Em tracejado largo, os alinhavos amarelados ponteavam a bainha postiça. Embora ainda em bom estado, as calças azul escuro que lhe ofereceram, tinham um bom meio palmo a menos do que a medida certa para a sua altura. Ao contrário, na camisa às riscas, quase nova, que surripiara de um estendal na Estrada da Beira, cabiam lá dois como ele. A mais ligeira brisa enfunava-a , tal como o calor da chama enchia um balão em noite de São João.
As mangas arregaçadas deixavam ver os braços magros, ossudos, que balançavam quando saracoteava as pernas finas no seu caminhar desajeitado.
Os lábios ressequidos e lacerados, deixavam ver, quando se abriam num arremedo de sorriso, dois caninos escuros, apodrecidos, numa boca de onde já tinham há muito desaparecido os incisivos.
Na taberna do Sr. Ângelo, paragem obrigatória depois de deambular pelo bairro a pedir esmola, dava estalos com a língua e emitia um cavernoso som gutural de aprovação, de cada vez que emborcava mais um copo de três.
A troco de um tinto que lhe pagassem, metia na boca uma bomba de carnaval, acendia-lhe o rastilho com a ponta do cigarro e deixava que ela, com grande estrondo, lhe rebentasse entre os lábios. E exibia, orgulhoso, a seguir à explosão, a fumarada que lhe saia da boca e do nariz.
Lembro-me que morava no Areeiro e que lhe chamavam o “Pinto Calçudo”, mas não me recordo já do seu verdadeiro nome.
Rui Felício
As mangas arregaçadas deixavam ver os braços magros, ossudos, que balançavam quando saracoteava as pernas finas no seu caminhar desajeitado.
Os lábios ressequidos e lacerados, deixavam ver, quando se abriam num arremedo de sorriso, dois caninos escuros, apodrecidos, numa boca de onde já tinham há muito desaparecido os incisivos.
Na taberna do Sr. Ângelo, paragem obrigatória depois de deambular pelo bairro a pedir esmola, dava estalos com a língua e emitia um cavernoso som gutural de aprovação, de cada vez que emborcava mais um copo de três.
A troco de um tinto que lhe pagassem, metia na boca uma bomba de carnaval, acendia-lhe o rastilho com a ponta do cigarro e deixava que ela, com grande estrondo, lhe rebentasse entre os lábios. E exibia, orgulhoso, a seguir à explosão, a fumarada que lhe saia da boca e do nariz.
Lembro-me que morava no Areeiro e que lhe chamavam o “Pinto Calçudo”, mas não me recordo já do seu verdadeiro nome.
Rui Felício
Claro que gostei.
ResponderEliminarMas espero o que escreverás amanhã à noite.
Boa sorte.
Até amanhã.
Bom regresso. Pelo descrito até fui imaginando a pessoa que nem conheço ou não me lembro. Lembro-me sim de um senhor da nossa rua que vinha para casa sempre aconchegado. Subia o caminho que ia dar à Praça de Ceuta e ia abrindo todos os portões do lado direito da rua I*, na direção da rua Y (Moçambique). Em todos ia entrando até perto da porta da entrada das casas e ia saindo até que quando chegava à casa dele, perto da rua Q (Bartolomeu Perestrelo), batia com o pé numa pedra e então, sim: entrava em casa. Quando o malvado do pé passava ao lado da pedra, ia até à rua Y e ao ver que não tinha dado com a casa, voltava à Praça de Ceuta e lá começava a sua cruzada até bater na dita pedra. Não me lembra quem era a esposa mas pensava muito nela.
ResponderEliminar*Rua I: hoje ruas Infante Santo e Carvalho Araújo.
Quando o Rui Felício escreve, eu tenho a pretensão de que sei que há factos e pessoas que motivaram a sua história.
ResponderEliminarPor muito estranho que seja este "Pinto Calçudo", ele existiu.
Terá sido apanhado pela memória fotográfica do Felício e, submetido à sua fértil imaginação, aqui nos aparece com esta estranha figura.
Seja como for, não sabendo onde acaba o motivo e começa a veia motivadora para a leitura, tenho de vos dizer que quase senti o cheiro do hálito avinhado e da boca apodrecida do Pinto Calçudo.
A taberna do Sr. Ângelo não me passou ao lado. Conheci-a bem.
Não, nada de juízos precipitados...
Era o único sitio, que eu conhecesse, onde se vendia tabaco avulso e quando as moedas escasseavam no bolso era lá que eu ia comprar seis cigarros por dez tostões.
Que estranha figura, a minha !
Não conheci o Pinto Calçudo, mas depois de ler o texto do Rui é como se o tivesse conhecido!...
ResponderEliminarCoimbra sempre foi pródiga em figuras deste género!
Já agora, Carlos Viana, andaste a ser enganado por muito tempo, na taberna da Rua do Brasil que fazia esquina com a Ladeira das Alpenduradas, também vendiam cigarros a vulso, mas a 1 tostão cada.
São 19 linhas de uma prosa escorreita. A figura do "Pinto Calçudo", está muito bem construída. Poderosa mesmo. A sua roupa, a boca desdentada, fazem dela um personagem com vida. E a isto eu chamo arte. A arte de bem escrever.Parabéns, Rui Felício ...
ResponderEliminarAgradeço a simpatia dos comentários.
ResponderEliminarEstava esperançado que alguém ainda se lembrasse desta figura que ainda guardo fresca na minha memória, porque o homem existiu mesmo. Lembro-me dele teria eu os meus 10 anos de idade.
Foi, portanto, numa época em que o Carlos Viana ainda não andava por Coimbra e em que o Quito e o Alfredo eram ainda criancinhas.
Além de que o Alfredo só muitos anos mais tarde é que começou a frequentar o bairro.
É normal, por isso, que não se lembrem.
O Chico Torreira é que eu esperava que se lembrasse...
O correr da tua pena dá-nos sempre "coisas" belas como esta...não me lembro da figura castiça que descreves mas consegui "reconhecê-la"com minucia tal os pormenores com que a descreves...
ResponderEliminarDa loja do sr.Angelo recordo bem o coelho que se passeava pelo passeio!
A expressão "pinto calçudo" já não a ouvia há tantos anos...até isso recordei!
Rui Felício,
ResponderEliminarNão estou a ver quem seja. Das pessoas bem aconchegadas, lembro-me da pessoa descrita no meu comentário de quem não me lembro o nome e do saudoso Domingos. A pedir, lembro-me de um pobre que ia ao bairro com a mão à frente do peito, horizontal ao asfalto, e a cabeça inclinada de uma forma especial. Veio-se a descobrir que pobre, era mas as doenças físicas não existiam. É assim: lembro-me de certas coisas e esqueço-me de outras. Como me gostaria de lembrar mas não perdi tudo: li o teu artigo. Obrigado.
A figura descrita pelo Rui até poderia ser "o homem do saco", com que nos ameaçavam se não comessemos tudo!
ResponderEliminarFértil imaginação...
Não descanso enquanto não encontrar alguém que se lembre dele, para comprovar que não se trata de pura ficção.
ResponderEliminarTalvez o Chico Nunes se lembre...
Digo isto porque me lembro de ele uma vez ter rebentado na boca uma bomba de carnaval em frente à mercearia do Sr. Nunes...
Felício
ResponderEliminarQuando li o texto, recordei o homem. Não me lembro dele, mas de imediato me veio á memória um individuo no bairro que fazia essa "avaria", ou seja, rebentar uma bomba de carnaval na boca.Não é imaginação. O pobre individuo existiu mesmo.Quando escreveste o texto, percebi logo de quem estavas a falar.Não é ficção, mesmo percebendo-se do perigo que representava para ele...
O Pinto Calçudo foi a todos apresentado de forma excelente, ninguém ficou com dúvidas.
ResponderEliminarEu que não conheci nem me lembro de tal personagem, estou, através de ti, a vê-lo a caminhar desajeitado rua fora, pronto a tudo dar a quem satisfizesse o seu vício , até pondo em risco a própria vida com o estoiro duma bomba de carnaval na boca, a troco de um simples copo de três.
Triste é a sina de quem é dependente...
Felício, gostei da tua história e desculpa mas não conheci o teu Pinto Calçudo. O outro que conheci, fazia parte duma parelha de palhaços que vi no circo e que nos desmanchava a rir…
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarRui Felício,
ResponderEliminarAinda bem que já apareceu o Quito a corroborar o que escreveste.
De todas as formas escreveste uma recordação que tocou a ti.
Só que nesta época, já nos passa muita coisa.
A minha mulher lembra-se de ver um homem nessas condições há 32 anos mas não se lembra de o ver ou ouvir dizer que ele rebentava bombas na boca. Por outro lado a pessoa a que te referes deve ser muito anterior a quando ela foi para aí. Mais ainda, eu não me lembro deste senhor que a minha jóia fala. Dentro da mesma família acontece o mesmo.
Eu penso, que na nossa idade, quem vem aqui de peito aberto escrever, vem de boa fé dizer o que viveu, sentiu, pensa e da forma como na distância do tempo, ainda se lembra.
Quem lê, pode estar de acordo ou não e podem tomar a atitude de o expressar ou não.
No entanto, se alguém andar aqui para pôr a integridade de quem escreve em jogo, nesse caso, deve-o tornar explícito num comentário seu logo a seguir ou logo que possa. A transparência, acima de tudo.
Como depreendes, ninguém duvidou do que escreveste. Continua é a escrever. Desculpa lá esta "ordem" do cabo.
Sá agora, e já depois durante a tarde ter lido este texto do Rui Felício, que claro achei uma delícia, aqui venho fazer o meu comentário.
ResponderEliminarE só venho agora, porque tenho andado com um papelinho no bolso com o nome do Pinto Calçudo para ir perguntando aos meus amigos aqui no Bairro( e amigos do copo) se me sabem dizer algo sobre "rebentador de bombas" na boca!
Até agora nada consegui..., mas vou conseguir quando falar com a mãe do Angelito a Dona Ema!
Será que as bombas que o Pinto Calçudo rebentava da boca( seriam estalinhos?)-nós também os faziamos rebentar entre as mãos!-eram compradas na Tabacaria Celeste?
Vou dando notícias....
As bombas eram mesmo bombas de carnaval. Certamente compradas na Tabacaria Celeste. Não eram estalinhos!
ResponderEliminarJulgo que o homem as conseguia rebentar na boca usando uma técnica que lhes diminuía substancialmente a potência explosiva.
Acho que ele abria uma das pontas do invólucro de forma a facilitar a saída do jacto explosivo.
A D. Ema por certo se lembrará dele e assim ficará desfeito o cepticismo que transparece de quase todos os comentaristas...
A confirmarem-se tenho boas notícias para o Rui Felício...mas tenho que que esperar pelas próximas revelações do vikildisse!
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