O padre Bento era baixo e anafado. Recordo-lhe a tez morena e
uma cana que lhe servia como uma espécie de cajado. Era a sua imagem de marca.
Ser diretor de um Colégio de características tão especiais, requeria muita
argúcia e paciência. A paciência com que rapava os cabelos brancos junto às
fontes, com uma lâmina romba que por vezes lhe provocada lanhos no tecido
epitelial, prontamente desinfetado com mercúrio, o que lhe dava um aspeto
bizarro. Também paciência para percorrer as salas, para lembrar aos faltosos o
atraso nas mensalidades. Os senhores professores não vivem do ar- dizia o cura,
enquanto metia a cana por debaixo do sovaco, em jeito de muleta.
Porém, importa aqui referir, era bom homem. Tão bom, que um
dia visitou as salas de aula a anunciar a boa nova. O Colégio fazia anos e ia organizar
uma festa. Foi o que a turma dos matulões quis ouvir. Pouco dispostos a folhear
compêndios e mais propensos a grandes farras, o Zé Ladrão perguntou lá do fundo
da sala se havia artistas de variedades. O padre Bento, pacientemente, explicou
então que era uma festa “caseira” e que seriam os docentes e a Auxiliar Dona
Sara que trariam a comida e a bebida. Mas se alguns dos senhores quiser
contribuir … - disse o diretor, esperançado em que a festa fosse ainda mais de
arromba. Vã esperança, diga-se.
Quem não ficou muito entusiasmado, foi o Albuquerque. Viciado
em matraquilhos e bilhar, derretia a mesada no ACM, ali perto da Praça da
República. Filho de um casamento tardio, o pai, já reformado, ao saber da sua
sistemática falta às aulas, tentou resolver o problema pelas suas próprias mãos.
Direi melhor, pés. Colocou-se em frente ao portão sete horas por dia, a passear
com a sua gabardina cinzenta e as mãos atrás das costas, na esperança que o herdeiro
não fugisse do Colégio. Outra vã esperança. O Albuquerque, conhecia o espaço
como as suas próprias mãos. Pelo menos reconhecia bem o arbusto secreto nas
traseiras do edifício, que dava acesso à Rua Alexandre Herculano, mesmo ali a
dois passos da Associação Cristã da Mocidade. E enquanto o pai, feito
sentinela, marchava como um boneco de feira de tiro ao alvo, para frente e para
trás, em passo ritmado, na esperança que o filho já soubesse resolver uma
equação matemática, o rapaz jogava renhidas partidas numa mesa de matraquilhos
muito gasta pelo uso, com os matrecos equipados à Benfica e Sporting, com a
curiosidade dos bonecos serem todos iguais, monos sem alma, numa enorme falta
de imaginação do autor da bonecada.
A festa foi animada. A classe docente foi generosa e numa das
salas de aula, à guisa de banquete no Palácio da Ajuda, foi montada uma enorme tábua
em cima de várias carteiras o que dava a sensação de uma grande mesa, coberta
com uma colorida toalha que a Dona Sara tinha ido buscar do fundo de uma gaveta
lá de casa, que só era usada nas ocasiões especiais. Não faltavam as mais
variadas qualidades de bolos e salgados. E um enorme panelão de salada de frutas
que a Auxiliar tinha confecionado, que mais parecia uma piscina com prancha de
saltos. Ao som de um gira - discos roufenho, confraternizou-se e a festa durou
até às tantas.
Mas o que começa bem, por vezes acaba mal. Uma trupe, ao
ouvir a algazarra, qual raposa a farejar o galinheiro, foi colocar-se em frente
do portão do Dom João de Castro, encostada ao muro da Penitenciária.
Foi o alvoroço nas hostes. De repente, o Colégio
transformou-se em bastião da resistência. Ninguém saía e só tiveram capacidade
para regressar a casa, aqueles cujos pais tinham carro e que, num esforço,
apareceram para salvar os sitiados.
Organizaram-se boleias, até que ficou apenas um pequeno grupo
que, voluntariamente, resolveu dormir no Colégio, num braço de ferro com a
trupe. Entre eles, dois. O Toni Porta Larga e o Zé Veiga, filho de um
conceituado alfaiate da cidade.
Durante a noite, foram comendo e bebendo do muito que sobrava.
Mais bebendo que comendo. Até que a bexiga do Zé Veiga tocou o alarme, a
reclamar que estava atestada e a transbordar. O Veiga, eufórico, talvez dos
vapores etílicos da festança, de aflito que estava, nem teve tempo de ir à casa
de banho. Na iminência de ter que verter águas para o chão, viu-se na
necessidade imperiosa de urinar para dentro do que encontrasse mais à mão, ou
seja, do caldeirão da salada de frutas.
De manhã bem cedo, quando a esforçada Dona Sara entrou no
Colégio, naquele seu jeito apressado, para arrumar a sala da festança do dia
anterior, encontrou os heróis sentados
nas escadas que davam acesso ao andar superior, todos com umas olheiras até ao
umbigo e barba de Gigante Adamastor. Condoída, deu-lhes uma palavra de conforto,
para depois ao encarar com o panelão da salada de frutas dizer:
- Ai que bem que me vai saber agora uma salada de frutas
fresquinha …
A resistência, em silêncio, exausta e a cair de sono, nem teve
capacidade anímica para avisar a vítima
de que a salada estava sabotada. Sôfrega de desejo, a Sara serviu-se
abundantemente, tendo feito um esgar de repúdio à primeira colherada, dizendo:
- A salada está azeda !!!
- Pois está - disse com a voz arrastada o Toni Porta Larga,
rei das zaragatas das noites Coimbrãs - o Veiga mijou-lhe dentro …
E assim terminou, em apoteose, a comemoração de mais um
aniversário do Colégio Dom João de Castro, na Lusa Atenas …
Quito Pereira
Memórias bem giras e bem mijadas...
ResponderEliminarOlha quem! O Veiga,matulão e de que maneira.
Não te vejo neste Colégio,Quito.
Como sobreviveste no meio de tanta grossa e divertida folia?Tão pacato parecias...
Facetas passadas e bem recordadas!
Infelizmente, Olinda, o Veiga matulão, já partiu. Creio que vivia junto ao sobreiro, no enfiamento da Rua Bartolomeu Dias .Era amigo dele ...
ResponderEliminarClaro que sobrevivi. Mas realmente aquela malta não batia bem da bola ...
O meu almoço hoje foi pernil de porco.
ResponderEliminarAinda a fazer a digestão, voltei para casa, alapei-me no sofá, assentei o portátil no colo e espreitei o texto do Quito no Back Office do blog mesmo antes de ser publicado.
Em má hora o fiz.
Quase regurgitei os restos de pernil ainda no estômago à espera de transformação, tais foram as incontroláveis contracções, espasmos e ondulações que subiam ao esófago, provocadas pelas gargalhadas sucessivas que se encavalitavam umas nas outras è medida que ia lendo.
À boleia da hilariante descrição do Quito, não resisto a contar o meu primeiro dia de aulas no D. João de Castro.
Tinha concluido o 5º ano no D. João III no ano anterior e o meu pai que era amigo do Padre Bento, matriculou-me no 6º ano do Colégio.
Vinha habituado à férrea disciplina do liceu e do famigerado Zé Pulga e estranhei logo a bagunça da sala de aula com alguns a fumar, a gritar e de boné, antes da entrada do professor.
Finalmente lá entrou o Dr. Boaventura Sousa Santos ( o seu filho tomou o mesmo nome do pai e é hoje uma figura pública...).A sala acalmou, mas não muito.
O professor ia perguntando um a um dos alunos, o nome, a idade, etc., como era usual nas aulas de apresentação.
Quando chegou a minha vez, perguntou-me de chofre:
- E tu? Se te dissessem que ias agora mesmo ficar paralitico do lado direito o que fazias?
Não estava nada à espera de semelhante pergunta, retorci-me na carteira e balcuciei:
- Não sei Sr. Dr., talvez pedisse para me levarem ao hospital...
- Eu vi logo que és burro! Então não mudavas logo os tomates para o lado esquerdo?
E foi assim o meu baptismo no D. João de Castro...
Bem, quem ia urinando nas calças era eu. A parte final do comentário do Felício e a tirada vernácula do Sousa Santos, deixou-me à beira de um ataque de asma de tanto rir. A São, que já se tinha rido com os matulões, ao ler o cometário do Felício, também ia regurgitando a bola de carne que comeu ao almoço.
EliminarSó pelo já me ri à pala do texto e dos comentários, vale o tempo que levei a construi-lo ...
Quase à guisa de apontamentos, o Quito traz-nos recordações dos seus verdes anos, transmitindo a saudade e a alegria própria da juventude. Opta por um estilo literário que não é o seu de raiz e de modo escorreito, vai-nos colocando quadros deliciosos que nos fazem sorrir e matar, também nós, a saudade desses tempos.
ResponderEliminarEu frequentei o São Pedro, ali mesmo ao lado do ACM, e muitas vezes trocava um pelo outro. É que jogar "ping-pong" era muito mais interessante do que estudar os rios de Portugal...
Toma lá mais um abraço.
Realmente Viana, jogar ping - pong em vez de "marrar" nos livros, era mais atraente. O Albuquerque que o diga ...
EliminarE entre o São Pedro e o D. João de Castro estava estratégicamente colocado o Alexandre Herculano que escondia atrás dos seus muros altos as doces meninas dos nossos amores que nos ajudavam, quanto mais não fosse, a manter os olhos lavados...
ResponderEliminarPois, por causa das boazonas é que eu fui dentro para a esquadra que havia ao lado do Colégio delas. Sem culpa nenhuma !!! Foi o maluco do Cunha que mandou o piropo e pagámos todos. Estive toda a manhã na esquadra e foi o Teles Grilo que nos foi lá buscar. Mas já contei essa história e não vou aqui repetir ...
Eliminare os tomtes para que lado estariam virados a passar junto às doces meninas?
EliminarBem também me vou rindo com gosto!
Bem observado.
EliminarMas não esqueças que 30 metros abaixo do São Pedro havia o Santa Cruz, também ele recheado de doces meninas...
E a D.Aurora com o seu carrapito e o seu chapéuzinho a impor respeito a estes matulões endiabrados?...Pobres meninas que tanto sofriam no Alexandre Herculano e nós no Infanta.
EliminarRememoriar é tão bom...
Vou limpando a casa espreitando aqui e ali nesta geringonça com teclas...e assim se vai passando o tempo.
Desconfio que quem urinou na salada de frutas não foi o Zé Veiga mas sim o Quito que ali se aliviou para não fazer nas calças...
ResponderEliminarAhahahh...
EliminarRui, eu fui dos que tive "sorte", pois o meu pai foi-me buscar no seu Ford Anglia de 3 velocidades e ainda levamos mais três sitiados para o lado do Bairro...
EliminarÉ curioso que me lembro perfeitamente da Dona Sara, do Dr. Queiroz, do Padre Bento e do impagável Teles Grilo ... Pereira ... Deus Pereira ... ou como raio é que tu te chamas ...porque é que estás a olhar para mim ... Sou alguma gaja boa ? perceberam esta equação? ...não perceberam ??? !!! então percebessem...com licença ( e apagava o quadro )
À cautela e não fosse o diabo tecê-las andei durante muito tempo com a hortaliça do lado esquerdo como aconselhou o professor...
ResponderEliminarObediente,sim senhor!
EliminarAhahahh...
A conversa está a ficar muito ecológica ...
EliminarNestas aulas não aparece o ginecologista!
Eliminar
ResponderEliminarEu não posso ler estas coisas no trabalho ... :) AHAHAHAHAH
Podes. Mas ri-te baixinho ...
EliminarPois, Gonçalo... as coisas que tu nem saberias!
ResponderEliminarO teu pai já não te matriculou no colégio, lá sabia a razão.
Estou a imaginar o Quito e a São a gargalhar,limpando as lágrimas.
As funcionárias da farmácia estavam com um ar preocupado com as gargalhadas no escritório, a pensar que nos tinhamos passado da bola ..
EliminarPois, agora imagina um open space com 50 marmelos a trabalhar em silêncio quando de repente ...
EliminarO Quito fez-me rir mas o Rui Felício não lhe ficou a trás. Fui desse colégio e li nomes que conheço muito bem, menos o santo do padre Bento. No meu tempo o director era o Dr. Queiroz, pessoa que quando se ia para fazer uma brincadeira, começava a falar cada vez mais alto e quando lá chegava a cima, já todos estávamos calados. Tínhamos-lhe respeito e medo. O Dr. Boaventura Sousa Santos sempre ia tendo uma das dele mas quem chamava mais a atenção nessa altura, era o Ten. Teles Grilo. Arranjou muitas. Também tivémos uma ou outra como com a Da. Judite que ainda hoje recordo e era mãe do Abreu, pois dávamo-nos como irmãos. Parecia muito socegadinho mas se a mãe não desse aulas no colégio, ele devia ser o chefe dos amotinados. Também me lembro muito bem da Da. Sara, uma jóia de pessoa, só que já não sabia o seu nome. Com o padre Bento que não me lembro, esse colégio estava muito aberto. Talvez se tenham aproximado mais dos alunos. Bons momentos, Quito.
ResponderEliminarChico, como é possível não te lembrares do padre Bento? A Dona Sara era muito boa pessoa. Só podia ser, para aturar aquela fauna. Um dia, entraparam o badalo do sino que ela tocava para início e fim das aulas de hora a hora e aquilo em vez de fazer timtimtim....fazia tomtomtomtom ...
EliminarMais uma Quito, fartei-me de rir. Essa lembra o roubo do sino do liceu D. João Terceiro e dos ponteiro do relógio. Depois veio o piquinino dar uma volta pelas salas e dizia que quem fôsse apanhado, iria a tribunal.
EliminarÀ tarde quando saímos e subíamos a rua ao lado do liceu para irmos descer os Loios, na porta da República Boa-Bay-ela estava escrito: - Alugam-se uns ponteiros de relógio. Sineta com bom som.
Meu Deus: agora é mais um Senador a ter que dar contas à polícia mas neste caso é aos Federais, GRC. U m S e n a d o r... Isto é um tratado.
Esta 2ª parte está igualmente uma delícia!
ResponderEliminarÉ uma leitura que se faz com avidez, sempre à espera de episódios cada vez mais pitorescos!
Agora urinar na salada de frutas, não lembra ao diabo!
Conheci bem o Veiga que morou nas escadas da Pedro Álvares Cabral com a mãe.
A mãe era minha cliente na Estação dos CTT na Praça da República.
É curioso que não me lembro muito bem do Colégio D. João de Castro e só agora através do que leio acabo por estar a perceber onde ficava.
Andei 2 anos no Colégio de São Paulo-Bairro Sousa Pinto-talvez nos anos 1950 e 1951 e 4 anos no São Pedro.
Ficava por isso bem perto dos colégios femininos de Santa Cruz e Alexandre Herculano.Qualquer deles tinha regras bem apertadas de proteger as meninas dos malandrões(nem por isso) dos Colégios.
O nosso professor de Relegião e Moral era já velhote e muito conhecido, mas que não me lembro agora do nome.
Nos feriados ou furos, ou íamos para o Santa Cruz Jogar a bola, ou quem tinha dinheiro(não era o meu caso)ia jogar os matraquilhos para o "monstro" que ficava junto do café Tropical.
Quito gostei muito do texto!
Concordo, Rafa. Urinar na salada de fruta, não lembra ao diabo ...
EliminarSim senhor, bonitas histórias!... Parece que já não há respeito nenhum por este blog!... Mas no fim de tudo isto, fico com uma enorme dúvida: HÁ ALGUÉM QUE PONHA A AGRICULTURA PARA O LADO DIREITO?!... Se há, que se acuse pois pode ir para o Guiness...
ResponderEliminarEspera aí que vou ver!
EliminarVais ver ou vais procurar?
Eliminarhehehehe ...
Isto está a ficar lindo! Não te impões e depois os gajos abusam...
Eu já estava admirado do Alfredo não vir aqui dar uma ferroada. Concordo com o repto: QUE SE ACUSE ...
EliminarViana, tens razão, o administrador não tem mão nisto ...
EliminarO Dom Rafael foi ver há mais de 12 horas e ainda não apareceu!... Querem ver que os encontrou ao meio!?!?...
EliminarAdministrador que anda a encher os bolsos com o blog e não paga aos colaboradores...
ResponderEliminarVocemesêses ainda têm que me pagar é os direitos de imagem!
EliminarO Administrador desta coisa, com estes expedientes , ainda é convidado para ir para a Câmara de Portimão e, nunca se sabe, em vez de engolir um papel, ter que engolir um dossier ...
ResponderEliminarSim, muito bem, era o Cónego Gaito.Vivia no Seminário Maior de Coimbra e era tio do Paulito Gaito, que vivia na Rua do Brasil. Um dia, um pardal caíu do ninho.Apanhei-o e levei-o para dentro da aula.Larguei-o, esvoaçou....esvoaçou, até que bateu com a cabeça no vidro da janela e morreu. Levei uma malha tão grande que até parece que ainda hoje tenho a cara quente desse lado!
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