sexta-feira, 31 de maio de 2013

A NOITE PODE ESPERAR ...



Encostado à porta da venda, olha-me como um animal acossado. Depois fixa os olhos no chão e atira-me como que envergonhado:

- Senhor Pereira … leva-me consigo ?

 - Sim,  Carlos … vem ….
Senta-se a meu lado e por minutos é o silêncio. Vai olhando a paisagem meditabundo. Pelo canto do olho, revisto as suas longas barbas maltratadas, o cabelo num desalinho, os lábios amarelos do tabaco. Enquanto vou conduzindo, lembro a primeira vez que falámos. Recordou-me o seu passado vago. Do presente não falou. Simplesmente porque não existe. Passado e presente, partiram de mãos dadas. Diluíram-se no ocaso de uma vida que persiste em resistir. Ele, o Carlos, vai deambulando por entre vales e montanhas, procurando na berma da estrada, horas a fio, pelo transporte que o leve a parte incerta. Vive sem horas e sem regras. Come do que lhe dão, quando lhe dão. A doença mina-lhe o corpo e são longas as estadias no hospital.
Curva e contra - curva, seguimos viagem. De repente, olha-me de um jeito expressivo e remata:
- Senhor Pereira … sou seu amigo …

- És, Carlos ?! …  obrigado …
- Sim … o senhor dá - me boleias … não tem vergonha de mim …

- Porque havia de ter vergonha de ti, Carlos ?! – remato, perplexo com a súbita confissão …
Diz – me:

- Muitos têm … fingem que não me veem … é triste a vida dos pobres …
Depois, cala-se. Curva e contra – curva. Ao longe, alcandorada na encosta de um morro, já se divisa o casario branco da aldeia singela. Chegamos. Com uma vénia, agradece o transporte e diz-me:
- Quer tomar uma bebida? ... pago eu …
- Não Carlos, obrigado … olha, toma lá uma moeda para a ajuda dos cigarros…

Da entrada do Café “Portas da Serra”, repete:
-  Senhor Pereira … sou muito seu amigo …

Hoje - dezasseis de Maio – uma patrulha da Guarda Republicana visitou a aldeia. Procura o paradeiro do Carlos, que desapareceu sem deixar rasto. A mãe, a morar num povoado minúsculo aninhado no fundo de um vale, está amargurada. Mas não é a primeira vez que acontece. Em muitas ocasiões dorme ao relento, nos bancos de uma qualquer paragem do autocarro.
Agora, que a tarde já acusa as sombras da noite, o Carlos ainda não apareceu em casa. Andará por aí, algures na planície, vagueando sem destino. E ela, a mãe, viúva de negro vestida, sentada num tropeço de cortiça e o coração num sobressalto, aguarda expectante o barulho metálico da fechadura da porta. Mas sabe, com o seu apurado sentido maternal, que a noite pode esperar …
Quito Pereira            

11 comentários:

  1. Por sugestão do nosso amigo Paulo Moura, fica a indicação de que este texto veio à estampa na última edição do Jornal do Fundão ...

    Fica assim o Paulo "desobrigado" de o repetir, para os amigos que habitualmente passam por este espaço. Seria exaustivo.

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  2. A amizade sem preconceito está espelhado no teu relato...
    A exclusão é um fenómeno "useiro" e frequente! E porquê?
    Todos o sabemos "ai que chato","ai que sujo","ai que é maluco","ai internem-no" e o rol não acabaria.
    Nas aldeias a situação é mais amena e acaba por ser um igual embora diferente!
    E o Amor de mãe esse não "o segrega"antes aconchega-o e vive em constante ansiedade!
    As estruturas diurnas que os ocupem dignamente, essas é que são escassas, neste nosso Portugal,onde as prioridades não são as Pessoas mas todos sabemos quais são...
    Infelizmente não é apenas um grave problema de Portugal.
    Actual,real e emocionante o teu texto,Quito.

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  3. Gostei deste testo do Quito que se lê com interesse e nos fala de factos reais, pois há imensos por este mundo fora. Mostra-nos que o pobre tamém tem cabeça e sabe avaliar, além de que o amor de Mãe é idêntico em todas as camadas da sociedade. Sem bem que uma pessoa pense nos desprotegidos, um texto destes é muito útil pois reaviva-nos a memória.

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  4. Excelente texto não só pela pela já habitual maneira de escrever do Quito, que aprecio muito, mas pelo conteúdo que narra a infeliz vida deste seu amigo, e pela triste sorte de uma mãe que espera pelo regresso do filho, que desaparecido, que com o seu instinto maternal sabe que voltará...Mas terá que esperar!

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  5. Criou a figura do João Semana, mil vezes transposta para o teatro, para o cinema, para a rádio, para televisão...
    Personagem central das Pupilas do Senhor Reitor, o seu ideal de ajudar os mais necessitados esteve sempre subjacente nos outros romances, embora sob formas diversas e diferentes personagens.
    É esse ideal, essa forma de ser, que encontro em Quito Pereira, tal como existiu em Julio Dinis.

    Mas não se fica por aqui esta analogia quando lemos “A Noite Pode Esperar...”.

    Outras há:

    O ambiente rural de pobreza, o preconceito cruel, a segregação, a que se contrapõe a estranha dignidade dos condenados pela vida, encontram-se nos contos de Quito Pereira e, marcadamente, neste também, escrito em momento de rara inspiração, dado à estampa no Jornal do Fundão, tal como se encontram também nos contos publicados por Julio Dinis em jornal do Porto e reunidos mais tarde nos seus Serões da Provincia.

    O ideal de respeito e de ajuda ao próximo é o mesmo.
    A qualidade literária é idêntica.
    A forma de divulgação, semelhante.

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    Falta apenas uma colectânea e o seu titulo para compilar a .já vasta obra de Quito Pereira.
    .

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    1. Subscrevo por inteiro o que o Rui Felício escreveu.
      Avança Quito.
      Um abraço

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    2. Pois é...
      Só falta ultrapassar uma barreira: a excessiva modéstia do Quito.

      Neste texto ressalta, como em muitos outros, o poema em prosa.
      Quando é que o Quito se convence que não é por simples amizade que elogiamos a sua escrita?

      Toma lá mais um abraço, Quito Pereira.

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    3. Eu já disse que o excesso de modéstia do Quito só desaparecia com uma barrela... de urtigas... mas ninguém me leva a sério...

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  6. Gostei muito de ler mais este texto do Quito, por tudo o que retrata e pela forma simples e real com que o faz.
    Concordo com o Rui Felício: já se justificava uma colectânea com todos os contos e relatos de Quito Pereira. Eu gostaria de ter uma!
    Beijinho.

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  7. Quantos Carlos existem e vagueiam por este Portugal fora!!!... Mas nem todos têem a sorte de encontrar Senhores Pereiras...
    Gostei!
    Alfredo

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  8. Uma via sacra de vidas, aparentemente sem sentido!
    Abençoados os que sabem partilhar a sua bondade com a simplicidade e a grandeza do nosso amigo Quito.
    Um texto escrito de alma cheia que nos deixa a meditar.

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