Que porta é esta, que ora me seduz, ora me afasta? . Assim se
interroga Francisco Silva Amaro, poeta e escritor, nascido em Juncal do Campo.
Um dia, ofereceu-nos um pequeno livro de versos, prosa e pensamentos. No seu
interior, uma dedicatória, datada de Dezembro de dois mil e seis. E que pequena
aldeia é esta, neste interior profundo, que fabricou alguns poetas entre os
seus mais diletos filhos, pergunto eu?. Na vertigem deste mundo contemporâneo,
dou comigo por vezes a pensar, até que ponto a minha tentativa de dignificar e
dar a conhecer estes nossos compatriotas anónimos, não é mais do que lançar a
semente numa terra estéril. Todas as noites, ficamos presos a uma televisão,
que vai debitando poucas verdades, meias - verdades e muitas mentiras,
manipuladas por jogos de conveniências que estrangulam a informação e nos são
oferecidas numa bandeja de subserviências. Diz Francisco Silva, num dos seus
pensamentos, que “ a televisão é o mais selvagem dos animais domésticos”.
Partilho deste meditar, vestido em roupagens de lamento e de desencanto.
Mas vale a pena ler uma pequena parte do prefácio deste
pequeno livro. Margarida Gil dos Reis escreve: “ … não será assim por acaso que
a porta que “ora me seduz, ora me afasta”, tenha sido o símbolo escolhido para
dar o mote a este livro. Sendo, simbolicamente, um lugar de passagem entre dois
mundos, entre o conhecido e o desconhecido, entre a luz e a escuridão, mais do
que simbolizar uma passagem, a porta convida a atravessá - la. É o convite à
viagem pelos dois mundos que habitamos: o mundo interior e o mundo exterior.
Essa fronteira pode ser assim a porta para a “aldeia globalizada”, para “o país
imenso/naufragado”, mas também para o próprio individuo, para a sua ligação com
a terra, com o calor, a chuva ou o céu. Silva Amaro, capta uma escala cromática
de sensações e sentimentos modulados pela consciência dos limites e da
fronteira. Não talvez por acaso, pela presença de um tempo que se insurge
permanentemente – o tempo físico, o tempo psicológico, o tempo das vivências –
lembrei-me de Samuel Beckett e da sua tragicomédia “À Espera de Godot”, onde se
diz: “ Encontramos sempre qualquer coisa para nos dar a impressão de que
existimos”. Com esta fórmula se resume a permanente busca humana daquilo que
Silva Amaro define como “ (n) o instante que fica”.
Mas, não queria despedir-me dos amigos que ainda vão
partilhando das minhas divagações, sem Vos oferecer esta pequena prosa - poesia
do autor, reveladora da sua sensibilidade:
“ Lembras-te ainda daquele tempo sem horas? a nossa
existência era só saber estarmos ali eu sabia porque os teus olhos eram
concretos e porque era quente o teu corpo o teu aroma a tua pele a certeza
concreta de ser eras tu vertical e rectilínea intensa e viva sóbria e austera
respirei-te assim feminina e doce intensamente a neve caía esfarrapada e tu
vinhas lá de longe como a neve e tornavas a ir e eu vinha também por dentro dos
teus olhos era um contínuo vaivém eu sei de farrapos emaranhados no vento dos
cabelos libertos e presos entre os teus braços eu esvoaçava e tu nos meus como
a neve que se agarrava na ramagem e ficava assim quieta e mole a gozar o
panorama daí a pouco era já seiva a escorrer pelo tronco que o vento lambia por
todos os lados mas voltava de novo a neve lá de longe e sempre à carga até ao
esgotamento como nós até à felicidade dum campo coberto de branco na virgindade
da nossa existência calma mas segura porque os teus olhos eram concretos e eu
estava neles em ti meu amor”.
Quito Pereira
Já me sinto melhor.
ResponderEliminarRespiro com facilidade.
Tonito.
António, fizeste-me rir com vontade. Um comentário destes, nem um engenheiro hidráulico ...
EliminarLouvo, naturalmente, a ideia do Quito de dar a conhecer autores que vivem e escrevem sobre o ambiente beirão, nas mesmas terras por onde ele também anda. Como Juncal do Campo, Alpedrinha, Castelo Branco…
ResponderEliminarNão é a primeira vez que o faz. Desta vez, fala de Francisco da Silva Amaro, poeta para muitos desconhecido, mas não tanto assim na região onde nasceu e vive. O prefácio de “A Porta”, feito por Margarida Gil dos Reis, beirã e estudiosa das letras, ajuda-nos a compreender as razões do seu conteúdo. O texto de Francisco da Silva Amaro, criteriosamente escolhido pelo Quito, aguça-nos o apetite de conhecer a sua obra.
Repito: louvo a ideia do Quito!
Mas fica-me um amargo de boca quando neste post não encontrei, como esperava, mais uma crónica da autoria do Quito.
Porque é a sua escrita que me desperta os sentidos, que me comove, que me faz ler e reler para guardar como pensamentos lapidares algumas expressões que sempre contêm os seus escritos.
Nem sempre, meu caro Felício, é possível trazer até este espaço, retratos de vida. Porque procuro ser fiel e não transmitir experiências de vida ficcionadas. Por vezes, num estalar de dedos, eis que aparece um protagonista. Normalmente, vidas sofridas. Que respeito. E é ao correr da pena que, grosseiramente, vou alinhando as palavras, para que a prosa saia fiel. Pelo respeito de quem me lê. Pelo respeito de quem me abre o coração. É o caso do Rosa que, meio trôpego, se curvava sobre a bengala e ao balcão da venda, me confidenciava os seus martírios. Mas hoje, o protagonista, já cá não está. Partiu, para sempre. Mas ficou um texto, que, no seu final, lhe honrará a memória. É também o caso do pescador Florival, com quem um dia me meti mar adentro e a quem, em 2OO8, prestei homenagem. Relembrarei o texto. E,em dias já passados, recordei o António Maluco. Gente do mar. Lembrei Lagos que, naquela época, timidamente, se ia libertando do seu colete de forças - a escura e antiga muralha que lhe travava o passo, quando a cidade era apenas uma amálgama de ruas singelas de casario branco, com as artes de pesca a secar junto aos muros.Vou escrevendo ao sabor das marés. E, na Beira Baixa, vou penetrando pelas vielas das aldeias esquecidas e escuras, contemplando os poentes incendiados de fim de tarde. Quantos mais Rosas encontrarei, sentados nos degraus de granito, das portas do desencanto ?
EliminarAbraço
Desta vez resolveste escrever sobre um poeta/escritor de Juncal do Campo-Francisco Silva Amaro- e tal como escreves "dou comigo por vezes a pensar, até que ponto a minha tentativa de dignificar e dar a conhecer estes nossos compatriotas anónimos, não é mais do que lançar a semente numa terra estéril"...não te arrependas de o fazer, pois o teu contributo de os dar a conhecer não será assim semente caída em terra estéril.Deste teu texto muitos ou talvez alguns que por aqui passem vão reter este nome de poeta/escritor, de que nos proporcionas a leitura de alguns enxertos da sua prosa!
ResponderEliminarGostei de ler bem como, estou certo, os que vão partilhando das tuas divagações...
Um abraço!
Pois, Rafael. Longe dos grandes centros, as pequenas aldeias esquecidas, por vezes, guardam os seus "tesouros". Vive-se hoje, a um ritmo mediático,mas, na penumbra, existem pessoas ou factos curiosos que não são conhecidos e que são "engolidos" por uma sociedade indiferente.
EliminarO Juncal do Campo - como outras aldeias haverá por esse Portugal - tem o seu valor. Porque tem sabido preservar o seu espólio cultural. E eu, apenas me limito a dar a conhecer um pouco do seu património, por mais modesto que seja. No caso do texto em apreço, face ao prefácio de Margarida Gil, não custa concluir que este poeta e escritor beirão, merece atenção.
Abraço
Nenhuma terra,por mais estéril que seja,deixa por tratar uma boa semente.
ResponderEliminarObrigado,Quito.
Toma lá um abraço,Rui Lucas. Há algum tempo que não "falava" contigo ! Não te chateies com os "dramas" da Seleção. Em breve, terás o Sol da Póvoa à tua espera. Gostei do pensamento que aqui trouxeste. Sábio ...
ResponderEliminarToma lá outro abraço
Um abraço,Quito.
EliminarCom as tuas citações oportunas me deste a conhecer duas personagens que não conhecia...
ResponderEliminarE a cultura também resulta desta troca de partilhas.
Bem-hajas!
Um abraço, Olinda. Há sempre um Portugal desconhecido ...
ResponderEliminarFrancisco Silva Amaro, poeta e escritor, nascido em Juncal do Campo, diz:
ResponderEliminar"a televisão é o mais selvagem dos animais domésticos”.
Quito Pereira, escritor que faz poesia, diz:
"Partilho deste meditar, vestido em roupagens de lamento e de desencanto" e logo acrescenta:
"Todas as noites, ficamos presos a uma televisão, que vai debitando poucas verdades, meias - verdades e muitas mentiras, manipuladas por jogos de conveniências que estrangulam a informação e nos são oferecidas numa bandeja de subserviências."
Um óptimo diálogo entre escritores-poetas, um nascido, outro vivido, em terras áridas em que só a boa semente dá fruto.
Mas dá!
Toma lá mais um abraço.
Nesta tertúlia, a prosa - poesia de Silva Amaro, parecia não colher a simpatia de quem já foi júri do Prémio Miguel Torga. Enganei-me. A tua cadeira vazia, trazia-me alguma preocupação. Talvez eu tivesse avaliado mal as capacidades do Juncalense, quando me embrenhei pela sua escrita pouco convencional.
ResponderEliminarObrigado por teres dado a tua opinião, sobre este cidadão anónimo. O agradecimento é extensivo, naturalmente, a todos os quiseram colaborar neste espaço ...
Um abraço, Viana
É bom termos escritores e poetas, por vezes ignorados, mas que o Quito descobre e nos transmite!
ResponderEliminarAbraço, Celeste Maria ...
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