Tratado de Alcáçovas - Toledo
De novo partir. De novo rumar a norte. Penetrar no Alentejo
profundo, ao som grandioso do cantar das cigarras. Aqui e ali, aglomerados
dispersos de pequenas casas brancas de janelas quadradas e singelas. Por entre
os telhados do casario, sobressai a igreja, como guardiã da religiosidade de um
povo e fiel sentinela do marasmo da campina. Cada aldeia, cada vila, é um
fragmento de felicidade. Uma delícia para os sentidos. Nós, os portugueses,
somos assim. Qualquer coisa nos emociona. E o Alentejo, perdido na vastidão da planície
solitária, oferece aos olhos do viajante tonalidades de vários matizes.
A terra negra de cultivo, a contrastar com o amarelo vistoso
dos girassóis. O verde viçoso que se divisa lá ao longe, apesar da canícula destes
dias, a fazer par com o silêncio solene dos sobreirais. São quilómetros e
quilómetros a vaguear por um tempo que se esgota no infinito das tardes quentes.
Apenas o mapa colorido, nos vai guiando nesta via - sacra de solidão.
São treze horas nesta tarde de Julho. O estômago já reclama
aconchego. Ali, ali ao fundo daquela recta, por entre uma onda de calor e de
mistério, divisamos uma igreja plantada no alto de um morro. Tem um aspecto
vetusto, uma dignidade e uma altivez que nos fascina. Que segredos de antanho
guardará na sua torre - sineira, resistente aos séculos e ao sol impiedoso de
cada Verão?. É a Igreja Matriz do
Salvador de Alcáçovas. Datada de 1530, teve porém a sua origem nas ruínas e na
capela do Castelo, com data de 1308, conforme nota explicativa junto do
monumento.
Em Alcáçovas parámos da fadiga da jornada. Uma residente,
indica-nos um local para almoçar, onde nos podemos refazer dos quilómetros já
percorridos. Lá dentro, lá dentro do restaurante, a temperatura é amena. Uma
meia dúzia de mesas e apenas um cliente, que vai mastigando um pedaço de pão
sem pressas, olhando um quadro pendurado na parede. Está absorto, no seu rosto
fechado, como que a levitar sobre os seus pensamentos pardos.
Nada como um toque de sabor a coentros, para a perfeita
harmonia de um cozinhado apetitoso. E um vinho de Pias, a lembrar o cantar arrastado
e em uníssono de um grupo de homens que são a marca – de - água do sentir
alentejano.
Ali, no restaurante simpático, recuperámos da jornada. O dono
é um homem novo e falador, enquanto atrás do balcão vai enxugando pequenas colheres
de café com um pano branco e passando chávenas e pires por uma torneira. O som
cavo do fio – de - água no ralo do lava- louça, preenche o silêncio soturno do
salão.
De repente, o nome de Alcáçovas, aflora-nos ao pensamento.
Algo de extraordinário ali aconteceu. Algo de histórico, transversal
aos séculos. Nada como perguntar ao dono do restaurante, no seu papel de patrão
e de empregado. Diz-nos, enquanto vai cerrando os olhos num esforço de memória,
que parece que foi naquela vila que separaram o mundo. Talvez fosse, acrescenta,
não muito certo dos seus conhecimentos sobre os nossos antepassados.
De novo a estrada. De novo as rectas sem fim. De novo a
caminhada para norte. No pensamento, o bailar daquela frase enigmática - a separação do mundo …
Porém, algo nos fazia acreditar tratar-se de um qualquer
entendimento entre portugueses e espanhóis. E era. Porém, dos seus contornos,
apenas os soubemos mais tarde, quando, numa pesquisa, o Tratado de Alcáçovas -
Toledo lá aparece, datado de 4 de Setembro de 1479, celebrado entre D Afonso V e
os Reis Católicos de Espanha. Muitos são os pormenores deste Tratado,
ratificado pelos espanhóis em 6 de Março de 1480.
A separação do mundo, na óptica do habitante da bela vila do
Alentejo, talvez fosse o acordo de soberania das Ilhas da Madeira, Açores, Cabo
Verde e Costa da Guiné por parte dos portugueses, em contraponto com a posse
das Ilhas Canárias por parte dos Espanhóis, impedidos por entendimento lavrado
em Alcáçovas, de navegarem para sul do Cabo Bojador, ao encontro dos interesses
da gente Lusa.
Era este o Tratado a que o bom alentejano se queria referir.
E eu, da separação do mundo, lembrei-me de um Portugal divido, a navegar a duas
velocidades. A frenética vida dos habitantes do litoral numa corrida contra o
tempo, em contraste com o doce vaguear pela planície alentejana, que ainda nos
permite sonhar com um pôr -do – sol incendiado de cores arrebatadoras e a
refrescante sombra derramada no asfalto pelos imponentes e eternos sobreirais.
Quito Pereira
Nesta viagem do Sul para o Norte do país, inflectindo pelo interior profundo deixando a cara e saturante auto - estrada, vale a pena a visita ao Fluviário de Mora. Excelentes instalações que albergam muitas espécies de peixes e não só. Também vasta informação que o viajante pode ler. O local é aprazível e bom para se fazer uma pausa na viagem.
ResponderEliminarPorém, um reparo. O local ao ar livre onde estão as lontras, parece-me um pouco abandonado e a carecer de intervenção. Águas muito sujas e local mal tratado, apesar de amplo. Estes animais em cativeiro, merecem melhores condições.
De qualquer forma, a visita é obrigatória a quem vá para aqueles lados do nosso arrebatador Alentejo ...
É pacífico reconhecer-se que os contratos são quase sempre desrespeitados pelo contratante mais forte e com maior poderio económico, logo que os seus clausulados deixem de lhe interessar.
ResponderEliminarTambém nos tratados internacionais assim sucede.
Subscritos em momento que interessava ao País mais poderoso, logo este se apressava a incumpri-lo quando em momento subsequente as vantagens que estiveram na sua origem desapareceram.
Assim se passou sempre entre Portugal e Castela.
Foi o caso do Tratado de Salvaterra, do de Zamora, do de Alcáçovas-Toledo, do de Tordesilhas, do de Madrid e de outros.
Era o tempo de partilha do mundo conhecido ( Peninsula Ibérica ), em relação aos prmeiros e do mundo desconhecido, relativamente aos que foram assinados na época dos Descobrimentos.
Na primeira oportunidade, Castela e mais tarde o Reino Unido de Espanha, não se coibiram de fazer deles tábua rasa.
Por sorte, salvo o periodo negro de 1580-1640 ( muito por culpa dos arranjos interesseiros da nobreza ), os portugueses sempre conseguiram vencer o maior poderio militar de Castela, de armas na mão.
É isto que se me oferece sobre a vertente histórica da crónica do Quito..
Todavia, mais importante que isso, é a descrição primorosa da viagem, das paisagens, dos pormenores da “albergaria” e do seu dono, onde os viajantes se acolheram para retemperar forças e se abrigarem do calor tórrido alentejano.
Foi como se eu próprio tivesse viajado no carro do Quito e com ele me tivesse sentado no restaurante para comer uma refeição retemperadora, com as características da tipica gastronomia alentejana.
Agradeço o teu comentário, Rui.
ResponderEliminarNa verdade, a frase do alentejano "a separação do mundo", foi o mote para a construção deste texto. Não foi, naturalmente, qualquer exercício de História de Portugal, porque não sou versado na matéria. Apenas me limitei a consultar, na curiosidade de saber o que o dono do restaurante queria dizer com aquilo. Para ele, na sua mente, foi em Alcáçovas que se fez a separação mundo.
Importante para mim foi, durante horas, conviver com as palavras, na tentativa de conseguir trazer comigo o leitor nesta viagem. É esse, verdadeiramente, o meu prazer. Um exercício mental, que me leva por vezes tempo a fazer, cortando, acrescentando, procurando a imagem que mais se aproxime da minha realidade vivida.
Se a crónica conseguiu preencher alguns minutos ao leitor, não sei. Mas sei, que chamou a tua atenção, neste lazer de Verão e que não deixaste de reviver os teus conhecimentos remotos de História, armazenados num passado de saudade, aquando do teu tempo de estudante. Também eu, revivi páginas que li na juventude, ao ler aquele Tratado, já arquivado nas estantes da minha memória.
O que fica deste texto, é o Alentejo. O que fica deste texto, é a cordialidade da gente alentejana. Da História de Portugal fica apenas e só, despretensiosamente, um apontamento breve, na rota de Alcáçovas ...
Um abraço
Se as revistas de viagens fizessem descrições com este rigor e perfeição, eu escusava de gastar dinheiro em viagens, bastava comprar as revistas... Acabei de fazer uma bela viagem pelo interior do Alentejo! Até o calor eu senti!...
ResponderEliminarObrigado, Alfredo, pela presença. Por falar em calor, aqui está muito. Deve estar bem melhor melhor numa varanda de Quiaios que eu conheço.
ResponderEliminarUm abraço
A história,a geografia,a culinária,a agricultura e a gente alentejana entrecuzam-se nesta tua viagem de regresso à terra beiroa...
ResponderEliminarMerecidas férias que te proporcionaram um olhar intenso por tudo que te rodeiou
ao volante do teu XPTO .
Ora aqui está como é que se deve conhecer o desconhecido ou revê-lo se for o caso.
Abraço, Olinda. Acabo de aqui chegar, com a linda temperatura de 44.5 graus dentro do carro. De assar ...
ResponderEliminarToma lá outro abraço
lembro-me destes tratados todos desde a 4ª classe, mas já os baralhos todos.
EliminarTenho que rever a matéria.
Lembro-me melhor do de Tordesilhas porque me lembra comidinha.Tortilha!
Agora com tratado ou sem tratado tenho saudade quando ia e vinha dos Algarves pelas frondosas estradas passando e quase sempre parando em cada terra do percurso, demorando sempre 2 dias!!1
Normalmente parávamos em Alcacer do Sal onde pernoitávamos!Conversava-se e cantava-se pelo caminho.Agora nessas viagens em velocidade de autoestrada, entra-se mudo e sai-se calado, é preciso não haver distracção para depois se poder dizer:fiz o percurso em 3 horas!!!Foi sempre a abrir!!!
Tou como a Amália: já não vos acompanho mais...Ide que vou lá ter!Se for!
Em termos de velocidade, na ida para baixo, parece que a coisa está mais moderada, por causa dos radares. Toda a rapaziada anda na ordem dos 13O a 14O Km/hora, que ainda não dá penalização em auto-estrada.Pelo menos é o que ouvi dizer na televisão a um reputado advogado ...
ResponderEliminarUm Tratado és tu, com essa história da tortilha ...
Abraço, Rafa
Quito, contigo fiz a travessia do nosso Alentejo. Contigo revi a nossa História. Contigo entrei no restaurante e vi o dono a limpar as colheres do café.
ResponderEliminarNotável descrição, como é habitual!
Obrigado por teres vindo na boleia, Celeste Maria. É sempre bom sentir o calor dos amigos que nos estimam.
ResponderEliminarUm abraço
Excelente lição de História de Portugal. Obrigado Quito! Abraço
ResponderEliminarUm abraço, Leitão. Cá fico à espera do tal texto ...
EliminarAquilo que, para qualquer comum viajante, seria pura e simplesmente uma paragem retemperante e um almoço reconfortante, para o Quito logo se transformou numa boa oportunidade para melhor conhecer o recanto por onde passava e para tentar compreender a voz de um popular, neste caso, dono e empregado do seu próprio restaurante...
ResponderEliminarDessa conversa, nasce o mote para mais uma excelente crónica.
Obrigado, Quito.
Obrigado Viana. Aparece sempre. Abraço para vós ...
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