(Foto net)
Anda em passos miúdos e rápidos, como quem corre a fugir do Destino.
Exprime-se de uma forma quase ininteligível e aos tropeções. Uma doença nervosa,
adquirida na infância, travou-lhe a fala. Mas não lhe travou uma existência de
agruras, na lida da casa e no amanho das terras. A vida, não se compadeceu
dela, mesmo que, os familiares, ao apadrinharem-lhe um nome à nascença,
sonhassem para o novo ser um futuro de abundância, apesar do berço onde dormitava,
em contínuos vagidos de tenra criança, fosse da mais modesta madeira oferecida
pelas árvores da planície.
Hoje, como ontem, no seu ritmo apressado, vai percorrendo a
aldeia. E ali, naquele beco escuro mas com uma vista abrangente sobre a campina
que a viu nascer, vai cumprindo o guião de uma novela triste. De companhia, tem
a Natureza e os cães que não param de latir, quando o véu da noite se aproxima
e o Moradal se extingue em contornos indefinidos.
Mas é a Fé que lhe acalenta a esperança. Ao Domingo, no seu vestido
de festa, corre ao chamamento do sino. De joelhos na laje da velha capela da
aldeia, rosto curvado para o chão e a mão no peito, agradece as dádivas do
Senhor, que mais não são, que o arrancar da terra ressequida e muito a custo, o
seu sustento. Depois, quando o padre Gabriel, baixo e anafado, manda os fiéis
regressar a casa em paz, é tempo de conviver com os outros habitantes no átrio
da igreja. De falar das preocupações e da cumplicidade entre aqueles – os mais
velhos – que resistiram à tentação de partir para a cidade e que, como
guardiões do Templo e do povoado, são sentinelas firmes de um Tempo sem horas. É
o ecoar das badaladas na torre do relógio, que marca o ritmo pautado dos dias.
Dos dias que se esgotam pelas planícies sem fim. É como se o presente se tivesse
diluído, instantaneamente, pelos meandros da Eternidade.
Ontem, vi a Maria Sidónio. Falou-me numa correria, como se o
que quisesse dizer-me fosse muito importante, porque a vida acabava já ali. Com
os olhos lacrimosos, lamentou-se da sua desdita, como se eu lhe pudesse inverter
o Destino. E o mote, naquele momento, das suas angústias, foram os javalis, que,
de noite, invadiram a sua pequena courela e, com o focinho pontiagudo, lhe
revolveram a terra que é a sua sobrevivência e lhe destruíram a horta.
Depois, partiu. Fiquei a observa-la, a caminhar rua abaixo,
cabelo em desalinho e de cor alva pela idade, pernas arranhadas das silvas e
maltratadas, pelas exigências da lavoura.
E na mão, balançando nervosamente, levava um chapéu – de - palha ...
Quito Pereira
A melhor companheira para um dia no campo...
ResponderEliminarMaria Sidónio iria gostar da nossa companhia e todos lhe daríamos muita alegria.
Só nos falta o chapéu de palha!
Um abraço, Olindita ...
EliminarSão diversos e estranhos os sentimentos que se cruzam, fugazes, no meu pensamento ao ler esta crónica, de um mundo rural distante e desconhecido da maioria de nós, citadinos.
ResponderEliminarRetrato de grande realismo, como é apanágio da certeira pena do Quito.
Estranhos e de dificil compreensão.
Pelos nossos paradigmas, tenho dificuldade em perceber o agradecimento dominical ao Senhor pelas dádivas recebidas.
Procuro elencar essas dádivas, mas o que vejo?
Uma mulher nascida em berço humilde, molestada desde muito nova por uma doença que a marcou para o resto da vida.
Uma mulher que, já velha e alquebrada, tem de labutar duramente a terra para o seu sustento.
Uma mulher que não tem tempo para questionar os poderes instituidos, pela culpa da sua desgraça.
Uma mulher que, no seu passo miúdo e apressado, se refugia num beco escuro espraiando o olhar pela campina e pela serra do Moradal, suas únicas companhias, para além dos cães.
Uma mulher que, num inusitado desabafo, resume a sua desdita aos malvados javalis que lhe destruiram a horta e o trabalho, colocando em causa a sua subsistência.
Contudo, resta-lhe a Fé que lhe alimenta a alma. Incompreensivelmente!
Coisa que tantos de nós há muito perdemos, por menores razões do que as que afligem a Maria Sidónio...
Caro Rui
EliminarEntendo que custa a entender, passe o pleonasmo.
Neste universo que não é o teu, a Vida tem duas linhas de força: Fé e Destino. Nada, mesmo nada, que abale o quotidiano de cada um, tem uma explicação cientifica ou terrena. Sejam doenças, acidentes ou catástrofes naturais, tudo tem uma explicação transcendental. Nasce-se porque Deus quis e morre-se porque Deus quis. E é aí que entra também o Destino.
A Fé, move montanhas - dizem. Mas, a verdade, é que é por vezes esse CRER que nos deixa perplexos, que os faz resistir às adversidades.
Muitos, sobretudo os mais idosos, acreditam que há uma outra vida para além da vida. Talvez por isso, porque as penas terrestres hão-de de ter recompensa, acreditam no etéreo, onde corre o leite e o mel ...
Será por essa crença férrea, que, para estes povos, a palavra imortalidade, faz sentido. Talvez por isso, suspeito e acredito, serão mais felizes que muitos de nós que, não tão crentes ou pura e simplesmente descrentes, apenas cremos que para lá da vida só existe um poço negro.
Um abraço
Penso tanto nisso... e na forma como essas pessoas buscam a felicidade para quem Deus é... olha, é um analgésico...
EliminarA leitura do Rui é o muito sublime no sentido da compreensão de uma vida dura,cheia de sacrifícios...
ResponderEliminarEu também a compreendo porque convivi com os meus avó e pais que assim labutaram e a Fé,sobretudo ,à minha mãe era o " seu alimento diário".
Apanhar e Espiga,hoje,com a Maria Sidónio era a minha homenagem a todas as Mulheres que carregam estas agruras mas também as alegrias que a terra lhes proporciona!
Continuo com erros e redacção mal feita...Eu sei escrever mas em teclados ou telemóveis não.
EliminarCompreendam-me!
Um conto do Quito que nos apresenta o que se passa na vida real, mostrando-nos as dificuldade de uma das muitas Marias Sidóneas desta terra e suas esperanças, naquilo que muitos não acreditam.
ResponderEliminarÉ compensador de ver a evolução dos povos. Por estes lados, a maioria das pessoas repudiam a Igreja pelos actos praticados pelos padres mas no fundo, continuam ligadas à relegião. Acreditam de tal maneira na vida após vida, que falam abertamente em qualquer lugar, mesmo nas TVs. É fácil de ver essas pessoas, algumas com muito cultura, a dizerem abertamente que todos os dias telefonam com o ente querido que partiu há vários anos. Com a maior das naturalidades imitam o telefone com a mão. Pierre Bourneau, diz falar todas as noites com o filho. Isto levou-o a lutar e conseguir construir todo um complexo de luta contra o cancro para crianças, último grito. Estão lá uns milhões de dólares largos que só com excelentes suportes financeiros privados é possível.
Um bom texto para nos recordar a Quinta Feira da Ascensão ou Dia da Espiga!
ResponderEliminarA Maria Sidónio que o Quito aqui nos tráz infelizmente é o retrato de muitas outras que se podem encontrar no nosso Portugal rural.
Uma vida cruel que se arrasta por toda uma vida!E o que nos faz meditar mais é, como o Quito bem realça, essa crueldade da vida é mitigada pela Fé que a leva uma vez por semana, ao domingo sair um pouco da rotina diária, vestir o seu fato de ver a DEUS e na igreja em recolhimento agradecer ao Senhor o pouco ou quase nada da ajuda que ela tem de "penosamente esgravatar" para se ir arrastando até que o Senhor um dia a chame para descansar definitivamente!
O dia em que o seu chapéu de palha também deixe de balancear nervosamente na sua mão!
Em aldeias aqui próximo de Coimbra há Marias Sidónia e agarram-se à sua fé com uma força que, às vezes, invejo. É a fé que as ajuda e suporta.E, com o realismo com que nos descreves o ambiente, a horta, a serra, já quase me sinto no adro da capela a sair da missa ao domingo.
ResponderEliminarBjo, Quito, obrigada
O Quito traz-nos mais uma vez um retrato sublime de gente simples, uma Maria Sidónia, lindo nome, que aprendeu a viver cada dia da sua vida sem a esperança de que o dia seguinte pode ser diferente.
ResponderEliminarÉ triste, sinto-me triste ao ser confrontado com esta realidade duma Maria Sidónia, pessoa digna que luta cada dia de vida, numa luta pela sobrevivência, que aceita a circunstância da sua vida porque, para ela, tem de ser assim.
Para Maria Sidónia não há alternativa nem a angústia de que tudo poderia ser diferente.
Gostei. Um abraço.
Abílio