CLINT. Uma bíblia de tiros e ossos partidos ...
O Trinitá nunca teve jeito para o gamanço. Não é que não se esforçasse. Ainda tentou tirar um curso na Curraleira, ali mesmo por detrás da Fonte Luminosa, na luminosa Lisboa. Mas à segunda lição, o Afinador foi cruel :
- Nunca hás-de ser nada na vida, mano. Tens os garfos demasiado grossos para tarefas de grande sensibilidade profissional. Sabes meu, ser carteirista é coisa fina, de alto gabarito, não é para um fatela qualquer. Meter os dedos nos bolsos do casaco de um tanso e afiambrar-lhe o guito, requer pinças finas como veludo. O Afinador era muito considerado naquele rincão de Lisboa. Tinha um diploma de afinador de relógios. Um documento que até fazia inveja, de tão real que parecia. Também afinava fechaduras de portas, melhor dizendo, desafinava, quando aos domingos entrava na casa dos otários que tinham ido para a praia de Carcavelos, pôr a barriga ao sol com a família, a arrotar a azeitonas e a pasteis de bacalhau.
Trinitá nunca fez história. Apenas ficou lembrado pelo bazar de porrada que levou na Travessa dos Baldaques. Era meia-noite e dirigia-se ao cinema MAX, para uma sessão fora de horas. Adorava filmes do Clint Eastwood. Daqueles em que o artista entrava no saloon, com o chapéu de aba larga descaído sobre os olhos, tilintando as esporas num bailado de morte e se dirigia ao bar. Então, vinte bacamartes apontavam contra ele para o depenar e, de repente, o Clint virava-se, dava um tiro no pesado candeeiro da sala, que caía com estrondo em cima da mesa de poker. Na penumbra do andar superior, saíam algumas madames em trajes muito menores aos gritinhos, com os vaqueiros em ceroulas, a grunhir atrás delas.
O Trinitá, gostava daquilo. Não tinha culpa. Culpa teve no dia em que abarbatou o carouço que gamou na barraca - de – chá do Vitória da Picheleira. Foi assim: o homem era doido por futebol. Vivia paredes - meias com o campo pelado da agremiação lá do sítio. Lamentavelmente, da varanda da sala de jantar, só via metade do campo. Para ver a outra metade, tinha que ir à varanda da cozinha. Aos Domingos, era uma correria entre a sala e a cozinha e vice-versa, para assistir a todas as emoções do jogo. No fim, sentava-se no sofá de napa, arfando de esgotamento, como se tivesse sido ele a andar aos biqueiros à bola. Um dia, o seu amor ao clube deu frutos. Numa reunião da direcção, com três votos a favor, dois contra e uma abstenção, a direcção do Vitória da Picheleira, convidou-o para tomar conta do bar do campo, em dias de futebol. Escusava o simpatizante de correr esbaforido casa fora, sempre que o clube jogava no pelado lá do sítio. Trágico erro. Numa tarde gloriosa em que o Vitória da Picheleira enfardava oito a zero no Real Madrid da Musgueira, o Trinitá não resistiu ao apelo do bago a cair na caixa de cartão, junto às grades de cerveja e das gasosas. Antes do jogo acabar, meteu a bagalhoça toda num saco de plástico e deu aos calcantes. Andou seis semanas a dar de frosques, lá para os lados do Barreiro. Depois voltou a casa, convencido que o assunto estava esquecido. Enganou-se. Por causa do maldito vicio dos filmes do Clint Eastwood, foi topado a descer o empedrado dos Baldaques. Foram-lhe ao pêlo. Ficou esparramado na calçada, a deitar sangue por tudo quanto era orifício, mais parecia um regador. Mas a malta da Curraleira, portou-se na afinação. Antes que aparecesse a bófia, levaram-no para casa do Afinador. E chamaram o Dr. Mateus, um tipo porreiro, que era amigo da rapaziada e não cobrava um chavo, quando havia borrasca e era preciso remendar as trombas de um pinante. Mas há dias de azar. O médico tinha trocado de carro. O Xabrégas e o Lingrinhas – carteiristas de reconhecido mérito – tinham ido ao Porto, sacar a nota aos tripeiros. Polivalentes que eram, gostaram das rodas do carro do doutor, que não reconheceram. Em segundos, o Carocha ficou em cima de quatro tijolos. Um drama. Mas alguém viu e foi o fim de mundo. O Afinador, desfez-se em mil desculpas, perante o médico amigo. Depois, ajustou contas com o Xabrégas e o Lingrinhas, de joelhos a seus pés, suplicantes, enquanto o cano da fusca calibre 38 de seis tiros, lhes fazia cócegas nas abas do nariz. Juraram que iam arranjar outras rodas, pois já tinham despachado aquelas num sucateiro da Rinchoa. Cumpriram. Quando o Dr. Mateus regressou à Curraleira, agastado, tinha umas rodas novas em folha, com umas jantes a brilhar. Tudo novo. De nada lhe valeu dizer que não as queria. O grupo estava ali todo reunido, em comovente cerimónia, para pedir desculpa ao clínico. Até o Lucky Luke, rato de automóveis e vendedor de coca nas horas vagas na Praça do Chile apareceu, esganado num grosso nó de gravata. A Amélinha dos Amores Imperfeitos, abria a porta do carro do médico, fazendo uma vénia, desfeita em amabilidades. O Trinitá lá ficou, deitado na casa de telhado de zinco do Afinador, a emborcar litros de xarope para as inflamações. Quando endireitou o canastro, regressou a casa, para junto da mãe viúva. Não voltou ao cinema Max. Para arraiais de amassar o esqueleto, já não precisava de filmes de acção. Tinha-o sentido em directo e ao vivo, na calçada empedrada e sombria da Travessa dos Baldaques.
Q.P.
- Nunca hás-de ser nada na vida, mano. Tens os garfos demasiado grossos para tarefas de grande sensibilidade profissional. Sabes meu, ser carteirista é coisa fina, de alto gabarito, não é para um fatela qualquer. Meter os dedos nos bolsos do casaco de um tanso e afiambrar-lhe o guito, requer pinças finas como veludo. O Afinador era muito considerado naquele rincão de Lisboa. Tinha um diploma de afinador de relógios. Um documento que até fazia inveja, de tão real que parecia. Também afinava fechaduras de portas, melhor dizendo, desafinava, quando aos domingos entrava na casa dos otários que tinham ido para a praia de Carcavelos, pôr a barriga ao sol com a família, a arrotar a azeitonas e a pasteis de bacalhau.
Trinitá nunca fez história. Apenas ficou lembrado pelo bazar de porrada que levou na Travessa dos Baldaques. Era meia-noite e dirigia-se ao cinema MAX, para uma sessão fora de horas. Adorava filmes do Clint Eastwood. Daqueles em que o artista entrava no saloon, com o chapéu de aba larga descaído sobre os olhos, tilintando as esporas num bailado de morte e se dirigia ao bar. Então, vinte bacamartes apontavam contra ele para o depenar e, de repente, o Clint virava-se, dava um tiro no pesado candeeiro da sala, que caía com estrondo em cima da mesa de poker. Na penumbra do andar superior, saíam algumas madames em trajes muito menores aos gritinhos, com os vaqueiros em ceroulas, a grunhir atrás delas.
O Trinitá, gostava daquilo. Não tinha culpa. Culpa teve no dia em que abarbatou o carouço que gamou na barraca - de – chá do Vitória da Picheleira. Foi assim: o homem era doido por futebol. Vivia paredes - meias com o campo pelado da agremiação lá do sítio. Lamentavelmente, da varanda da sala de jantar, só via metade do campo. Para ver a outra metade, tinha que ir à varanda da cozinha. Aos Domingos, era uma correria entre a sala e a cozinha e vice-versa, para assistir a todas as emoções do jogo. No fim, sentava-se no sofá de napa, arfando de esgotamento, como se tivesse sido ele a andar aos biqueiros à bola. Um dia, o seu amor ao clube deu frutos. Numa reunião da direcção, com três votos a favor, dois contra e uma abstenção, a direcção do Vitória da Picheleira, convidou-o para tomar conta do bar do campo, em dias de futebol. Escusava o simpatizante de correr esbaforido casa fora, sempre que o clube jogava no pelado lá do sítio. Trágico erro. Numa tarde gloriosa em que o Vitória da Picheleira enfardava oito a zero no Real Madrid da Musgueira, o Trinitá não resistiu ao apelo do bago a cair na caixa de cartão, junto às grades de cerveja e das gasosas. Antes do jogo acabar, meteu a bagalhoça toda num saco de plástico e deu aos calcantes. Andou seis semanas a dar de frosques, lá para os lados do Barreiro. Depois voltou a casa, convencido que o assunto estava esquecido. Enganou-se. Por causa do maldito vicio dos filmes do Clint Eastwood, foi topado a descer o empedrado dos Baldaques. Foram-lhe ao pêlo. Ficou esparramado na calçada, a deitar sangue por tudo quanto era orifício, mais parecia um regador. Mas a malta da Curraleira, portou-se na afinação. Antes que aparecesse a bófia, levaram-no para casa do Afinador. E chamaram o Dr. Mateus, um tipo porreiro, que era amigo da rapaziada e não cobrava um chavo, quando havia borrasca e era preciso remendar as trombas de um pinante. Mas há dias de azar. O médico tinha trocado de carro. O Xabrégas e o Lingrinhas – carteiristas de reconhecido mérito – tinham ido ao Porto, sacar a nota aos tripeiros. Polivalentes que eram, gostaram das rodas do carro do doutor, que não reconheceram. Em segundos, o Carocha ficou em cima de quatro tijolos. Um drama. Mas alguém viu e foi o fim de mundo. O Afinador, desfez-se em mil desculpas, perante o médico amigo. Depois, ajustou contas com o Xabrégas e o Lingrinhas, de joelhos a seus pés, suplicantes, enquanto o cano da fusca calibre 38 de seis tiros, lhes fazia cócegas nas abas do nariz. Juraram que iam arranjar outras rodas, pois já tinham despachado aquelas num sucateiro da Rinchoa. Cumpriram. Quando o Dr. Mateus regressou à Curraleira, agastado, tinha umas rodas novas em folha, com umas jantes a brilhar. Tudo novo. De nada lhe valeu dizer que não as queria. O grupo estava ali todo reunido, em comovente cerimónia, para pedir desculpa ao clínico. Até o Lucky Luke, rato de automóveis e vendedor de coca nas horas vagas na Praça do Chile apareceu, esganado num grosso nó de gravata. A Amélinha dos Amores Imperfeitos, abria a porta do carro do médico, fazendo uma vénia, desfeita em amabilidades. O Trinitá lá ficou, deitado na casa de telhado de zinco do Afinador, a emborcar litros de xarope para as inflamações. Quando endireitou o canastro, regressou a casa, para junto da mãe viúva. Não voltou ao cinema Max. Para arraiais de amassar o esqueleto, já não precisava de filmes de acção. Tinha-o sentido em directo e ao vivo, na calçada empedrada e sombria da Travessa dos Baldaques.
Q.P.
Em meados do século passado e já no seu declinar, a "Curraleira" era um antro de profissões "liberais". Carteiristas, arrombadores de cofres, ratos de automóveis, falsificadores de documentos, gangs de bancos etc. etc etc ...
ResponderEliminarAs barracas de zinco e madeira foram abaixo, sendo a zona "requalificada2. A "curraleira" situava-se na zona das Olaias, paredes-meias com a Picheleira. Pela Travessa dos Baldaques, desagua-se na Avenida Morais Soares, lá para os lados da Praça do Chile. Também por ali, ainda sobrevive o cinema Max, ao que parece, entregue agora a um culto religioso.
Lisboa de outras eras ...
(Nem precisei de fazer zoom!Até parece que conhecemos estes personagens, dada a qualidade da "fotografia-escrita"!)
ResponderEliminarNo "Livro das Trombas" era mais fácil dizer quanto se aprecia a qualidade deste texto! Era só "clicar" no símbolo "GOSTO"...
Fabuloso!!! Quando é que as Editoras "acordam"!!!???
ResponderEliminarGrande abraço!!!
O Quito é um conhecedor de muitas matérias!
ResponderEliminarAté do gamanço!!!
Pois, também fiquei surpreendido por esta "viragem" ou talvez "versatilidade" de escritor/romancista!
ResponderEliminarE a surpresa foi bem agradável e deu para perceber que te mexes muito à vontade nesta área do "Gamanço"
Picheleira,Xabregas,Baldaques, Curraleira, Rinchoa, tudo misturado com carteiristas, afinadores, lingrinhas, Carochas,Lucky Luke,é uma combinação perfeita para esta "estória"
GRAMEI!
OBRIGADO QUITO.
ResponderEliminarTonito.
É caso para dizer : e destas hein?!
ResponderEliminarO Quito que sempre nos demonstrou a sua ligação ao povo humilde, sério e sofrido trabalhador, também se movimenta nos meios complicados de outros mundos menos sérios e menos trabalhadores.
Até a linguagem muito especial lhe conhece, utilizando-a de forma magistral.
Este texto divertiu-me e estou certo que o Autor também se divertiu.
Quito, toma lá um abraço.