" ... um rei sem trono ..."
É Tempo de Natal. É Tempo de emoções. Ao final da tarde, lá para o final da tarde, os homens da aldeia reúnem-se no café “Portas da Serra”. E é em redor da lareira que conversam. Falam da agricultura. Falam da mulher, dos filhos e dos netos. E da vida. Uma comunhão de sentimentos partilhados entre si, ao crepitar da chama e ao estalar da lenha seca na fogueira. Mas há os outros. Os que se juntam ao aconchego do lume, mas não têm de que falar. Um dia, adoeceram e não trabalham. Não têm mulher, nem filhos, nem netos. Vivem sozinhos, com a ajuda da comunidade que lhes dá a mão. É o caso do Mário. Nasceu nesta terra, num dia frio de Novembro. Muitas foram as privações que passou e passa. Apenas o trabalho do pai, na lavoura, alimentava as cinco bocas daquela casa. Muitas vezes, duas sardinhas para dividir pelos pais, por ele, e os outros dois irmãos. A mãe e o pai comiam o rabo e a cabeça, deixando a parte do meio para os filhos. Um dia, um dos irmãos, partiu para Moçambique. Por lá morreu, numa emboscada. Os pais também partiram – a lei natural da vida. O outro irmão fez-se ao mundo, e o Mário trabalhou enquanto pôde, num armazém de vinhos, nesta terra que o viu nascer. Muito gemeu, com as toneladas de mercadoria que lhe passaram pelas sacrificadas costas. Mas era aquele o seu sustento. Até que o armazém fechou. E é assim, no arrastar dos dias, que o Mário vai fazendo uns pequenos trabalhos, para angariar as patacas suficientes para alimentar o único companheiro que tem na vida – o cigarro. Deambula pela aldeia, curvado para a frente, sempre pensativo. Ausente. Por vezes, no marasmo dos dias, encontra no café “Portas da Serra”, o seu refúgio. Senta-se à fogueira, com um olhar parado. Porém, se o questionarem, alimenta uma conversa. Entre o riso e o drama, vai desafiando a vida. Tem vincadas no rosto as agruras do passado. E do presente. Mas baila-lhe nos lábios um sorriso sarcástico, quase de desdém. É o riso do palhaço pobre. Uma forma triunfante de lidar com o Destino. Quando ri, deixa ver os dois únicos dentes amarelecidos pelo fumo e que ainda lhe restam, no maxilar inferior. Há dias, juntamo-nos os dois à volta da fogueira. Pediu-me dinheiro para cigarros, que não pude recusar. Estimulado pela oferta, contou-me em pormenor, episódios da sua desgraçada vida. Depois, por momentos, do novo se afundou nos seus pensamentos, os olhos no vermelho incandescente da lareira. quei a fitá-lo, poFir breves instantes. Entre nós, apenas o som reconfortante do crepitar da chama acolhedora. Foi então, que aquela frase fugidia me saiu involuntariamente da boca e perguntei-lhe: “… Mário … tu és feliz? …”. A pergunta pareceu surpreendê-lo. Por uns instantes, olhou-me, como que incrédulo, para depois me responder: “… eu, Senhor Pereira !?… eu sou um rei !!! …”.
Q.P.
Q.P.
A felicidade é feita de imperceptíveis nadas.
ResponderEliminarO Mário que pareço conhecer de há muito, graças às certeiras e rigorosas pinceladas do Quito, faz-nos supor que a vida já lhe roubou todos os resquícios de felicidade.
Mas a inesperada resposta que disparou à pergunta do Quito,faz-nos descobrir que por detrás da aparente desgraça, há sempre um singular e inexplicado motivo de felicidade que suplanta todas as agruras sofridas.
"Se eu não fosse como sou um rei...
ResponderEliminare tivesse por palácio uma cabana"
(versos do poeta Nuno Guimarães in Cantar de Amor).
Ontem, ao jantar , vi o príncipe William com a sua noiva, a entrar num evento qualquer, seguidos por um grupo de pessoas, com flashes a disparar, câmaras a filmar e uma filinha de funcionários (seria o Harrod's?!) a aplaudir o casalinho.
ResponderEliminarQuem lhes dera, nem que fosse por um instante, o luxo da vossa lareira no café “Portas da Serra”.
Que beleza interior do simplesmente Mário...
ResponderEliminarRei, sem palácio e mordomias mas alegre por poder viver e ter amigos bons!
Um rei que nos dá uma grande lição de vida!
ResponderEliminarTer um súbdito amigo a seus pés que lhe dá um cigarro e se dispõe a conversar com ele, para quê o trono?
Tento adivinhar o conteúdo da chávena do Quito e vem me à memória os "chás" que as Senhoras finas de Coimbra iam tomar à Sirius e ao Nicola.
ResponderEliminarA uma concupiscente piscadela de olho, o empregado enchia as chávenas de chá com uma bebida mais consistente e energética.
Mas não quero fazer maus juizos e dou de barato que a chávena do Quito o que contém é simplesmente café...
Com chá,ou sem chá,Quito brindou-nos com mais um belo texto.
ResponderEliminarHá momentos em que todos desejaríamos ser "Mários",pois as pequenas coisas(as grandes já perderam o sentido) é que nos trazem a nossa dose de felicidade.
É nesses momentos que só o sentimento e a sensibilidade contam.
De material,um cigarro chega.
Um abraço.
Ontem, no nosso Bairro, vários meninos estiveram à porta da antiga mercearia do Senhor Nunes, à volta da fogueira. Foi de rir até ás lágrimas, sobre peripécias dos bandeirantes do nosso bairro. O Felício, com a sua língua "viperina" vem agora insinuar que eu não estaria a tomar café, mas sim um bagaço ou coisa parecida. Mentira. Era mesmo café. Mas, na sequência da ideia, lembrei-me de um bandeirante do nosso bairro, que lá para os lados de Espinho tinha uma prestigiada missão de fiscalizar algo e lhe era vedado beber. Então, com um ar sizudo, chamava o funcionário da Instituição e pedia " um chá". Era logo atendido. Vinha uma chávena - almoçadeira cheia de vinho branco ....
ResponderEliminarCada homem é dono dos seus sonhos e com eles consegue ser feliz e viver.
ResponderEliminarOlga Gonçalves em "mandei-lhe uma boca" faz a descrição da felicidade dum sem-abrigo que também se julga um rei...
Quito, obrigado pelo retrato que sábiamente fizeste deste Mário.
Abílio
Voltando ao Sr. Mário, Quito:
ResponderEliminarHá gente que se contenta com tão pouco, para ser feliz!!!!
Abençoados sejam!!!!
Obrigada ao Mário pela lição de vida que nos dá
ResponderEliminare ao Quito, «Puto do nosso Bairro», sempre atento e sensível aos mais desfavorecidos
GOSTO.
ResponderEliminarTonito.
À lareira...leio...
ResponderEliminarà lareira...oiço
http://www.youtube.com/watch?v=S1aqx9Vj_c8
Abraço caro amigo Quito! Belo texto. Mais um!!!
Estás sempre a surpreender-nos!
ResponderEliminarDesta feita enriqueceste este teu texto com uma excelente foto!
Este teu espítito de amizade sincera não passa despercebido a ninguém!
Conversam contigo,desabafam os seus problemas, seus dramas, porque tu sabes ouvi-los, compreendê-los e reconfortá-los com palavras,
e é por isso que o Mário, depois daqueles momentos tão cheios de calor humano que lhe estavas a transmitir sem dúvida que pelo menos naquele momento se sentiu UM REI!
Um café bem saboreado, num quadro perfeito!
Como dizem por aí:
BEM-HAJAS!
Com a lareira a crepitar, uns cigarros para queimar, sentindo-se alguém importante pela atenção que lhe era dispensada, o Mário sentiu-se mesmo um rei.
ResponderEliminarMais um homem simples que sai do anonimato pela caneta generosa do Quito.
Mais um texto muito humano do Quito. O Sr. Mário, é uma das imensas pessoas que nada mais pode esperar da vida do que o dia a dia lhe apresentar. Teve a capacidade de aceitar a situação, o que é muito difícil e só pessoas com uma certa filosofia da vida, aceitam. Dentro da fatalidade de que sem dúvida está consciente, se sente um previligiado com o pouco que tem pois poderia estar ainda pior. Nós é que não estamos habituados a ver estas situações por este angulo. Deve ser uma pessoa com um fundo extraordinário.
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