Ali permaneci há quarenta anos atrás, enclausurado sem culpa
formada nem indiciação de qualquer crime, durante seis meses, na sua ala
militar. Foi preciso que passasse tanto tempo para ouvir pela primeira vez
os seus famosos carrilhões.
Da boca emborcada dos sinos pareciam golfar silfos fátuos
que rodopiavam em catadupa, como espíritos inspiradores dos artistas,
modelando as nuvens com as suas vibrações, transformando-as em figuras
fantasmagóricas ao sabor da imaginação de quem assistia ao concerto de
carrilhões que ontem à tarde, domingo, decorreu em Mafra.
Em turbilhão, passei em revista, mentalmente, muito daquilo
que a imponência do edifício já me fazia pensar quando lá estive na juventude.
Quantos milhares de operários tiveram que dar o seu trabalho quase escravo e
alguns a sua vida, para fazer nascer e crescer uma obra pretensamente grandiosa
para simples prazer e pura vaidade do monarca que quis, com a riqueza arrebanhada
no Brasil e em África, imitar, à escala nacional, Luis XIV e o Palácio de
Versalhes?
Era impossível não imaginar Blimunda e o Sete-Sóis de que
Saramago viria a falar anos mais tarde no seu romance Memorial do Convento.
Quase receando que Blimunda me lesse os pensamentos, como era sua arte, se ali
estivesse. Quase imaginando o Sete-Sóis a ser executado pela Inquisição por
crime que não cometera.
E os silfos em frenéticas correrias, cabriolando em
concêntricas sonoridades, invadiam-me o cérebro, incentivavam-me a testemunhar
a injustiça da riqueza e do poder, exercida sobre aqueles que ajudam a criar uma e a sustentar o outro, mal
se alimentando das migalhas da mesa farta dos seus algozes.
Poderá dizer-se que é tempo passado. Que não volta!
Infelizmente, não estou seguro disso…
Rui Felicio
É com a inquietação pelo futuro, que pela mão do escritor, viajamos pelo passado. Pelo seu passado. Afinal, o mesmo Tempo de penumbra por que muitos de nós nos arrastámos. Mas nem todos conseguem exprimir as inquietações da alma, como o autor o faz. Como ponto de partida, o austero Convento de Mafra, um bizarro capricho de D.João V, a que não é estranha a vertente religiosa da época. É olhando o Templo, ouvindo os seus carrilhões que ecoam pelos corredores da construção barroca e pelos campos que se espraiam até mar, que um ex-combatente faz as suas reflexões. Remete-nos para o passado bem distante, trazendo à liça todos aqueles que, sofrida e anonimamente, ergueram e foram o motor da vaidade, da riqueza e da opulência de outros. Oportuna a divagação pelas páginas do Nobel Saramago ...
ResponderEliminarUm texto de grande qualidade. E eu, humilde leitor, que um dia e por terras distantes de África, também expiei crimes que não cometi, cerro os olhos de braço dado com o autor, combatente que foi como eu...
Contigo, em silêncio, oiço os carrilhões de Mafra. Contigo, interrogo-me, por quem é que os sinos dobram ...
Os carrilhões ao som dos quais também tu sofreste, não foram os de Mafra, mas no aspecto em que os referes vibram todos da mesma maneira.
EliminarO teu olhar sobre o Convento de Mafra cruzado com o olhar de Saramago... Tu porque a isso foste obrigado e sem estímulo para "sentir" a sua história...Saramago livremente escreveu o notável Memorial do Convento(que adorei ler e reler)...
ResponderEliminarQue os carrilhões toquem "Esperança" por melhores dias para todos os "Sete-Sóis" que aprisionados estão pela ausência de justiça social...e mais não digo.
Notável,Rui.
ResponderEliminarEu,que do Convento só lembrava coisas amargas,esqueci tudo.
Só me lembro,muitos anos depois,do livro de Saramago.
Infelizmente nunca tive oportunidade de ouvir a sonoridade dos carrilhões.
Obrigado.
Vale a pena lá ir. A um domingo à tarde...
EliminarNeste calhau passei 3 meses num pelotão disciplinar...traumatizou-me a ponto de nunca lá ter voltado...
ResponderEliminarDepois de ler esta crónica vou repensar o meu preconceito.
Obrigado Rui
repensa mesmo, aquilo é uma maravilha, num contexto geográfico que talvez seja o melhor de Portugal (afirmação arriscada e perigosa. que o diga Miguel Torga, em "Portugal").
EliminarPassei lá muito mal, sobretudo a nível de injustiças (que até passaram por uma pena de prisão; ... , comutada!). Mas, passei lá muito do bom da minha vida. Enfim, vivi lá. Exerci profissão alé da de militar. E vivi lá o 25 de Abril; até à hora em que os soldados não me deixaram passar para o Quartel da Carregueira (local da comutação, para ir tomar o meu lugar nessa noita.
Limpa os olhos e volta lá.
Rui barreiros.
E eu que andei de quartel para quartel até descobrir um, bem pertinho da minha casa, onde estive inscrito 9 meses (sem sequer dar à luz).Na Rua da Guiné, a minha Maezinha, receando que apanhasse alguns dias de prisao, ao ver-me deitado até às 11 da matina, abria cuidadosamente a porta do quarto dizendo: "Quando é que vais ao Quartel? Qualquer dia vêm cà buscar-te, filho"!!
ResponderEliminarUma dia, fardado e com o cabelo bastante crescido, cruzei o Comandante que, virando-se para o sentinela, à porta, perguntou "Quem é este individuo? "
O sentinela embaraçado respondeu "Nao conheço, meu Comandante"!!!!
O meu trajeto foi: CALDAS, VENDAS NOVAS, COIMBRA, AMADORA e LUSO (ANGOLA)!!
O meu curriculo: Furriel VagoMestre no 1° ano e Musico no 2° ano!Devo ter sido dos poucos Musicos a fazer Guerra!!!!Tinha Guitarra e G3 !!!
Também nunca ouvi os carrilhões.
ResponderEliminarQue posso dizer deste teu texto, Rui?
Claro que gostei muito e como não sou nada dado a ler livros, tomei conhecimento das passagens do livro da Saramago!
Refinaste na riqueza do texto de que é exemplo o penúltimo parágrafo! parágrafo!
Amigo Rafael, não transcrevi passagens do livro de Saramago.
EliminarApenas referi duas personagens que o romance Memorial do Convento contém: Blimunda e Baltasar Sete-Sóis.
Já agora aproveito para explicar a razão de tão estranho nome. Explicação essa dada pelo próprio Saramago ao Jornal das Letras em 1990.
Saramago queria um nome estranho e raro porque a personagem que criou era ela também estranha e rara. Porque sabia ler o íntimo das pessoas...
Ainda segundo próprio autor, tal personagem só poderia ter um nome estranho e raro. Escolheu Blimunda porque, disse, não existiria outro nome mais estranho e mais raro, tanto no séc. XVIII em que se passa a trama, como mesmo nos dias de hoje.
Disse ainda Saramago, que a musicalidade do nome Blimunda não a detectou ele nunca. Mas veio a dela ter conhecimento quando em Milão foi criada uma ópera com esse nome a partir do romance Memorial do Convento.
A estranheza dos carrilhões a tocar e a sua patente musicalidade conglomeram as caracteristicas da figura Blimunda.
Foi por isso que eu quis referir no meu texto o seu nome.
E foi também por causa de Blimunda ter o dom de ler o íntimo de cada um, que eu escrevi no meu texto:
"Quase receando que Blimunda me lesse os pensamentos, como era sua arte, se ali estivesse."
Rui obrigado pela explicação!
EliminarAs coisas que eu aprendo!
ainda sobre Blimunda...escreveu Saramago:
Eliminar"...vejo o que está dentro dos corpos, e às vezes o que está no interior da terra, vejo o que está por baixo da pele, e às vezes mesmo por baixo das roupas, mas só vejo quando estou em jejum, perco o dom quando muda o quarto da lua, mas volta logo a seguir..." era assim Blimunda Sete-Luas.
Obrigado Abilio. É isso mesmo. Blimunda a estranha e rara figura, como Saramago lhe chamou, está por ti perfeitamente identificada em poucas palavras.
EliminarPor isso Saramago lhe chamou Blimunda Sete Luas e ao Baltasar, por contraposição lhe chamou Sete Sóis.
" Quantos milhares de operários tiveram que dar o seu trabalho quase escravo e alguns a sua vida, para fazer nascer e crescer uma obra pretensamente grandiosa para simples prazer e pura vaidade do monarca que quis, com a riqueza arrebanhada no Brasil e em África, imitar, à escala nacional, Luis XIV e o Palácio de Versalhes? " - pergunta Rui Felício.
ResponderEliminarSerá interessante ver que o "prazer e pura vaidade" é também a "simples" forma de D.João V comemorar o nascimento de uma real herdeira do trono.
Retirado da net:
"A fundação deste mosteiro de frades arrábidos deveu-se a uma promessa feita por D. João V, caso a rainha fosse bem sucedida na conceção de um filho que tardava. Este promessa cumpriu-se em 1711, ano em que nasceu a princesa Maria Bárbara, a primogénita da descendência do Magnânimo."
Perante isto, salvaguardas as dimensões dos Reinos, podemos dizer que Luis XIV foi modesto na "sua obra de marca", ao construir o Palácio de Versalhes!
Mas muito mais do que esta referência histórica, em duas penadas, é-nos mostrado o aproveitamento, feito pelo Estado Novo, das grandiosas instalações, transformando-as em quartel, ponto de concentração para a partida para a guerra colonial.
Foram muito milhares de jovens que, nos anos 60, foram "enclausurados sem culpa formada nem indiciação de qualquer crime"...
Ainda sobrou tempo para o autor fazer uma passagem pelo "Memorial".
A mim já não me resta outro tempo que não seja o estritamente necessário para lhe mandar um agradecido abraço, pela sua excelente memória e por me fazer ouvir o concerto de carrilhões que nunca tinha tido a oportunidade de ouvir.
As limitações próprias de um texto para blog, que terá de ser sucinto, obrigaram-me a deixar de lado referências históricas importantes, em benefício do destaque da ideia principal que era minha intenção valorizar.
EliminarE que consistiu no relato dos sentimentos que me assaltaram ao ouvir os sons dos carrilhões a serem tocados por músicos extraordinários.
Considero, por isso, como complemento oportuno e essencial, este magnífico comentário do Carlos Viana.
A quem agradeço!
Nao contem com o Passos Coelho para mandar construir alguma obra de valôr no caso de PORTUGAL ganhar o campeonato da Europa!!!!!
ResponderEliminarEstàdios? Nao, dao prejuizo e alguns estao jà à venda !!Uma Catedral? para quê? Hà cada vez menos pessoas a irem à Missa! Um Museu do Futebol Português seria uma otima ideia, nao acham?
Ao vivo nunca ouvi.
ResponderEliminarNunca é tarde.
Tonito.
Aqui encontrei há alguns anos, exercendo a sua função de Juiz, o nosso amigo Alvito que foi meu colega de curso e que morou na Rua de Moçambique.
ResponderEliminarNo fim do julgamento, fez questão de me convidar a ir jantar a casa dele para recordarmos os velhos tempos.
Tive o cuidado de só aceitar o convite depois de ele proferir a sentença, por uma questão deontológica e apenas por isso. Porque eu sabia que o Alvito não deixaria de decidir da forma que achasse justa, independentemente da nossa relação de amizade.
Foi colocado na Relação de Lisboa e soube da sua morte ocorrida pouco tempo depois...
Pelo Convento de Mafra muitos de nós por lá passaram.
Pelo Tribunal, alguns, como foi o caso do Alvito e, fiquei agora a saber, do Rui Barreiros...
Da última vez que passei por Mafra foi apressadamente, nem revisitei o Convento, foi pena.
ResponderEliminarEste belo e bem elaborado texto do Rui Felício, transportou-nos pela mão das criações de Saramago para o encanto dos anjos e para a incompreensão de tão megalómana obra ter sido a prisão de muitos milhares de operários escravizados que não compreendiam o porquê da existência daquilo que, com suor e lágrimas iam construindo, não compreendendo o porquê e para quê.
A mesma interrogação surgiu nos anos recentes da nossa juventude àqueles que, agrilhoados a uma farda, se interrogavam do porquê e para quê que ali estavam, perdendo a sua juventude na antecâmara da partida incerta para terras desconhecidas e distantes.
A melodia dos carrilhões acompanhou o pensamento do Rui Felício fazendo-o navegar no tempo e, ainda bem que possibilitou esta reflexão como tão bem sabe fazer.
Visitei o Mosteiro de Mafra nos meus tempos de liceu, creio que em viagem de estudo.
ResponderEliminarLembro-me da dimensão e pasmada com tantos e tantos quartos e salas!
Hoje, fiquei impressionada pelos relatos de quem lá passou por motivos de injustas penalizações.