O "Taxeira". Património afectivo da Coimbra ...
Coimbra dos doutores e dos futricas. Também daqueles que,
deserdados da vida, passearam pelas ruas da urbe universitária a sua infeliz
existência. Recordo aqui, naquele tempo, o idoso de cabelo grisalho e casaco
surrado pelo uso, que vendia chinelos de pano, daqueles de trazer por casa, no
passeio em frente aos Serviços Florestais, onde muitos anos trabalhei, na rua
Antero de Quental.
Numa tarde de canícula como a de hoje, neste pedaço da Beira
Baixa, o infeliz lá estava, com um monte de chinelos coloridos atados com uma
guita, na esperança vã de fazer negócio.
Então, deu-se o inesperado. Um grupo de matulões que subia a rua, roubou
os chinelos, fugindo estrada acima em direção ao quartel. A reação não se fez
esperar. Alguns de nós, desatámos a correr no seu encalço, no intuito de lhes
pedir explicações de tão vil acto. Não era preciso. Afinal, tratava-se apenas
de mais uma brincadeira de estudantes que, na irreverência da sua juventude,
apenas queriam pregar um susto ao ancião. Com o pobre homem a clamar pela
mercadoria, de novo foi restituída à sua posse e ele, de olhos lacrimosos e um
cigarro barato a pender-lhe dos lábios, a agradecer a atitude dos seus
“salvadores”.
Um dia desapareceu. Não mais voltou àquela rua. Talvez a
provecta idade tenha ditado as suas leis.
Outros houve, também, que não tiveram lugar na roda da
fortuna. Porém, dentro da sua desdita, um houve que teve o seu estatuto de
herói Coimbrão – o Teixeira.
Ali, na Rua Antero de Quental, paredes meias com a Praça da
República, eu todos os dias via o Teixeira. Recordo-lhe a poupa no cabelo, a
cara macilenta, o seu andar meio trôpego, a sacola dos jornais e sua voz
arrastada. Sempre tive por aquele homem muita consideração e respeito. O
Teixeira era um bem – amado da cidade e mal estava aquele ou aqueles que ousassem
trata-lo mal. Tinham a cidade à perna.
O Raul dos Santos Carvalheira – mais conhecido por Teixeira,
morreu há treze anos. Era natural de Coimbra, onde nasceu em nove de setembro
de mil novecentos e vinte e seis. O nome de Teixeira, foi-lhe dado pelas gentes
de Coimbra, por o acharem parecido com um antigo jogador do Benfica – um tal
Teixeira que mordeu na barriga do Faustino, atleta da Briosa e que, por tal
motivo, era odiado pelas hostes negras.
Coimbra, prestou-lhe a devida homenagem. Ali, junto à Rua de
Aveiro, o Teixeira tem o seu nome perpetuado numa artéria da cidade – Rua Raul dos Santos
Carvalheira. Os jornais da região, deram o devido relevo ao seu passamento. Não
era o Teixeira que devia muito a Coimbra. Se calhar era a cidade que devia
muito ao Teixeira. Talvez, para sermos mais justos, um pouco das duas coisas.
Mas no meio deste turbilhão de infortúnio que atinge alguns
de nós, há sempre quem, anonima e desinteressadamente, vai ajudando. E mais.
Vai tendo a capacidade de compreender e desculpar as atitudes mais bizarras
daqueles a quem ajudam.
Detrás do balcão, o Joaquim do Café “Mandarim”, vendia cafés
e cervejas e, na hora de almoço, os bitoques de onde sobressaía apetitoso, um
ovo a cavalo no bife a nadar em molho. No balcão, encavalitados nos bancos de
napa negra, redondos e de exíguo espaço, os fregueses aguardavam pacientemente
e, entre eles, o Teixeira.
O nosso herói almoçava ali todos os dias, por iniciativa do
Joaquim. Era-lhe oferecida a refeição. Afinal, o tal estatuto que tinha, como
figura grada da academia coimbrã e não só.
Naquela tarde, talvez porque o “Poney” ou o “Diário Popular”
não tivessem a procura desejada, o Teixeira estava de mau humor. E quando o
Joaquim, com seu feitio cordato, lhe pôs à frente do nariz o bitoque de belo
aroma, o Teixeira deu uma garfada, para depois arremessar com o prato que
deslizou rodopiante pelo balcão corrido e dizer agastado para o seu protector, na sua dicção embrulhada:
- Ó “Jaquim” traz-me outro bife, que esse está mal passado …
Quito Pereira
É das poucas coisas de que tenho saudades, dos tempos infindos nas bichas (não havia filas, na altura) da cantina central, em frente às escadas monumentais: ver e ouvir o Teixeira... a responder às bocas da estudantada.
ResponderEliminar…………………………………………………………………..
ResponderEliminarBoa recordação sobre "Taxeira" Em Coimbra e não só, muitos e muitos de quantos vivem ou viveram em Coimbra se lembram desta figura típica de Coimbra!
Mas há pouco fui surpreendido por ler na página do facebook de Carlos Carranca..."de Coimbra, a guitarra, o Canto e a Poesia que o Diário "As Beiras" trás na publicação de 9/07 da morte do último dos figurões de Coimbra o Adelino.Será provavelmente, penso eu para o recordar pois o Adelino terá morrido mais ou menos há um ano.
Vou esperar por mais logo para interpretar bem a notícia...
Na notícia e citando um blog...esta pequena passagem...
Morreu o Adelino. Algures, o Pedro – e também o Tatonas e o Taxeira e outros – gostarão de ter mais um para a saudade do nonsense coimbrão.
Esta coisa da toponímia conimbricense, de quando em vez, traz-me enormes surpresas.
ResponderEliminarVejam bem que eu ignorava a existência da Rua Raul dos Santos Carvalheira.
Também é verdade que pouco me adiantaria este conhecimento porque nunca associaria este nome à figura do Taxeira.
Penso que um Beco, uma Travessa, uma Ruela, do Taxeira identificaria bem melhor o pobre do homem que se pretendeu homenagear.
Quando refiro o "pobre do homem" não o faço por acaso.
O Taxeira, sem família, sem amigos, sem ninguém que lhe amparasse a miséria, com uma perna amputada e praticamente cego, morreu na Casa dos Pobres,
Penso que o nome será antes "Rua Raul dos Reis Carvalheira"
EliminarJá agora relembrar uma postagem sobre o "Taxeira", que mostra um trabalho em barro de autoria do meu vizinho David
ResponderEliminarEste trabalho foi oferecido pelo David, através de mim, ao nosso saudoso amigo Rui Lucas.
Ver em http://encontrogeracoesbnm.blogspot.pt/2011/09/encontro-com-arte_19.html#comment-form
Amigos Viana e Rafael
ResponderEliminarMais umas informações: de facto, o Teixeira morreu na Casa dos Pobres em 29 de Fevereiro do ano 2 OOO.
A sua rua é uma rua sem saída,que parte da rua de Aveiro para Norte, prolongando-se para Noroeste.
Aprovada em reunião da Comissão Toponímia em 15 de Maio de 2OO7 e ratificada pelo executivo camarário em 4 de Julho do mesmo ano.
A placa com o seu nome, foi descerrada em 12 de Janeiro de 2OO8.
Um abraço a ambos os dois
Esta tudo nos conformes!
EliminarAbraço retribuido!
Das figuras tipicas de Coimbra penso que resta o "Carlitos".Será?
ResponderEliminarSerá o Carlitos que vai sempre à frente de qualquer cortejo devidamente fardado e de luva branca?Não estou bem certo.
Rafael
ResponderEliminarO Carlitos ainda o vi há dias. Os outros, nunca mais os vi. Certas, são as mortes do Taxeira e do Pedro. Dos outros não sei ...
Lembro o Teixeira na sua voz rouca dizer sempre a quem lhe pagava o jornal, com dinheiro acima do valor devido: "Não tenho troco" e virava as costas...
ResponderEliminarE eu ouvi tantas vezes o Teixeira anunciar
ResponderEliminar- Diário Popular, Diário de Lisboa, a "Capitálê"...
e algum estudante pedir-lhe
- Ó Teixeira, tens «a Bola»?
para ter como resposta
- Bolas tenho no meio das pernas...
ou a variante
- Ó Teixeira, tens a Crónica Feminina?
- Vai pó c@&@£#%!
Concordo plenamente.
EliminarA ultima vez que o vi 98-99 estava praticamente cego.
O Tatonas sei que morreu,o ano?
Tonito.
Gostei que o lado humano do Quito tenha vindo lembrar o Teixeira, que ainda não tinha esquecido. Era sem dúvida uma pessoa pelo menos conhecido nos meios académicos e também pelo futricas.
ResponderEliminarPelo que vi na net, não me aparece o nome de Rua Raul dos Santos Carvalheira mas sim com o nome de Rua Raul dos Reis Carvalheira e situa-se exactamente no local descrito pelo Quito. Como morava na travessa de Montarroio, passava com o carro muitas vezes na rua de Aveiro e não conheço essa rua que me parece nova.
Já depois de ter escrito os parágrafos acima, descobri um artigo sobre o assunto no blogue Penedo da Saudade, que ven anunciado neste blogue e convido a ler.
Não haverá ninguém que tenha vivido em Coimbra desde os anos 50 até anos 90 do séc. XX que não tenha conhecido o Teixeira.
ResponderEliminarTambém aqueles que nunca viveram na cidade ficam, ao lerem esta crónica do Quito Pereira, com um retrato fiel daquele que foi o decano das figuras típicas que têm povoado Coimbra ao longo dos anos.
A rigorosa descrição "(...)a poupa no cabelo, a cara macilenta, o seu andar meio trôpego, a sacola dos jornais e sua voz arrastada (...) dizem-nos a traços largos quem era o Teixeira.
Para além de ardina foi também engraxador de sapatos ( e quantas vezes, engraxador das peúgas...), quartanista de medicina honoris causa, repúblico honorário de diversas Repúblicas, o Teixeira, como resulta da crónica, era bem-amado por futricas e estudantes, protegido de todos perante quem ousasse fazer-lhe mal.
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Sem qualquer fundamento, senão aquele que há muitos anos me foi contado, o Teixeira não nasceu em Coimbra, mas sim nas Torres do Mondego, filho de pais alcoólicos que terão eventualmente ditado o atraso que o marcou desde a nascença.
É certo que o investigador e historiador Reis Torgal afirmou que o Teixeira nasceu na freguesia de Santo António dos Olivais, o que sendo verdade, não permite deduzir que o local de nascimento tenha sido dentro dos limites da cidade.
Naa verdade, à data do seu nascimento ( 1926 ), a aldeia de Torres do Mondego, na periferia de Coimbra, ainda estava administrativa integrada na freguesia urbana de Santo António dos Olivais.
Só anos mais tarde ( em 1934 ), foi criada a freguesia de Torres do Mondego, autonomizando-a em relação à de Santo António dos Olivais.
Porém, continuasse ou não integrada, as Torres do Mondego é uma povoação antiquissima, a escassa meia dúzia de quilómetros da cidade, mas ainda é hoje é uma terra rural sempre diferenciada e distinta de Coimbra.
Por tudo isto, continuo a pensar que se pode dizer que o Teixeira, apenas do ponto de vista meramente administrativo nasceu em Coimbra, mas que nasceu de facto numa humilde casa da aldeia de Torres do Mondego.
Não resisto a recordar o pregão de jornais que ensinaram ao Teixeira nos anos quentes da década de 60 e que ele na sua voz grossa e pastosa fazia ecoar na baixa, para gáudio da malta e perante os olhares rancorosos e impotentes da polícia:
ResponderEliminarLisboa Capital República Popular
Genial!
EliminarAgradeço a todos os comentários. Salientaria no entanto, todas as informações prestadas pelo Rui Felício. Na pesquisa que fiz, faz-se uma alusão a Torres do Mondego, há época integrada na freguesia de Santo António dos Olivais. Eu julgo que esta indicação deve estar absolutamente certa e que o Teixeira terá nascido naquela povoação. De resto, como me foi dito pelo Rui, havia quem conhecesse os seus pais, pessoas muito humildes ...
ResponderEliminarUm abraço ao grupo
Na verdade, O Teixeira foi uma figura única da cidade. Se duvidas houvesse, o facto de se mobilizarem vontades em Coimbra para lhe tentar minimizar o seu problema de quase cegueira, falam por si.
ResponderEliminarAcompanhado por um médico oftalmologista, foi levado à Clínica Barraquero em Barcelona, para ser visto.
Desse episódio, conta-se a observação do Teixeira para o médico que o acompanhou, quando o avião sobrevoava Espanha: Dr. estas estradas espanholas são maravilhosas, não se ouve um barulho ...
Não haverá muitas cidades em Portugal, que assumissem de uma forma tão nobre e particular a desdita de um seu desventurado filho ...
Hoje, talvez não fosse possível. O mundo da competição e da sôfrega ambição ( de que um acontecimento politico recente é bem exemplo) , retirou à sociedade a capacidade de ser solidária de uma forma geral.
Quando se pratica a caridadezinha, à qual está subjacente a promoção do nome de um qualquer supermercado, muitos entenderão a hipocrisia reinante.
Talvez por isso, e apesar dos anos que já se passaram, o caso do Teixeira dê para reflectir. À volta deste figura de Coimbra, gerou-se uma onda cristalina de afectos. Fosse pela bondade do Joaquim do Mandarim, ou de quem, num acto nobre, teve a possibilidade e conhecimentos para levar o Teixeira a uma conceituada clínica oftalmológica longe de Portugal.
Eu, que tão bem conheci o Teixeira, como Coimbrão que sou, só tenho que agradecer a quem estimou e ajudou esta figura mítica de Coimbra.