Brancas memórias ...
É no mês de Dezembro que desaguam todas as emoções. É tempo de fazer balanço de um ano de alegrias, tristezas e canseiras. De recordar os amigos e familiares que partiram. O reabrir de chagas antigas e recentes. E de recordar os outros. Os que connosco convivem numa amizade fraterna. E é nisto que vou reflectindo, enquanto guio o meu carro ao encontro das neves trasmontanas. Dia três de Dezembro, acordou ensolarado. Decidi enfrentar a estrada, subindo no mapa do país até Terras de Basto. A televisão desaconselhava o percurso, que podia revelar-se duro e perigoso. Porém, partimos. Uma passagem pelas estradas geladas da Guarda, com os telhados das casas a luzir. Uma cuidadosa condução até Viseu não fosse o diabo tecê-las. Depois, com alguma preocupação, apontamos proa a caminho do Norte profundo. Há medida que vamos galgando a estrada, as montanhas e os campos vão-se vestindo de uma neve cada vez mais espessa. Não se vê vivalma. São quilómetros e quilómetros sem fim, sem nos cruzarmos com um carro. A meio da tarde, a chegada ao sopé do Monte Farinha. E é ali, numa casa solarenga do século XVII, que um grupo de ex-combatentes me espera. Somos oito e as nossas respectivas “ajudantes – de – campo”. E é nesses dias gloriosos, que vamos fazendo as nossas incursões por Trás-os-Montes. E à noite, ao calor da enorme lareira, falamos de tudo. Menos da guerra crua. Porém, este ano, bebendo um Douro de 97, a conversa descambou. Um dos nossos, por sinal o anfitrião, foi testemunha privilegiada dos trágicos acontecimentos de Maio de 1973, em Guidage, e das nossas pesadas baixas. Cheirou a morte e um dia, disse a uma alta esfera militar, que já não tinha condições psicológicas para continuar naquele inferno. Estranhamente, um mês depois, foi atendido. Como oficial miliciano, foi mandado para a Ilha das Galinhas, chefiar o presídio militar. Um oásis, em tempo de guerra. No seu temperamento cordato, cedo adquiriu o respeito dos reclusos. O presídio tinha uma camarata de presos de delito comum, e outra de presos políticos. Um dia, um africano abeirou-se dele e disse-lhe: ” … sabe, sou angolano e vim para aqui deportado. Vivia em Luanda, e fiquei com o meu curso a meio por ser simpatizante dos partidos que lutam pela independência…e agora só tenho um pensamento na cabeça …fugir desta ilha …e venho aqui dizer-lho cara a cara, porque o Senhor é boa pessoa …”. O meu camarada de armas, depois de se refazer da surpresa de tal franqueza, respondeu-lhe: “ … sabe, eu sou português, cursava o terceiro ano de Direito em Coimbra, e tenho o curso a meio, porque vim aqui parar. Pela minha responsabilidade, se o Senhor fugir, terei que mandar procurá-lo. Se conseguir escapar, fico muito satisfeito, mas se for apanhado, no âmbito das minhas competências, não permitirei que alguém exerça represálias sobre si …”. Por segundos, ficaram frente a frente, fitando - se, olhos nos olhos. Depois, estenderam a mão um ao outro, cumprimentando-se demoradamente. E ficaram amigos. O meu camarada de armas, regressou um dia a Coimbra e acabou o seu curso. Tem hoje o seu escritório, numa simpática cidade do norte do país. E foi este o pitoresco episódio que nos contou, a cerca de quatro décadas de distância do cenário de guerra, enquanto pequenos flocos de neve batiam levemente nas vidraças das janelas. Brancas memórias …
Q.P.
Q.P.
O calor desse episódio quase derrete a bela fotografia de neve que publicaste.
ResponderEliminarE, contudo, não constitui surpresa para mim. Outros análogos conheci, alguns deles comigo mesmo.
Não com prisioneiros mas com os soldados.
Lembro-me de os ter esclarecido numas eleições para a dita Assembleia Nacional e que até ao mato vinha arrebanhar votos na União Nacional.
A sua fraca politização dificultava-lhes o entendimento e pediam-me ajuda.
Sem querer indicar-lhes caminhos, porque sempre prezei a liberdade de cada um,limitava-me a dizer-lhes que "votar" significa "escolher".
E que o que lhes estava a ser apresentado era uma lista única, sem hipóteses de escolha, portanto.
Não podendo escolher, o voto deixava de ser uma escolha e passava a ser um cheque em branco.
Eles que decidissem o que fazer...
No meu pelotão só dois votaram.
Um mês depois tivémos a visita do Adminstrador de Bafatá que vinha incumbido de indagar porque motivo houve uma tal abstenção.
Já não sei que desculpa lhe inventei, mas as coisas ficaram por ali...
----
Desculpa, amigo Quito, mas as lembranças acorrem-me e não resisti a contar isto...
Guidage era de facto o cu do mundo, mas olha que a Ilha das Galinhas, mesmo não havendo guerra, também era um sítio do pior que há...
ResponderEliminarJá lá estive depois da guerra. É uma ilhota que se percorre em meia duzia de passadas curtas.
Esse teu amigo não estava formalmente preso mas era como se estivesse.
Porque não dispor de liberdade de movimentos é quase como estar preso...
Quase sinto vergonha de ter passado 27 meses em Timor... Eu sabia o que era o inferno da Guiné e de alguns lugares de Angola e Moçambique!
ResponderEliminarMas nada fiz para ir parar a Timor, foi pura sorte e que sorte!!!...
Gostei muito do texto do Quito e do Comentário do Rui!
Aquilo que aqui é referido, e bem contado pelo Quito e pelo Felício, são ´recordações de momentos vividos intensamente, e que indiciam o quanto vos tocou e como esses momentos ainda estão bem presentes.
ResponderEliminarAbílio
Quito
ResponderEliminarMais um artigo escrito pela tua pena que não se lê simplesmente mas se absorve. Sem dúvida, uma pessoa rectilínia que atuou de acordo com os seus princípios. Só é pena o que vai acontecendo na Guiné nos nossos dias. Pelo que conheci do outro lado, talvez os que se encontrem afastados dos grandes centros, tenham uma vida mais calma mas a população em si nada ganhou pelas notícias que vou ouvindo e lendo.
Também por onde andei encontrei alguns no mesmo género tanto nos militares como nos civis. Assisti à firmeza de um jornalista para com a censura composta de pides, que jamais esquecerei.
Logo que terminada a guerra, seguiram-se momentos de alegria aonde homens que ontem tinham sido inimigos, riam-se uns com os outros a falar de como tinham tentado aniquilar o que estava à sua frente.
Se um ou outro mostrava incompreensão por o outro ainda estar vivo, também mostrava a satisfação de estarem a beber uma cerveja juntos. Foram momentos muito lindos, inesquecíveis, só que pouco tempo depois começaram a agarrar nos civis e por motivos sem base nenhuma, a metê-los em estádios como Pinochet fêz. Fui ver um desses estádios na cidade de Maputo. Depois levávam-os para campos de reeducação, que mais não eram que de concentração. Para ironia da situação, nesses estádios havia pouquíssimos brancos pois também já lá haviam poucos e os que aí estavam, tinham passaporte para partirem se assim o quizessem e portanto não foram eles que sofreram mais.
Com todos os defeitos porque ninguém é perfeito, ainda bem que apareceu um Joaquim Chissano que não sei como, não fez parte dos fundadores da Frelimo fuzilados sumáriamente em 25 de Junho de 1977, como o pai do atual dessidente e presidente da cãmara da cidade da Beira. Pois, tive a possibilidade de viver o antes, durante e depois, o que tráz recordações que vão connosco. No caso da Guiné ainda não apareceu nenhum outro "Chissano". Dá para pensar.
leio com interesse e emoção...
ResponderEliminara amizade prevaleceu com os companheiros de guerra... ora se riem ora se emocionam...mas o convivio é saudável e as rotas vão sendo cumpridas...ora com neve ora com sol ora com chuva...isso é o que importa!
Hoje estive (com o nosso Rafaelito) no lançamento do livro «a última missão». E o autor falou de excertos do livro, que tem como fulcro Guidage.
ResponderEliminarEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarConvencao de Genebra...prisioneiros de guerra...respeito mutuo!!!???
ResponderEliminarTambem no Planalto dos Macondes....havia muitos Guidages!
Um inferno a Serra do Mape!
Mas...a conselho medico...
Ponto final
O J. Leitão tem muita razão. Penso que nunca houve respeito mutuo pela grande maioria dos prisioneiros, de um lado e de outro durante a guerra e mesmo depois, já no tempo de transição. Inaceitável. Conheçi casos sobre o assunto mas como infelizmente tem acontecido em todas as guerras porque a guerra é do mais sujo que há, pelo momento não vou falar neles. O ser humano é incompreensível. Ainda agora em paz se soube o que se passou com os mineiros no interior da mina do Chile assim como na floresta com Ingrid Bettencour e seus próprios colegas prisioneiros. É claro que situações destas só dão para se tentar compreender os porquês mas não justificam os atos. Compreendo plenamente o J. Leitão.
ResponderEliminarAprecio imenso o que escrevem sobre as vossas vivências nas guerras de África!
ResponderEliminarCom estes textos, não só do Quito como também do Chico ou do Zé Leitão consigo compreender melhor o que foi essa guerra, que apenas acompanhei pelos jornais e pela televisão(o que podia passar).
Admiro sobretudo a maneira simples mas literàriamente fantástica e não muito dramática como narram alguns dos episódios que por lá viveram!
Os episódios mais dramáticos, penso eu, não vos darão muito prazer relatar!
O da Mariema é sublime!
Este das Brancas Memórias proporciona ao Quito mais um texto brilhante em que passa do relato de uma viagem longa e cheia de encantos de uma naturaza branca mas perigosa, desertificada, só paisagem, para terminar em mais um episódio, embora de guerra, contado e vivido por um dos companheiros desta reunião que o levou até Terras de Basto e no qual pudemos constatar como mesmo em guerra é possivel haver diálogo, compreensão e tolerância!
Fiquei também hoje na apresentação do livro do Coronel Moura "Última Missão" a saber um pouco mais sobre a guerra na Guiné!
Um dos presentes natural de Cantanhede e que era quem me ia levar as botijas de gás a casa, foi um dos que esteve nesse dia em Guidage!
Por respeito a vós e a tudo por que passaram, limito-me a ter o prazer de vos ler, mas...sem mais comentários.
ResponderEliminar