Inaugurado por meia dúzia de homens de boa vontade, dedicando muito do seu tempo no arranque e desenvolvimento da novel agremiação popular, o Clube Recreativo do Planalto, ali para as bandas do Calhabé, ganhou fama e chegou aos dias de hoje, passadas várias décadas, pleno de pujança e com uma actividade diversificada digna dos maiores elogios.
Do seu humilde orçamento, destacava-se, no capítulo dos proveitos, logo a seguir às quotizações, a rubrica de receitas do bar, de importância vital para as finanças do clube. A exploração diária era pelouro exclusivo de um dos directores. Tratava-se do Sr. Tenório que ali perdia 4 horas por noite, atrás do balcão, a servir os consócios de bebidas, petiscos, confeitarias, sandes, aluguer de baralhos de cartas e venda de senhas para acesso à sala de televisão no 1º andar, cuja entrada estava estrategicamente colocada ao lado do balcão, para melhor controle das entradas.
- Boa noite! Sai uma taça de tinto! – pediu o Sr. Marques Silva, sempre engravatado, também ele director, encostando-se displicente ao balcão, o cabelo penteado da frente para trás agarrado ao couro cabeludo por uma generosa camada de creme fixador, e o inseparável cigarro Definitivos fumegando ao canto da boca.
- São cinco tostões, informou o Sr. Tenório ao mesmo tempo que lhe enchia o copo.
- O Marques Silva pigarreou, entalou o cigarro entre os dedos, levou o copo à boca estalou a lingua dizendo que era uma boa pomada, e bateu com a moeda de cinco tostões em cima do balcão, que o Sr. Tenório se apressou a recolher e guardar.
- Já agora, dê-me um maço de “Definitivos”, disse o Marques Silva, passado um bocado, colocando uma moeda de dez escudos no balcão.
- Não tenho troco! Não lhe posso aviar o tabaco!- respondeu-lhe o Tenório.
O Marques Silva desabotoou o casaco, pôs-se em bicos de pés, apoiou as mãos no tampo, esticou-se todo e espreitou para dentro do balcão.
Fitou incrédulo os olhos no Tenório e questionou-o:
- Não tem troco? Como não tem troco?! Então aquelas moedas todas que eu estou ali a ver o que é?
- Meu amigo e Sr. Marques Silva! Vamos ver se nos entendemos. Eu disse-lhe que não tenho troco e não tenho mesmo!
Apontando para uma série de caixas de cartão onde ia guardando o dinheiro, alinhadas umas ao lado das outras, quase todas cheias de moedas, foi explicando:
- Esta primeira é a do dinheiro dos rebuçados, a outra a seguir é a do vinho, a outra das laranjadas, a seguir é a da sala de televisão, ao lado é a das sandes, a da ponta é do aluguer dos baralhos, mesmo ao lado é a dos petiscos e a do meio é a do tabaco.
Como vê, a caixa do tabaco está vazia, não há lá nenhuma moeda. Portanto, como lhe disse, não há trocos para tabaco...
O Sr. Tenório e as suas diversificadas caixas de dinheiro, pode considerar-se um precursor da chamada contabilidade analítica.
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NB.: Os factos são verídicos, as pessoas também, o clube idem. Foi o Quito que me contou em recente conversa numa festa de casamento em que ambos estivemos.
Os nomes são ficção por respeito para com homens com carolice, sacrifício e dedicação às causas colectivas, a quem se devem grandes realizações e cuja memória devemos preservar e homenagear.
Um dia, tive a a oportunidade de dizer aos meus amigos bairradinos, que as idades se esbateram.
ResponderEliminarAinda eu era um pintaínho, já o Felício era um frango adiantado. Que o mesmo é dizer, que não me passava "cartucho", imperial nos seus galões, com a barba a crescer e o cabelo à Travolta.
Isto tudo, para dizer que a minha recruta acabou. Refundou-se uma amizade, nascida num bairro. No melhor bairro do país. E a vida tem destas coincidências: aparecemos juntos no mesmo casório, como convidados da noiva. Conversámos horas esquecidas e o Felício até deu um pé de dança já a noite ia alta.
Inevitável falar no bairro. No nosso bairro. A história que o Felício - escrita com pena de Mestre - derramou para o papel, é verídica. O pormenor do Senhor Silva (nome fictício) a esticar o pescoço por cima do balcão, a olhar para as caixas dispostas em fila, como soldados na parada, fêz-nos rir até às lágrimas.
Foi mais um momento de franca confraternização.
Obrigado Felício.
O sr. Tenório era um génio!
ResponderEliminarDevia ser ele o Ministro das Finanças. Assim, por exemplo, se faltasse dinheiro para a Educação, poderia ser que se encontrassem umas moeditas para a Saúde.
Digamos que a autorial moral é do Quito. Eu apenas fui o executor, o carrasco, tentando desjeitadamente transcrever para o papel a história que o Quito me contou e que eu desconhecia por completo.
ResponderEliminarO mais importante, porém, é aquilo que o Quito disse em comentário. A amizade refundou-se, esbatidas que estão as idades.
E o bairro, o nosso bairro, é tema incontornável quando nos encontramos...
Acho que conheci muito bem esse sr.Tenório...pela descrição, assenta que nem uma luva em alguém que era tão 'picuinhas' como ele ;-))
ResponderEliminarFartei-me de rir com a história!
O comentário anterior pertence a Teresa B.; por ter entrado aqui com outra conta, saiu também com outro nome...Mas tanto a T.B. como a Maria Teresa, gostaram muito da história do Quito, tão bem contada pelo Rui...
ResponderEliminarUm beijinho para a Maria Teresa e outro para a Teresa B.
ResponderEliminarAinda um dia, uma delas me há-de dizer o verdadeiro nome do Sr. tenório, para sabermos se acertou...
Dizemos sim senhor!Em e-mail, para não parecer mal...Beijinhos!
ResponderEliminarNão sei se será familiar...mas muitos de nós conhecemos um Tenório cá no Bairro.
ResponderEliminarE emboara ele não se importe que diga quem é...fica para mais tarde.
Até é natural que vá ler esta estória, né verdade RTP!Canal 1 o 2!!!!!
Mas era giro que estivesse relacionada com este Tenório do texto do Rui Felício!!
Assim sendo tenho um Tenório prá troca com as Teresas!
Nós somos assim.
ResponderEliminarAs recordações fazem BEM HÁ SAÚDE.
Tonito.
Não havia troco mas havia um exemplar respeito pelas rubricas orçamentais...
ResponderEliminarDesta vez, juntaram-se os nossos dois maiores contadores de estórias.
Um "deu à língua", o outro "fez o linguado".
Um abraço para AMBOS OS DOIS.
Então não vás mais longe. Fica já aí. Cá em casa, a minha carteira-metade usa esse mesmo raciocínio: "estes 50 euros não são para gastar, são para comprar sapatos para elas. Estes 20 euros..."
ResponderEliminarComo prometido, a Teresa B. enviou-me um e-mail onde diz qual é a verdadeira identidade do Sr. Tenório. E é de facto quem ela disse...
ResponderEliminarSomos um bairro com memória. A Teresa Bizarro, que já não vejo há muito tempo, também fez o seu exercício no caderno das lembranças.
ResponderEliminarSendo eu o autor moral deste episódio real, contado pelo Rui Felício, apenas venho aqui afirmar algo que me parece importante e que, de resto, o Rui fez questão de destacar: o respeito que todos os pioneiros do Bairro nos merecem. Eles foram a semente de um grande projecto associativo, que teve pernas para andar. Já é longa a caminhada. Aos mais novos e aos outros, resta dignificar uma obra que nos pertence a todos...
Quito, se soubesses as saudades que tenho do café das manhãs de domingo!!!Nunca mais consegui sair para vos encontrar, que 'outros valores mais altos se alevantam'...Esta história, como todas as que tu e o Rui partilham connosco, é uma maravilha.
ResponderEliminarE quando a li, dei uma gargalhada, por ter 'visto' logo o finório do Tenório, cujas histórias davam pano para mangas...
Beijinhos a todos!!!
Teresa, isto de nos encontrarmos só virtualmente...bolas, nem uma manhã dominical?!
ResponderEliminarSurpreende-nos!
A minha mãe também tinha esta prática das caixinhas.
Uma para os selos, outra para o arranjo das meias de vidro, outra da caixinha dos furos de chocolates...
Por vezes uma caixa emprestava a outra, mas deixava um vale com a quantia retirada!
As contas não podiam falhar, havia prazos para pagar aos fornecedores e havia de se saber o lucro...
Outros tempos, de grande rigor e sem subsídios.