da
Dasy
Tenho uma casa com vinte janelas e de todas elas se vêem o mar e o sol eterno. Quando quero que seja noite, para dormir e sonhar com o que não faço, corro todos os grandes e negros reposteiros, e invento uma lua só para mim.
Numa das janelas da minha casa-de-vinte-janelas, vi claramente visto, certo dia (que não sei qual…), um homem a vaguear nas areias que são as do mar-que-nunca-acaba. E voltei a vê-lo. E tive de falar-lhe.
Falar com as pessoas, é muito difícil. Mais difícil, fazer-nos entender por elas. Mas, às vezes, não é preciso mover os lábios para se falar…
O homem vestia grosso casacão de uma pele qualquer e, sobre os olhos, caía- -lhe a aba larga de um chapéu de feltro. E a cara era só boca: uma boca de lábios grossos, de cantos caídos em sinal de tristeza.
— O meu nome é Ana…
Pouso sobre mim, calmamente, os grandes olhos sombrios (só do chapéu?…), e continuou no passo sincopado, deixando-me para trás.
Corri pela areia húmida. Alcancei-o de novo e coloquei-me bem de fronte da sua figura grande, cuja sombra me cobria.
— Sou a Ana-das-vinte-janelas. Moro ali. Quem é você?
A sombra dele continuou a cobrir-me. E cobriu-me durante muito tempo. Até ambos nos cansarmos da posição erecta e estática; até ambos nos sentarmos, sempre mudos, as pernas cruzadas, o olhar nas ondas que fustigavam a areia. Olhei-o, depois, na sua posição contemplativa, o perfil bem recortado; e o rosto era-me familiar. Como se o conhecesse de longa data. Como se, uns anos afastados, a onda do reconhecimento e recordações me banhassem, com fúria de mar revolto.
— Como te chamas?
Era como um grito. Como uma súplica-de-raiva à solução de um problema.
E o homem grande, cujo grosso casacão-de-uma-pele-qualquer tornava maior, acordou do seu sonho nas cristas das ondas.
Eram verdes os seus olhos, e negro o longo cabelo que o chapéu deixou a descoberto.
O nome não me saltou aos lábios por mistério inexplicável, como todos os mistérios. E ele afastou-se, de novo o chapéu enterrado no crânio da cabeça ainda jovem. E a frase que escreveu na areia húmida, ficou ali a meu lado: "Nem a morte deve ser solitária".
Tenho uma casa com vinte janelas e de todas elas se vêem o mar e o sol eterno; e, agora, o homem grande cujo grosso casacão-de-uma-pele-qualquer torna ainda maior.
Tenho uma casa com vinte janelas e a companhia de um homem que já teve nome e amigos, apesar daquela solidão, além, entre as minhas janelas e a espuma da raiva das ondas.
23 de Novembro de 1972
Ilustração de Agustín Casillas, Escultor Espanhol de Salamanca, que fez questão de oferecer à Daisy, depois de ler o livro. |
(...)" uma boca de lábios grossos, de cantos caídos em sinal de tristeza." (...)
ResponderEliminarNão é uma frase, é uma fotografia. Bastaria ela para nos dar a conhecer o enigmático homem de chapéu de abas largas.
(...) " e o rosto era-me familiar. Como se o conhecesse de longa data." (...)
Também eu não precisei de o conhecer, bastou-me ler para o considerar como um conhecido de longa data.
E à Ana da casa das vinte janelas também, quando os "vi" sentados de pernas cruzadas na areia húmida da praia a contemplarem o mar.
" Tenho uma casa com vinte janelas ..."
ResponderEliminarEu precisaria de muitos mais adjetivos, para caraterizar a fulgurante genialidade deste conto da Daisy. É para ler e reler.
Em cada palavra, em cada frase, um toque de mistério de de magia.
Parabéns, Daisy.
Não posso, contudo, deixar de saudar o Rafael, por ter acompanhado o texto, com esta magnífica gravura.
Um abraço a todos ...
Um conto genial!
ResponderEliminarQuanto à gravura faz parte do texto:
lustração de Agustín Casillas, Escultor Espanhol de Salamanca,
que fez questão de oferecer à Daisy, depois de ler o livro
Um tema abordado de forma tão subtil e ilustrado por mão de mestre tornam este conto uma delícia de leitura!
ResponderEliminarReli com todo o carinho, Daisy!
" Mas, às vezes, não é preciso mover os lábios para se falar… "
ResponderEliminarPois não. Para quem sabe escrever e transmitir pensamentos, basta pegar num lápis...
Um beijo, Daisy.