segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

CRÓNICA DE UM REI SEM TRONO ...

" ... um rei sem trono ..."

É Tempo de Natal. É Tempo de emoções. Ao final da tarde, lá para o final da tarde, os homens da aldeia reúnem-se no café “Portas da Serra”. E é em redor da lareira que conversam. Falam da agricultura. Falam da mulher, dos filhos e dos netos. E da vida. Uma comunhão de sentimentos partilhados entre si, ao crepitar da chama e ao estalar da lenha seca na fogueira. Mas há os outros. Os que se juntam ao aconchego do lume, mas não têm de que falar. Um dia, adoeceram e não trabalham. Não têm mulher, nem filhos, nem netos. Vivem sozinhos, com a ajuda da comunidade que lhes dá a mão. É o caso do Mário. Nasceu nesta terra, num dia frio de Novembro. Muitas foram as privações que passou e passa. Apenas o trabalho do pai, na lavoura, alimentava as cinco bocas daquela casa. Muitas vezes, duas sardinhas para dividir pelos pais, por ele, e os outros dois irmãos. A mãe e o pai comiam o rabo e a cabeça, deixando a parte do meio para os filhos. Um dia, um dos irmãos, partiu para Moçambique. Por lá morreu, numa emboscada. Os pais também partiram – a lei natural da vida. O outro irmão fez-se ao mundo, e o Mário trabalhou enquanto pôde, num armazém de vinhos, nesta terra que o viu nascer. Muito gemeu, com as toneladas de mercadoria que lhe passaram pelas sacrificadas costas. Mas era aquele o seu sustento. Até que o armazém fechou. E é assim, no arrastar dos dias, que o Mário vai fazendo uns pequenos trabalhos, para angariar as patacas suficientes para alimentar o único companheiro que tem na vida – o cigarro. Deambula pela aldeia, curvado para a frente, sempre pensativo. Ausente. Por vezes, no marasmo dos dias, encontra no café “Portas da Serra”, o seu refúgio. Senta-se à fogueira, com um olhar parado. Porém, se o questionarem, alimenta uma conversa. Entre o riso e o drama, vai desafiando a vida. Tem vincadas no rosto as agruras do passado. E do presente. Mas baila-lhe nos lábios um sorriso sarcástico, quase de desdém. É o riso do palhaço pobre. Uma forma triunfante de lidar com o Destino. Quando ri, deixa ver os dois únicos dentes amarelecidos pelo fumo e que ainda lhe restam, no maxilar inferior. Há dias, juntamo-nos os dois à volta da fogueira. Pediu-me dinheiro para cigarros, que não pude recusar. Estimulado pela oferta, contou-me em pormenor, episódios da sua desgraçada vida. Depois, por momentos, do novo se afundou nos seus pensamentos, os olhos no vermelho incandescente da lareira. quei a fitá-lo, poFir breves instantes. Entre nós, apenas o som reconfortante do crepitar da chama acolhedora. Foi então, que aquela frase fugidia me saiu involuntariamente da boca e perguntei-lhe: “… Mário … tu és feliz? …”. A pergunta pareceu surpreendê-lo. Por uns instantes, olhou-me, como que incrédulo, para depois me responder: “… eu, Senhor Pereira !?… eu sou um rei !!! …”.
Q.P.

16 comentários:

  1. A felicidade é feita de imperceptíveis nadas.

    O Mário que pareço conhecer de há muito, graças às certeiras e rigorosas pinceladas do Quito, faz-nos supor que a vida já lhe roubou todos os resquícios de felicidade.

    Mas a inesperada resposta que disparou à pergunta do Quito,faz-nos descobrir que por detrás da aparente desgraça, há sempre um singular e inexplicado motivo de felicidade que suplanta todas as agruras sofridas.

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  2. "Se eu não fosse como sou um rei...
    e tivesse por palácio uma cabana"
    (versos do poeta Nuno Guimarães in Cantar de Amor).

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  3. Ontem, ao jantar , vi o príncipe William com a sua noiva, a entrar num evento qualquer, seguidos por um grupo de pessoas, com flashes a disparar, câmaras a filmar e uma filinha de funcionários (seria o Harrod's?!) a aplaudir o casalinho.
    Quem lhes dera, nem que fosse por um instante, o luxo da vossa lareira no café “Portas da Serra”.

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  4. Que beleza interior do simplesmente Mário...
    Rei, sem palácio e mordomias mas alegre por poder viver e ter amigos bons!

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  5. Um rei que nos dá uma grande lição de vida!
    Ter um súbdito amigo a seus pés que lhe dá um cigarro e se dispõe a conversar com ele, para quê o trono?

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  6. Tento adivinhar o conteúdo da chávena do Quito e vem me à memória os "chás" que as Senhoras finas de Coimbra iam tomar à Sirius e ao Nicola.

    A uma concupiscente piscadela de olho, o empregado enchia as chávenas de chá com uma bebida mais consistente e energética.

    Mas não quero fazer maus juizos e dou de barato que a chávena do Quito o que contém é simplesmente café...

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  7. Com chá,ou sem chá,Quito brindou-nos com mais um belo texto.
    Há momentos em que todos desejaríamos ser "Mários",pois as pequenas coisas(as grandes já perderam o sentido) é que nos trazem a nossa dose de felicidade.
    É nesses momentos que só o sentimento e a sensibilidade contam.
    De material,um cigarro chega.
    Um abraço.

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  8. Ontem, no nosso Bairro, vários meninos estiveram à porta da antiga mercearia do Senhor Nunes, à volta da fogueira. Foi de rir até ás lágrimas, sobre peripécias dos bandeirantes do nosso bairro. O Felício, com a sua língua "viperina" vem agora insinuar que eu não estaria a tomar café, mas sim um bagaço ou coisa parecida. Mentira. Era mesmo café. Mas, na sequência da ideia, lembrei-me de um bandeirante do nosso bairro, que lá para os lados de Espinho tinha uma prestigiada missão de fiscalizar algo e lhe era vedado beber. Então, com um ar sizudo, chamava o funcionário da Instituição e pedia " um chá". Era logo atendido. Vinha uma chávena - almoçadeira cheia de vinho branco ....

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  9. Cada homem é dono dos seus sonhos e com eles consegue ser feliz e viver.
    Olga Gonçalves em "mandei-lhe uma boca" faz a descrição da felicidade dum sem-abrigo que também se julga um rei...
    Quito, obrigado pelo retrato que sábiamente fizeste deste Mário.
    Abílio

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  10. Voltando ao Sr. Mário, Quito:
    Há gente que se contenta com tão pouco, para ser feliz!!!!
    Abençoados sejam!!!!

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  11. Obrigada ao Mário pela lição de vida que nos dá
    e ao Quito, «Puto do nosso Bairro», sempre atento e sensível aos mais desfavorecidos

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  12. À lareira...leio...
    à lareira...oiço

    http://www.youtube.com/watch?v=S1aqx9Vj_c8

    Abraço caro amigo Quito! Belo texto. Mais um!!!

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  13. Estás sempre a surpreender-nos!
    Desta feita enriqueceste este teu texto com uma excelente foto!
    Este teu espítito de amizade sincera não passa despercebido a ninguém!
    Conversam contigo,desabafam os seus problemas, seus dramas, porque tu sabes ouvi-los, compreendê-los e reconfortá-los com palavras,
    e é por isso que o Mário, depois daqueles momentos tão cheios de calor humano que lhe estavas a transmitir sem dúvida que pelo menos naquele momento se sentiu UM REI!
    Um café bem saboreado, num quadro perfeito!
    Como dizem por aí:
    BEM-HAJAS!

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  14. Com a lareira a crepitar, uns cigarros para queimar, sentindo-se alguém importante pela atenção que lhe era dispensada, o Mário sentiu-se mesmo um rei.

    Mais um homem simples que sai do anonimato pela caneta generosa do Quito.

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  15. Mais um texto muito humano do Quito. O Sr. Mário, é uma das imensas pessoas que nada mais pode esperar da vida do que o dia a dia lhe apresentar. Teve a capacidade de aceitar a situação, o que é muito difícil e só pessoas com uma certa filosofia da vida, aceitam. Dentro da fatalidade de que sem dúvida está consciente, se sente um previligiado com o pouco que tem pois poderia estar ainda pior. Nós é que não estamos habituados a ver estas situações por este angulo. Deve ser uma pessoa com um fundo extraordinário.

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