quinta-feira, 22 de setembro de 2011

DAQUI, DESTE LUGAR

Juncal do Campo

(foto de Daisy Vieira)

É junto ao muro branco da aldeia secular, que assisto ao estertor do Verão. Nesta calma espacial, vou diluindo os meus pensamentos em duas décadas de memórias. As montanhas, ao longe, são as minhas confidentes, num lume brando de emoções. Aqui, neste lugar, com o casario do Juncal do Campo, a trepar o velho morro. Ali, no “meio do povo”, os telhados singelos acotovelam - se, encostados uns aos outros, num solidário instinto de defesa. No ventre da aldeia, ainda um resquício de vida. Vejo a loja da Norita, com um molhe de vassouras à porta, suspensas por um cordel. São para vender. Também uma escada em alumínio, para subir às oliveiras. É quando a povoação murmura a oração do azeite. Do lado direito da rua, naquele portão de ferro castanho, o barulho metálico da loja do ferreiro. Lá dentro, o Virgílio, moldando o ferro, escondido na penumbra da garagem fresca e fria. Como frio e inestético, é o torno que morde o tampo carcomido pelo uso e pelo Tempo, da austera mesa de madeira. Dali, ao “cimo do povo”, é um pulo de cordeiro. No cabeço da aldeia, já só oiço os acordes fúnebres da ausência. Finou-se a taberna do “Real”. Acabaram os jogos – de - cartas. Acabaram os jogos – de – damas. Acabou-se a tertúlia da miga de peixe apanhado na ribeira, com a côdea do pão a estalar, do forno a lenha da Ti’ Ilda. E o vinho espesso, a escorrer generoso pela boca franca do largo do jarro. As portas da amizade fraterna, fecharam-se. O taberneiro, corpulento, arrastando a perna esquerda com o apoio da sua fiel e grossa bengala, juntou-se a muitos outros habitantes do velho povoado, que repousam agora no mundo dos Justos. E, lá em baixo, sim, lá em baixo, no “fundo do povo”, a mercearia da Fernanda, também encerrou as suas portas. Resta o lavadouro público, com as cordas estendidas, onde esvoaça tocada pela brisa deste fim de tarde, a roupa modesta da gente simples. Na esquina da rua estreita, já não vejo o “Lagarto” sapateiro. Fecharam-se as janelas da casa humilde. Terminou um ciclo de vida.
Absorto nos meus pensamentos, reparo agora no calor denso, que fez esbater o perfil austero das montanhas. Também uns farrapos de nuvens brancas, planando sobre o misterioso silêncio. Está na hora de partir. Agora que, convosco, partilhei acorrentado ao passado, este múrmurio de recolhimento e de solidão. Daqui, deste lugar …
Q.P.

19 comentários:

  1. Se este texto tivesse também som, seria o Avé Maria tocado pelo sino do campanário, que ecoa pelo vale do Juncal do Campo para se ouvir no topo da Serra de S. Brás, sentado no marco geodésico e apreciando um por do sol de fim de tarde a comer uma fatia daquele pão de fatia generosa com manteiga :)

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  2. Muito bem...li logo pela manhã, durante a "bica matinal"...que teve um sabor mt especial!
    Outro som, seria uma ária de Bach, talvez "Air"!!!
    Grande abraço caro Romancista!

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  3. o Homem transformou a vida numa selva. Basta seguir as notícias pela TV. Nas grandes cidades, as pessoas, para chegar ao emprego a horas, lutam por um lugar no autocarro ou no metropolitano. Vivem como bonecos articulados, manejados por uma mão invisível que os sufoca.
    Por isso, dou tanto valor àquilo que para muitos é um esqueleto. E sei, que o que vou partilhando da minha experiência campesina com os amigos, é uma espécie de fóssil.
    Mas, mesmo numa aldeia perdida nos confins do País, há momentos de magia. O cheiro da esteva a sair pela chaminé dos fornos. O aroma do pão caseiro feito em forno de lenha. O sino do campanário ecoando pela planície. O chiar da carroça puxada pelo burrito, com o campesino a regressar ao lar. E o silêncio. Um silêncio que "fala". Um silêncio que nos convida a reflectir sobre a transitoriedade da vida.E nestes pequenos povoados de Salgueiro, Juncal, Freixial, Tinalhas, Ninho do Açor, Cafede, Sobral ou Chão da Vã, a gente simples, nem sequer percebe ou se apercebe da complexidade do mundo hoje. No Portugal do século XXI, ainda se cultivam as pequenas courelas, ainda se tira a água do poço com uma picota. E para a esmagadora maioria, a honra vale mais que letra de lei. Por isso, vou tentando transmitir um pouco da outra realidade de Portugal. Deste Portugal moribundo. Mas que ainda não morreu.

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  4. Ainda não morreu e "corre o risco" de ressuscitar nos próximos tempos. O êxodo das cidades está por um fio pois as pessoas já não ganham para a montanha de despesas que têm de ter para lhes fazerem o favor de dar um emprego. O retorno às terras será o próximo passo lógico que pode ou não ser acelarado por uma eventual saída ou queda do Euro e da União Europeia.

    Achei graça a um político deste nosso país que disse que era mais barato mandar as pessoas para casa. Eu gostava era de ver esses mesmos políticos a estudar a hipótese de colocar as pessoas a produzir riqueza para o país a partir de casa. Toda a capacidade e recursos técnicos já estão montados no terreno, grande parte da administração pública poderia já hoje fazer todo o seu serviço (incluindo reuniões) com um laptop e uma ligação à internet. Houvesse vontade para explorar essa via ...

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  5. Temos de fazer uma visita a esta terra maravilhosa cuja vida nos "mostras"através da tua afectuosa escrita.
    Gentes da minha terra/bairro para quando uma excursão ao Juncal?
    Bora lá!

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  6. Pois é Quito o retrato que fazes do que está a contecer a Juncal do Campo, será o mesmo que se vai passando por muitas outras aldeias do interior de Portugal.
    E em Juncal assistes ao longo destes anos a toda esta realidade, e que se vai acentuando a cada ano que passa!
    E não é fácil para ti ires dando conta desta desertificação, pela vivência que tens com grande parte das pessoas que são atingidas por todas as contrariedades da vida, sem possibilidade de lhe fazerem frente.
    É o sapateiro que fecha a porta por falta de clientes, é a taberna do Real onde já tiveram fim os jogos das cartas e das damas.Foi o fecho das portas da amizade!
    A mercearia da Fernanda também não resistiu.
    E a seguir será que também a loja da Norita vai deixar de ter o molhe de vassouras à porta? O ferreiro-será que o tempo também acaba com a austera mesa de madeira onde assenta o torno?
    É o mais provável...a não ser como diz o Gonçalo que se dê o retorno dos que foram para a cidade e onde a vida não está fàcil?
    Tudo resultante de uma crise que se vem acentuando e da qual não vai ser fácil sair!
    Quanto a uma excursão a Juncal do Campo e seus arredores...nada mais fácil...bastam 50 pessoas e um roteiro!!!!Caria, Fundão, Serra da Estrela, etc,etc. E porque não em 2012?

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  7. Confesso que não sei o que mais me impressionou, se o texto do Quito se o seu comentário.
    Sendo sincero, utilizando a linguagem da verdade, a única que deve ser utilizada entre amigos, foi o comentário...
    Matéria para muita reflexão.
    Aquele abraço.

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  8. Dom Rafael,
    O Quito que organize o roteiro, tu que organizes a caminheta e ... prontus!
    Eu já estou a cumprir a minha parte, inscrevendo-me na "ROTA DO QUITO".
    Já só faltam mais 48 ...
    Vamos a isso?

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  9. É verdade Carlos. O comentário ficava bem em nova postagem, com esta ou com nova foto!
    Ainda estiva tentado em acrecentar na postagem, com
    PARTE II.

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  10. Faltam 45...

    Gostei mais do "comentário"."Senti-o" mais.
    Obrigado,Quito.

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  11. Eu também quer'ir!
    E Quito, vais ver se a tendência não será para um "regresso à terra"...

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  12. Até podia ser a rota do "joelho de porco assado no sítio que a gente sabe" ... ;)

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  13. ....isto está a ganhar forma...
    "Eles" Pai e Filho, lá sabem o sítio...

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  14. Lindo, o murmúrio do Quito!
    Estive lá, "Daqui, deste lugar".
    O homem pode tentar modificar, mas o chão continua...

    Se houver por essas bandas uns bons "bons joelhos",farão jeito a muitos!

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  15. Considero o texto como o cenário, uma espécie de envolvente do leitor no ambiente que se vive na região que o olhar atento do Quito prescruta,sente e nos transmite na perfeição, com abundantes pormenores que nos não deixam escapar-lhe.
    Mas, tal como num teatro que abre o pano e nos mostra apenas a cenografia, ainda sem actores nem diálogos, preparando-nos para o desenrolar da acção, assim considero que o âmago da peça só vem depois, completando o cenário e dando-lhe vida.
    Refiro-me ao inesperado comentário do próprio autor, para mim, o melhor da peça...

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