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Escrever é um acto solitário. Muitos, milhões,
escolhem a solidão da noite ou a quietude dos locais mais recônditos do planeta
para, de uma forma modesta e anónima, ou com reconhecida capacidade de
comunicação que lhes granjeiam os aplausos de todo o mundo, fazer viajar o leitor
interessado, por realidades muitas vezes dolorosas e até incomodas aos olhos de
alguns, nesta roleta da fortuna e do azar, em que se está a transformar com
contornos cada vez mais definidos, esta aventura de viver. E a escrita, para
muitos, é também uma forma de se confrontarem consigo próprios, exorcizando
medos, dúvidas e até angústias. E porque tenho, de facto, a convicção de que
escrever é um acto solitário, que me lembrei do nosso Nobel da Literatura, José
Saramago e da ilha que habitou – Lanzarote. E é do fascínio que a pequena Ilha
Canária causou em mim, que me faz partilhar convosco um pouco das minhas
impressões daquele mar de lava e solidão. Ao recordar Lanzarote, a palavra
mágica que me acode ao pensamento é Timanfaya. Estranho e brando nome para um vulcão que, no
auge da sua ira, sepultou aldeias inteiras e os seus aterrorizados habitantes.
Agora, já só resta a paisagem descarnada a perder de vista e as formas caprichosas
com que a lava solidificada se apresenta aos olhos do viajante. Para os que
apreciam e também para aqueles a quem os vulcões exercem o seu sinistro
fascínio, é a arte da mãe-natureza no seu esplendor. Por uma estrada estreita e
ziguezagueante, vamos subindo até ao topo da cratera. É mais de uma dezena de
quilómetros em carrocel. E é quando afundamos pelas apertadas gargantas, em que
apenas se tem o céu por horizonte, que sentimos um estranho desconforto, no
meio daquela paisagem negra e calcinada, e damos connosco a pensar na
fragilidade da nossa condição humana. No cume, a cratera lá está. E também um
restaurante, sabiamente construído por César Manrique, e que não é mais do que
o prolongamento da paisagem agreste que nos seca a vista. César Manrique era
natural da ilha. Foi arquitecto, pintor e escultor de mérito e a sua obra
encontra-se profusamente espalhada pela ilha, que assim o imortaliza e lhe
confere um estatuto quase divino. Dez metros abaixo de nós, a temperatura é de
seiscentos graus centígrados, que o mesmo é dizer, caminhamos em cima do
inferno. Mais tarde é o regresso ao hotel na zona de praias de areia negra da
ilha. E à noite, quando o céu se tinge de negro e vislumbramos as luzes
mortiças da bela enseada da costa Teguise, damos conta dos ventos que ali
habitam. São os quentes ventos alísios, que, roçando a copa das palmeiras,
produzem uma estranha e soturna
sinfonia. Temos então a sensação, que ali coabitam, em estreita cumplicidade,
Hefesto e Éolo, e que este lugar de solidão será, quiçá, o sítio ideal para se
verter sobre uma folha de papel, as inquietações da alma e a busca incessante
da Verdade. E será olhando o mar revolto e tendo como companhia o vento sussurrante
que assola a ilha e o lúgubre negro da paisagem que por vezes mais parece lunar,
que Saramago edificou o seu mundo, deu azo às suas perplexidades e ganhou, pela
sua escrita brilhante, por vezes hermética, um lugar entre os eleitos na arte
de partilhar com o leitor, o fio condutor do seu pensamento. De semear dúvidas
e colher convicções. De nos fazer transportar nas asas de Morfeu, ou descer ao demoníaco
ventre de Vulcano, onde habita o fogo eterno.
Enquanto lá fora, na noite misteriosa
e quente de Lanzarote, vamos assistindo por entre a folhagem exuberante dos
palmeirais, à dança constante e intemporal do vento uivante.
Quito Pereira
Obrigado Quito.
ResponderEliminarTonito.
Um bom texto que me deu a oportunidade de conhecer melhor a Ilha de Lanzarote, não só pela descrição do Quito, mas também porque me despertou um pouco mais de curiosidade sobre o vulcão Timanfaya e o que hoje representa, depois da tragédia que provocou, para o turismo!
ResponderEliminarMuito bem Quito! Ainda nao conheço Lanzarote! Percorri a Gran Canária...numa "visita de estudo"... com passagem de Ano em Las Palmas...em Dezembro de 1993! As Canárias também são fascinantes e...num dia pode-se percorrer toda a Ilha...pois só tem 254 kms de perímetro...!
ResponderEliminarReconhecendo que escrever é um acto solitário, é-o na sua raiz.
ResponderEliminarO escritor isola-se a si próprio, concentra o centro do mundo em volta da sua escrita, solta o pensamento para o registar para todo o sempre.
E esse registo chegará, tarde ou cedo, aos olhos, ao conhecimento e reconhecimento de alguém. E, aqui, acaba a solidão do escritor, estabelecida que fica a permuta com o leitor. Permuta, digo bem, porque um comunica o outro recebe a mensagem.
Bem vistas as coisas, ler é também um acto solitário.
Como eu gosto dessa solidão!
E como eu gosto de ler o que escreves, meu querido amigo!
Toma lá um abraço.
Pela mão do Quito revisitei Lanzarote onde tinha estado em 1980.
ResponderEliminarDe novo, o restaurante que naquele ano ainda não existia. Nem as pisadas de Saramago, que só anos mais tarde ali escolheu viver até à morte. Como se fosse mais um vulcão entre vulcóes.
Obrigado por me fazeres recordar uma paisagem agreste que contrasta com o cosmopolitismo de Las Palmas ou Tenerife.
O quito traz-nos mais umas das suas recordações dos lugares que visitou e o fascinaram.
ResponderEliminarGostei de conhecer!