quinta-feira, 4 de julho de 2013

POR TERRAS DE ALÁ ...



 







Tocadores da Medina de Oujda ...
(foto São Vaz)
 
Quando aterramos no aeroporto internacional de Oujda, a sensação é de vazio. De dentro do MD 8O de matrícula espanhola estacionado na placa, só vislumbramos planícies ao longe e um ou outro cabeço despido de vegetação. Afinal o que vemos do ar, com campos de cultivo aqui e ali e poços da água que escasseia, tão necessária à rega das árvores de fruto e produtos hortícolas.

O aeroporto é simpático e arejado. Funcionários impecavelmente fardados, vão olhando os passaportes e procedendo a todas as burocracias, num silêncio civilizado e  uma calma exasperante. Afinal, a imagem de marca do que iremos encontrar dali para a frente.

Na entrada da gare, sob um chão reluzente de limpeza, está o Hatem Thabet. É representante de uma agência de viagens, facilmente identificável na camisola que veste. Porém, fazendo jus à sua condição de cidadão muçulmano, veste umas calças largas de cor clara e calça umas babuchas cor de mel estreitas e pontiagudas, num exercício de destreza que impressiona, se atendermos aos seus enormes pés. É como meter o Rossio na Betesga. Porém, locomove-se com facilidade e desde logo me surpreendeu pelo seu português fluente e vasta cultura. Educado sem ser servil, é um homem que facilmente cativa o forasteiro. Um toque de humor retoca-lhe a face tisnada. O humor com que diz ter quatro mulheres e da obrigatoriedade de dançarem todas as noites a dança do ventre para cativar o marido que, deliciado, vai mergulhando os pés num alguidar de água com essências, para amenizar as agruras de um dia de trabalho.

Depois, já a sério, lá vai falando da emancipação da mulher, hoje mais donas do seu destino e a assumirem um papel mais relevante na sociedade marroquina.

Timidamente, vai-se percebendo uma certa ocidentalização de costumes, à mistura com alguns radicalismos assumidos, sobretudo em muitas mulheres, envergando os seus seculares trajes tradicionais de que não abdicam, mesmo quando se lançam para uma piscina todas vestidas, com fatos impermeáveis especiais para o efeito, o que surpreende quem não está habituado a tão bizarro comportamento. Outras, porém, já sacudiram essa tradição milenar, vestindo como qualquer europeu.     

Contudo, enquanto o autocarro em ritmo pachorrento vai engolindo quilómetros até Saidia, são visíveis sinais de pobreza, com casas velhas e carros que, circulando a pequena velocidade, vão expelindo grossas baforadas de fumo, sobretudo carrinhas de caixa aberta, carregadas da mais variada mercadoria. De realçar os garrafões de venda de gasolina na berma das estradas, ao preço de quarenta cêntimos por litro, em concorrência às gasolineiras onde o preço atual estabelecido é de um euro e sete cêntimos pela a mesma quantidade de combustível. Trata-se de um comércio ilegal, mas com o qual a polícia convive pacificamente, por saber-se ser o único meio de subsistência de quem vive daquele expediente.

Saidia é uma cidade pacata, com cerca de quatro mil habitantes. Zona abandonada durante muitos anos pelo Rei Hassan II, a que não é estranho o facto de o rei entender que a sua tentativa de assassinato foi congeminada no norte do território, Saidia tem agora outro incremento. Lambidas as feridas, Mohamed VI, um dos filhos de Hassan, entendeu revitalizar a zona, ciente de que um complexo hoteleiro traria gente e divisas ao país.

Parece que a aposta foi ganha, apesar do serviço hoteleiro ser ainda incipiente e numa fase de aprendizagem. Porém, os hotéis e os locais de lazer são muito bem tratados, com jardins magnificamente cuidados.

Eu, europeu, me confesso. Quando entrei na Medina de Oujda, fui despejado no inferno. Ruas estreitas e um cheiro pestilento nalgumas zonas, levou-me ao limite da náusea. Sentado no chão, eu ouvia o guia a falar de fios de seda com que se confecionam vestidos de noiva. De novo partimos e, numa rua escura povoada de vielas a abarrotar de mercadoria e lojas de roupa feminina, Hatem Thabet sentou-se no chão para petiscar um pão redondo de dimensões colossais e um líquido negro encerrado numa espécie de lâmpada de Aladino. Atencioso, quis que eu compartilhasse da refeição, o que rejeitei educadamente, com a maçã e Adão aos pulos e o estômago a cantar o hino da Maria da Fonte, numa prova de revolta e de repulsa.

Contudo, no meio de toda aquela desorganizada organização, a vida fluí. Sem gritos nem encontrões, as mulheres entram e saem das lojas. Rostos serenos e muitos deles, sobretudo das jovens muçulmanas de lenço cuidadosamente a emoldurar-lhe o rosto, muito belos.

De novo Saidia. Passear pela sua extensa praia. Olhar em contra – luz de fim de tarde, as filas de camelos que em passo lento seguem o dono de vestes longas e turbante na cabeça. Observar a rara imagem dos dromedários deitados junto à areia fresca do mar, a defenderem-se da canícula. E do muçulmano que, de joelhos e junto deles, de mãos abertas como as páginas de um livro, vai orando a Alá, o bálsamo para todos os martírios.

 Junto do balcão das partidas, Hatem Thabet despede-se de mim. É um abraço caloroso entre um europeu e um árabe. Num pequeno instante das nossas existências tão diferentes de culturas e de hábitos, as nossas órbitas colidiram numa atmosfera de bonança. Disse-lhe adeus e parti, ciente de que é improvável que nos voltemos a encontrar. Recordo as últimas palavras que me dirigiu: que Alá o proteja, a si e à sua família …

O MD 8O, com o seu dorso branco, arranca agora da extensa pista ondulante de calor, debaixo de um sol intenso com um barulho ensurdecedor. Recosto-me no banco e de novo olho lá em baixo as planícies de ninguém. Lá longe, no meu país, vou ter um bife e uma cerveja bem fresca à minha espera, junto à Gare do Oriente. E ali, recuperando-me da jornada, lembrei-me do Rui Felício e do dia em que ali me ofereceu, juntamente com a São, um almoço. E não deixei de sorrir. De novo estava em casa. Regressei à minha órbita de amigos e de afetos. Em Portugal ou além - fronteiras.

E é com gosto e amizade, que aqui relato esta minha experiência marroquina a todos vós.

Um abraço
Quito Pereira   
   

10 comentários:

  1. Pela narrativa correu tudo às mil maravilhas, mas fiquei com uma dúvida!!!...
    A São também regressou contigo?...

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  2. Eu bem tinha dito que a São e o Quito, palmilhando os trilhos do petróleo, iam em viagem de negócios, mais do que em turismo. Juntando o útil ao agradável. Calculo que tenham encontrado investidor árabe para uma plantação de batatas em Salgueiro do Campo.
    Podiam é ter aproveitado para trazerem uns jerricanes de gasolina a 40 cêntimos o litro.

    A realista descrição da viagem, a sequência dos episódios bem encadeada, desperta-nos o gosto pela sua leitura, transporta-nos aos mesmos locais como se nós próprios os tivessemos acompanhado na viagem.
    E a verdade é que acompanhámos. Ao menos, em pensamento.

    Bom regresso!
    Parafraseando Salazar quando o Santa Maria chegou ao Tejo em 1961:

    - Temos o Quito e a São connosco!
    - Obrigado Alá!

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  3. Ora pelo que "prosaste" as férias correram conforme planearam!
    Gostas destas aventuras!
    Gostei especialmente da tua sinceridade magrebina "Eu, europeu, me confesso. Quando entrei na Medina de Oujda, fui despejado no inferno. Ruas estreitas e um cheiro pestilento nalgumas zonas, levou-me ao limite da náusea!
    Mas deves teres começado a ficar aliviado quando " Hatem Thabet despede-se de mim. É um abraço caloroso entre um europeu e um árabe....que Alá o proteja, a si e à sua família …
    Adorei também esta passagem: Hatem Thabet sentou-se no chão para petiscar um pão redondo de dimensões colossais e um líquido negro encerrado numa espécie de lâmpada de Aladino. Atencioso, quis que eu compartilhasse da refeição, o que rejeitei educadamente, com a maçã e Adão aos pulos e o estômago a cantar o hino da Maria da Fonte, numa prova de revolta e de repulsa.
    Pronto: agora só anseiam pelas férias em Lagos!!!!

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  4. Que ALÁ esteja Sempre contigo.
    Tonito.

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  5. Quito

    Adorei ler este artigo por vários motivos e fizeste-me rir com a maçã de Adão e o hinho da Maria da Fonte.
    Alertaste-me para um caso que revoltou as pessoas aqui, derivado à forma como alguns árabes se comportavam, se bem que neste momento já tudo se tenha acalmado. As mulheres árabes chegavam à piscina, queriam que os homens desaparecessem para tomar banho e depois tomavam-no vestidas como vinham. Não havia outro tipo de roupas para se mudarem, nem quando partiam. Isto levou a que aparecesse uma recacção oposta e hoje tudo voltou à normalidade. Podem tomar banho mas de fato de banho e os homens não lhes fazem mal. Nisto e noutros casos houve uma luta muito grande, a pontos de os tribunais se terem de pronunciar sobre o fundamento das leis, pois chegavam, quer fôsse tomar banho ou a hora das suas rezas, impunham-se e mais nada. Não havia respeito nenhum pelos outros e seus princípios. É claro, que não foram todos.
    No que respeita à sujidade, muitas pessoas falam do mesmo.
    Em relação à gasolina são mais baratos que os americanos que levam quase cinco dólares por um galão. Era de teres aproveitado.
    Ouvi há anos uma entrevista com o rei Hassan II. Se bem que com todos os seus erros próprios de uma cultura que ele não negava, tentava ser recto ao destituir ministros da família em quem tinha tido confiança e andavam a roubar, como ele mesmo dizia, para entregar o lugar a outros. Por isso já se vê que não desculpava a quem as fizesse e muito menos uma tentativa de assassinato.
    Além disso, abriu a universidade a todos levando as mulheres a estudar, criando-lhes salas só para elas e aonde o professor estava noutra sala. Comunicavam-se por micro e tvs. A sua ideia era que quando saíssem com um curso como médicas, enfermeiras, etc, ao comunicarem com os outros aparecesse uma primeira situação em que tivessem que tirar o lenço e assim se irem habituando e libertando da submissão a que estavam sujeitas. Ninguém hoje põe em dúvidas que foi o trabalho e a cultura que levou à tentativa de igualdade da mulher.
    Terminou a entrevista de uma forma muito interessante: destituindo pessoas de família, impondo uma justiça que nem todos aceitam porque não estão habituados e dando cultura ao meu povo, não estarei a criar o meu próprio golpe de estado? – Pelo vistos houve uma tentiva.
    Ainda bem que voltaste, já fazias falta.

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  6. Correu tudo bem graças a Alá ... :)

    Só faltou contar as vezes que tiveram também de chamar por um Santo bem mais Português ... :)

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    1. O São Gregório? Mau, mau...
      Com o Santo e Alá, cá estais.
      Vieram muito mais ricos de conhecimentos, pois é sempre bom conhecer outras culturas, outros costumes.

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  7. ...não conheço nenhum santo português que diga asneiras...

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