A cândida felicidade da vida dos simples ...
É Julho. É tempo de calor. De um calor abrasador, que invade
a aldeia ancorada no ocaso de um Tempo que se esgota na penumbra dos dias
sempre iguais. Há um silêncio feito de granito, que percorre as ruas estreitas
do povoado. Não se vê ninguém. Mas ali, naquela porta entreaberta, pressinto um
sopro de vida. É um Café. Lá dentro, o espaço é amplo e asseado. Nas mesas
redondas, alguns jornais esperam pelos clientes que não aparecem. Talvez ao fim
da tarde, quando o Sol se esconder por detrás do Moradal, a aldeia ganhe vida,
porque é o povo o sangue que percorre as vielas e lhe dá alento.
No Café, impera o silêncio. Ao fundo do estabelecimento, o ti
‘Calmeiro espreita a televisão. Percebo-lhe o interesse. É a Volta à França
em bicicleta e ele, do alto das suas mais de oito décadas de vida, vai olhando
todas as incidências do seu desporto favorito. Depois, ao encarar-me,
levanta-se pesadamente do seu lugar para, de mão estendida, me cumprimentar numa
saudação demorada.
Sentados à volta de uma mesa, estabelecemos conversa. A
mulher – a sua mulher - senta-se também. Então, enquanto lá fora o Sol
clamoroso esbarra na vidraça da janela, aninhados no conforto e na frescura da
sombra acolhedora, falam-me do passado. Do seu passado. Do tempo em que ele foi
pintor da construção civil. Do tempo em que percorreu a Beira Baixa, fazendo
trabalhos de ocasião.
Num ano já muito distante, na década de sessenta do século
passado, o ti’ Calmeiro decidiu estabelecer-se por conta própria. À força de
braços, construiu uma casa, inicialmente térrea, para mais tarde lhe acrescentar
um andar superior que é, até hoje, a sua moradia.
Foram tempos de muitos sacrifícios. Mas também tempos
felizes. A aldeia era, talvez, mais solidária e disponível e os seus habitantes
menos prisioneiros de si próprios, nesta roda que atinge, preferencialmente, os
mais humildes.
As noites no estabelecimento, são noites de solidão. Apenas este ou
aquele cliente aparece. Os habitantes recolhem-se cedo a casa e todos já têm a
sua televisão. Longe vão os tempos em que ali, naquele Café, todos disputavam
um lugar, por ser a única caixa mágica da aldeia, com um homem ou uma mulher a
falar lá dentro, que aquilo até parecia coisa do demónio !!!
Um dia, casaram. Mas não passou impune aos olhos da Fazenda
Pública o seu amor. Primos em terceiro grau que eram, foram obrigados a pagar
trezentos escudos pelo parentesco e pelos bens que um e outro possuiam. Afinal,
uma imposição legal não obrigatória aos noivos que não tivessem
qualquer laço familiar entre si.
Trezentos escudos era muito dinheiro – dizia-me o ti ‘
Calmeiro, com aquele sorriso doce que o caracteriza. Ela ria, acompanhando
divertida a conversa.
São cinquenta e um anos de cumplicidade entre um casal que se ama. Benditos trezentos escudos - dizia eu cá no meu íntimo, deliciado com aquele rosário de recordações.
Há, entre ambos, um brilhozinho nos olhos, de uma
cumplicidade de mais de meio século de matrimónio. E os dois, na bem -
aventurada simplicidade de cidadãos sem mácula de uma aldeia perdida no
interior de Portugal, lá me vão falando nas excursões a Fátima e da vez que
foram com um numeroso grupo de conterrâneos a Guimarães, onde, numa enorme malga
fizeram a merenda, composta de batatas e atum, tudo regado com o fino azeite beirão,
numa festa rija de que ainda hoje se lembram, numa jornada plena de felicidade.
E eu, ao sair do Café, agora que uma aragem branda se levanta
de poente, dou comigo a pensar em como são tão diversos e utópicos os caminhos
para a felicidade plena. Afinal, longe das grandes metrópoles do consumo, é no
fio de azeite transparente que cai no prato gasto pelo Tempo e pelo uso, que se
reveem no seu fio redentor de vida. Na Fé onde se abrigam, das contingências do
Destino.
É esta a cândida felicidade da vida dos simples. Quito Pereira
O "aqui e o agora" em confronto com o "aqui e o ontem"relatados com o brilhozinho sensível de quem ama os seus actuais "conterrâneos"...
ResponderEliminarTransmites afectos dessa tua gente que se incorporam em mim...
Mas questiono quer para eles quer para mim o que será isso de cândida felicidade?
Existirá realmente?
Permito-me duvidar...
A madrasta da vida é demasiado ruim...
EliminarClaro que o teu texto me encantou.
Beijinho
Amiga Olinda
EliminarNão existe a felicidade plena. É utópica. Mas existe a felicidade. Para muitos, a felicidade consiste na religião do dinheiro e dos bens materiais. Por vezes, muitas vezes, afogam-se em dividas, numa quimera enganosa.
Quem anda por estas paragens, quem ouve esta gente, no silêncio de uma tarde de calor, percebe que se regem por outros padrões de felicidade. Algo de tão banal como uma excursão ao norte do país há vários anos, é ainda motivo de alegria só pela lembrança. O orgulho na pipa de vinho que têm na aloje fresca. A horta viçosa, fruto de muito trabalho. Para eles, esta é a sua felicidade. A cândida felicidade de quem nunca teve outros horizontes. Vivem uma outra órbita da vida e inculto é aquele que subalterniza estes portugueses, nossos irmãos.
Sabedoria de séculos não lhes falta, em contraste com a pacóvia prosápia de muito pato - bravo citadino, esses sim, incultos dos segredo da vida.
Percebo o teu desfalecimento, Olinda. Claro que percebo. Mas em mim, mesmo que durante a semana viva rodeado de telhados singelos, terás sempre um amigo. A cândida felicidade existe, Olinda. Nos mais humildes. E eu, que sou um citadino até já um pouco viajado pelo mundo, entendo o seu SENTIR. As montanhas e as planícies do silêncio são uma escola de vida. E eu, que a vivo dia a dia, escrevo para vós, mesmo que do outro lado apenas haja indiferença.
Um abraço
Um Abraço Quito.
EliminarTonito.
É claro que a cândida felicidade existe, mas de forma diferente para cada um!
ResponderEliminarHá pessoas que são felizes com pouco, mas é pouco para mim, para eles é mais do que suficiente para serem felizes. E ainda bem que é assim, porque se a felicidade fosse igual para todos, ninguém conseguiria ser freliz!
Não pode haver indiferença ao ler os teus textos. Há, sim, emoção, despertar de afectos, partlha de sensibilidade.
ResponderEliminarA candida felicidade pode não ser constante ou eterna, mas existe sim, mesmo que nem todos a tenham conhecido.
A história que contas faz-me lembrar os meus pais que viveram um amor tão grande -51 anos de casados- que o meu Pai morreu 6 meses depois da minha Mãe, com saudades dela.
Um beijo, Quito. Escreve mais para nós
"Cândida felicidade dos simples".Um título sugestivo que te levou a escrever este bonito texto.
ResponderEliminarUm relato de vida de quem achou em ti a pessoa ideal para fazer o filme do seu passado e do seu presente!
Um passado que recorda uma vida de trabalho, vida que foi melhorando, passando de empregado a proprietário, casamento, negócio razoável, diversão!
Mas aos poucos, progresso. desertificação da aldeia, a solidão paredes meias com a idade que vai avançando.Pouco mais resta que um casamento que o amor vai fazendo resistir!
Dissestes muitas verdades, Quito. A grande realidade é que são pessoas muito mais felizes do que a grande maioria atraída pela sociedade de consumo. Levam uma vida mais sã e não precisam de se preocupar com o consumo descontrolado.
ResponderEliminarEste texto trouxe-me à mente um assunto que penso muitas vezes, pois de uma maneira geral pensamos que a cultura é o melhor meio para se ser feliz, outros pensam que é o dinheiro mas há um problema por estes lados que é procupante. Os equivalentes aos Inuites (esquimós) daqui na Sibéria, vivem da criação das renas. De manhã levantam-se, o pai vai tratar das renas e os filhos todos contentes a ajudar. Os Inuites hoje são sedentários, têm as suas casas mobiladas, frigorífico, rádio, televisão, mota, etc. Os pais saiem de manhã para a caça e voltam à tardinha, só que os filhos vão durante o dia para a escola. Não lhes falta o centro comunitário com arenas de hóquei e outros campos de desportos aquecidos. A realidade é que estando cercados de neve, limitados no horizonte das distrações e do futuro pois lá só há as pequenas empresas e poucas, conhecendo muito mais do que os miúdos da Sibéria não só pelo que estudam mas também pelo rádio e televisão, perdem esperança no futuro e como nem a droga chega lá, vivem a cheirar os vapores da gasolina dentro de um saco plástico, provocando assim a ditruição cerebal. É chocante.
Epicuro, defendeu que a felicidade é a satisfação material dos desejos naturais.
ResponderEliminarTão simples como beber água quando se tem sede, comer para saciar a fome, mover-se sem restrições e falar sem peias, em inteira liberdade.
E disse que o que destrói a felicidade é a inveja, o querer ter sem necessidade, o exibicionismo da riqueza ou a apologia em boca própria de méritos mundanos e efémeros.
Quantos de nós, no humilde bairro em que vivemos a nossa juventude, não sentiram felicidade por uma simples excursão à Serra da Estrela, por uma prosaica merenda no Pinhal de Marrocos ou por um enregelado banho de Março no Rebolim em águas do degelo da neve que engrossavam o Mondego?
Quantos de nós ainda hoje não sentem essa felicidade por uma simples tarde passada à conversa na esplanada do Samambaia, apenas pelo prazer de reverem amigos de longa data?
É dessa felicidade que nos fala o Quito, em descritivas e indeléveis pinceladas e que aos olhos da sociedade urbana que nos foi deformando ao longo do tempo, se nos parece apresentar-se estranha, numa primeira abordagem.
Mas que, como disse acima, é mais comum do que se pensa.
Mesmo em relação à maioria de nós...
Porque a felicidade não é metafísica, nem inatingível.
É humana, é feita de momentos e de coisas simples, e vive-se no dia a dia enquanto por cá andarmos.
Obrigado Quito pela reflexão que me proporcionaste com a primorosa e oportuna crónica que desenhaste, bem ao teu estilo.
Para um excelente texto...excelentes comentários!
EliminarGostei dos comentários. Porque cada um dos amigos fez a sua reflexão sobre os caminhos para a felicidade, que tem diferentes cambiantes de acordo com o universo em que nos situamos. No ambiente campesino, sobretudo nas pessoas de mais idade, percebe-se que a felicidade se traduz nas coisas mais simples. Opulência e exibicionismo são palavras que não existem no seu dicionário. Já o mesmo não direi dos mais novos, já atraídos pelos bens materiais que a sociedade oferece.
ResponderEliminarMas de uma coisa estamos todos de acordo: a felicidade plena é utópica.
Um abraço a todos
Num tempo mais fresco soube-me muito bem ler mais um belo depoimento do nosso amigo Quito.
ResponderEliminarTrata, como só ele sabe, o tema dos habitantes da zona onde passa bastantes dos seus dias. Hoje fala-nos de um casal que, tal como eu, fizeram 51 anos de matrimónio!
Nesses anos as leis eram insólitas, pois eu tive de aguardar que viesse publicada em DR a autorização para casar. As professoras não podiam casar com um homem que tivesse um ordenado inferior ao seu...
Mas olha que não era mal pensado. Afinal, vocês tiveram que comprar dois bombos de Lavacolhos!
EliminarA vida dos simples e o seu conceito de felicidade é, desta feita, o mote central da observação carinhosa do Quito e o ti Calmeiro, com sua mulher, passa a fazer parte deste espólio incomensurável ao qual temos tido acesso através deste narrador inato, deste apaixonado pelo ser humano, seu irmão.
ResponderEliminarParabéns, Quito, toma lá mais um abraço.
ResponderEliminarQuito, não fazia ideia de que alguma vez tivesse existido uma lei que obrigasse um casal, pelo facto de terem parentesco ainda que afastado, a pagar à Fazenda Pública pelos bens que o outro possuía.
E, feitas as contas, isto acontecia há cerca de 60 anos, será isso?
Tira-me desta dúvida! Chiça! Nem o falecido Gaspar se lembrou duma destas!...
Caro Amigo Viana
EliminarNão tenho razões nenhumas para acreditar que assim não fosse. Ambos falaram no assunto, ele dizia que era muito dinheiro naquele tempo (com razão)e ela concordava. São de uma seriedade a toda a prova, pelo que de certeza que essa Lei existiu. Jamais mentiriam ...
Apenas um reparo à tua frase " ...pagar à Fazenda Pública pelos bens que o outro possuía" ... na realidade era pelos bens que AMBOS possuiam. Era feita uma lista dos bens dos noivos e sobre eles e o parentesco eram tributados. Pessoalmente, acho isto um absurdo, se atendermos a que estamos a falar de pessoas humildes que o pouco que possuem foi conseguido com sacrifícios notáveis. Tenho por eles uma sincera amizade e admiração..
Um abraço para ti e Olga
Meu querido amigo Quito, longe de mim pôr em causa a veracidade do relato dos teus amigos. Os "simples" não inventam,porque nem precisam de inventar para nos surpreender com os muitos sacrifícios que a vida lhes reservou.
EliminarEste pagamento à Fazenda Pública deixou-me de boca aberta, pelo espanto não pela incredulidade.
Há dias também deixei de boca aberta um jovem amigo quando lhe contei que na minha juventude tinha que ter licença de isqueiro. Começou por pensar que estava a "gozar" com ele mas, depois de perceber que estava a falar a sério, quis saber mais coisas "daquele tempo". Claro que aproveitei para lhe falar de coisas mais importantes que hoje nem são valorizadas por serem naturais, normais, vulgares,..
É a vida!
Lembro bem dessa vertente do imposto sucessorio. A sua logica residia na prevençao e antecipaçao desse imposto para evitar que atraves de uma simulaçao de casamento entre parentes consaguineos o Estado perdesse essa tributaçao que sem o casamento seria devida em caso de morte de um ou dos dois, enquanto solteiros.
ResponderEliminarClaro que nao tera neste caso havido simulaçao.
Como em todas leis paga o justo pelo pecador...
Rui Felicio
Lembro bem dessa vertente do imposto sucessorio. A sua logica residia na prevençao e antecipaçao desse imposto para evitar que atraves de uma simulaçao de casamento entre parentes consaguineos o Estado perdesse essa tributaçao que sem o casamento seria devida em caso de morte de um ou dos dois, enquanto solteiros.
ResponderEliminarClaro que nao tera neste caso havido simulaçao.
Como em todas leis paga o justo pelo pecador...
Rui Felicio
Obrigado Rui, pelo esclarecimento. Eles, como pessoas simples que são, nunca poderiam informar aquilo que tu, com muita oportunidade, aqui vieste trazer ao nosso conhecimento.
ResponderEliminarConfesso que quando me falaram daquela tributação, fiquei surpreendido, pois era total a minha ignorância.
Um abraço
Fiquei mais contente por perceber que também tu, Quito, ficaste surpreendido com a tal tributação.
EliminarA explicação do Rui Felício completa a quadratura do circulo...
Em boa verdade, a Lei tem sempre uma lógica subjacente. Retomando o meu exemplo da "licença de isqueiro", é bom lembrar que o "motivo" da sua existência era a defesa da "Fosforeira de Portugal"...
Um grande, grande mesmo, abraço para ambos os dois.