, soma-se a memória da fábrica da qual já sobram as ruínas. São os malefícios do Tempo...

    Toma lá um abraço.

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  4. Como numa missão a que a si próprio se impôs, o Quito não desiste de nos mostrar o Nobre Povo de que fala o Hino. Nobreza que não trouxe a estes homens e mulheres a riqueza material que produziram e de que outros se aproveitaram.

    Cesário, depois de trabalhar horas a fio na fábrica durante uma vida inteira, sobrevive agora com o cigarro, a mulher, as lembranças espalhadas pela cómoda ao lado da Última Ceia, vestido com o casaco de sarja desbotada como se ainda estivesse pronto para voltar à fábrica que caiu em ruinas.

    Só isto lhe sobrou de uma vida de trabalho?
    Não! Sobrou-lhe a dignidade que o tempo não lhe aniquilou, segundo diz o Quito.
    E sobrou-lhe a nobreza, acrescento eu.

    A mesma nobreza que o Quito também tem, quando escreve sobre estes homens, para nos lembrar que existem. Para que, no nosso distanciamento e egoismo, os não esqueçamos…

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  5. Este texto do Quito, escrito em pouco mais de uma folha A4, é um texto enorme!
    Está ali tudo! O passado feliz e com algumas amarguras; O passado recente, com o fecho e abandono da fábrica; O presente, muito bem descrito e o futuro que se adivinha!... Está lá tudo!

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  6. E a tua ligação a Lagos mais uma vez proporcionou um belo texto!
    Desta vez todo um percurso de um velho amigo até aos dias de hoje, lembrando o percurso, que não sendo muito risonho, talvez tivesse sido menos doloroso que os dias que agora está passando.Vai sofrendo e recordando...pouco mais poderá fazer!

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