Estremeci!
Um gosto amargo temperou-me a saliva, a garganta secou, nas têmporas senti o latejar do sangue em soturnas e violentas pancadas, o estômago contraiu-se, agoniado.
Instintivamente, saltei da mesa onde jantava, enclavinhei os dedos e procurei a coronha da arma automática, que não encontrei. Hirto, pareceu-me ouvir o restolhar de uma iguana a fugir e quis-me atirar de borco para dentro da vala protectora. Mas não havia vala nenhuma. Nem sequer o imaginário réptil! Muito menos a avalanche de torrões de terra seca que ia jurar ter escutado a rebolarem à sua passagem assustada.
Eu sabia que aquele som cavo era o do disparo de uma granada de morteiro, a uns quilómetros de distância. E também sabia que entre o disparo e o impacto mediavam cerca de 20 segundos, o tempo que tinha para me abrigar, antes do rebentamento do mortífero projéctil.
Acalmei! Estava na cozinha de casa, no meu pacato Bairro, muito longe da guerra de onde tinha vindo passar um mês de férias. Passam hoje exactamente 41 anos.
Percebi, por fim, que aquele inconfundível ruído abafado era, apenas e só, o da porta do frigorífico a fechar-se...
Rui Felício
06/12/2010
Um gosto amargo temperou-me a saliva, a garganta secou, nas têmporas senti o latejar do sangue em soturnas e violentas pancadas, o estômago contraiu-se, agoniado.
Instintivamente, saltei da mesa onde jantava, enclavinhei os dedos e procurei a coronha da arma automática, que não encontrei. Hirto, pareceu-me ouvir o restolhar de uma iguana a fugir e quis-me atirar de borco para dentro da vala protectora. Mas não havia vala nenhuma. Nem sequer o imaginário réptil! Muito menos a avalanche de torrões de terra seca que ia jurar ter escutado a rebolarem à sua passagem assustada.
Eu sabia que aquele som cavo era o do disparo de uma granada de morteiro, a uns quilómetros de distância. E também sabia que entre o disparo e o impacto mediavam cerca de 20 segundos, o tempo que tinha para me abrigar, antes do rebentamento do mortífero projéctil.
Acalmei! Estava na cozinha de casa, no meu pacato Bairro, muito longe da guerra de onde tinha vindo passar um mês de férias. Passam hoje exactamente 41 anos.
Percebi, por fim, que aquele inconfundível ruído abafado era, apenas e só, o da porta do frigorífico a fechar-se...
Rui Felício
06/12/2010
Ilusões traumáticas da guerra só quem viveu momentos destes as pode avaliar em toda a sua profundidade!
ResponderEliminarTodos nós conhecemos, até aqui no Bairro, quem ainda hoje sofre as consequências dessa guerra!
É certo que o grau traumático que cada um sofreu deve ter um pouco a ver com a sua própria estrutura fisica e mental:
Penso mesmo e atendendo aos casos que conheço que há casos gravíssimos, menos graves e até alguns que "aparentam" ser ligeiros!
Será assim?
É bem verdade o que dizes, amigo Rafael.
ResponderEliminarO episódio que contei passou-se numa altura em que eu tinha acabado de chegar do ambiente de guerra.
Quem por lá passou sabe que não há nada mais parecido com o disparo de morteiro longínquo e o barulho de uma porta de frigorífico a bater.
Felizmente, tive a sorte de não ter sofrido estes traumas depois de ter terminado a comissão de serviço militar.
Mas sei que há casos muito graves de pessoas que nunca conseguiram libertar-se de uma experiência que deixa marcas para o resto da vida.
Porque bem no fundo, imune a essa experiências ninguém é.
A diferença está em que uns conseguem superá-la e outros não.
A semelhança do disparo de um morteiro com o
ResponderEliminarbarulho da porta do frigorífico a não sabia...
Mas a complexidade de problemas psíquicos criados na maldita guerra essa conheço-a!
E que graves situações,abrangendo as famílias... e sem remissão!
Estes testemunhos são sempre bem vindos,Rui!
Estou quase a receber pelo correio o livro do meu padrinho, «A Última Missão».
ResponderEliminarTenho a certeza que a sua leitura me vai ajudar a entender melhor todas estas feridas (em tantos casos de morte) de guerra.
E valeu a pena tudo isto?
ResponderEliminarHedionda guerra, que tanta morte, tanto trauma e tanta desgraça causou! Sempre perguntei a mim mesma se teria valido a pena e só mais tarde no desenrolar dos acontecimentos tive a certeza que não. Mas isso são outras "guerras", a minha guerra, que só a mim diz respeito.
Tiveste sorte meu amigo! Ao contrário de milhares de companheiros teus, que por lá ficaram, tu estás aqui são e salvo, com sobressaltos sim, mas no teu juízo perfeito.(Penso eu)....
Claro que não valeu a pena. E isso sabia-o eu mesmo quando para lá me mandaram.
ResponderEliminarQuanto ao meu juizo perfeito, só o perco quando vejo uma mulher bonita como tu...
Não conheço ninguém que, tendo vivido o cenário da guerra colonial, tivesse ficado imune aos seus malefícios.
ResponderEliminarQuem viu morrer a seu lado, ficar estropiado a seu lado, um camarada de armas mas também um amigo com quem umas horas antes traçava projectos para o futuro, não pode ficar imune. Tem de ficar com uma marca para o resto da vida.
Mau seria que assim não fosse porque seria sinal de uma insensibilidade desumana.
Naturalmente que, depois disso, cada um gere essa marca conforme a sua capacidade e personalidade própria.
Mas a marca está lá, como digo, mau seria que não estivesse...
Com este episódio que o Rui Felício nos traz, lembro-me da reacção de um bom amigo, meu colega de trabalho no banco que, ao som da queda de um armário metálico, se enfiou literalmente debaixo da sua secretária, num espaço em que era impensável que nele coubesse.
Tinha regressado de Moçambique, dois meses antes, e os sons da guerra ainda o marcavam profundamente.
Estou certo que ainda o marcarão e que até ao fim da sua vida sentirá um sobressalto sempre que ouvir o estrondo de uma simples bomba de Carnaval.
Olá Felício, esquece a guerra, os tempos menos bons... conserva na tua mente imagens bonitas, do nosso Bairro, da tua casa, da tua mãe, dos Natais, pelo menos os mais doces!
ResponderEliminarFica bem, um Feliz Natal para ti.
Mariazinha Leão (em casa do Melo)
Há duas datas que jamais esqueço. A de 6 de Fevereiro de 1969 ( a do tão falado desastre da jangada )e a de 6 de Dezembro de 1969 ( a deste episódio ).
ResponderEliminarPorque foi neste momento que tomei consciência de que a minha personalidade que eu julgava forte e imune a estes traumas, afinal não era assim tão forte.
Foi um episódio que me marcou muito durante muito tempo, porque ainda hoje acho que pior do que perder a vida numa guerra injusta seria ficar mentalmente marcado por ela para o resto dos dias.
O Carlos Viana, sem felizmente nunca lá ter estado, tocou, contudo, no ponto mais sensivel. Isto é, nas amizades que fiz com os "meus soldados" e na perda para sempre de 13 deles naquele fatídico dia 6 de Fevereiro.
Só quem, como ele, que é um homem solidário e sensivel, poderia ter destacado essa vertente tão importante.
Mas isso para mim já não é novidade desde que o fui conhecendo no blog, nos almoços, nos convívios...
Sem dúvida que a guerra deixa marcas para a vida. No caso do Rui Felício, tinha acabado de deixar o teatro de guerra há alguns dias e por tanto, natural. Depois de tudo terminado vai da forma como cada um gere os acontecimentos no seu interior. Se a distância no tempo pode ir esbatendo os fatos vividos, o certo é que ao mínimo evento tudo pode voltar. Se bem que certas datas não se esqueçam mais, prefiro no entanto lembrar-me dos bons momentos até porque se falar do lado humano de como vejo a guerra e aí também sou um sentimentalão, há quem pense que eu não tenho esse direito. Por outro lado, penso que é também derivado à forma como fomos preparados para a vida. Aqui, no caso de um acidente com feridos, muitas vezes as pessoas que não estão feridas, vão traumatizadas de ambulância para o hospital. Se virem uma assalto armado, a mesma situação. Uma carapaça dura por fora mas humanos por dentro.
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ResponderEliminarComo dizes,Rui,as marcas ficam para sempre.
ResponderEliminarNo regresso,quanto a mim,o mais importante é o acolhimento de amigos e família.
É esse acolhimento que permite que um selvagem regresse à humanidade.
Um abraço.
Li em tempos um livro do psiquiatra Dr.Albuquerque, que é sobre os traumas de guerra.
ResponderEliminarAs sensações que relatam e as suas consequências, aí vêm descritas, muitas delas na primeira pessoa!
E o relato dos que tinham que fazer sevícias crueis aos "terroristas" para os obrigar a confessar?!E os que tiveram de matar?!
Não há direito de tanto horror, daqueles jovens que morriam ou tinham de matar.
Um desabafo ajuda a minorar as feridas...
Não gosto de falar sobre isto mas não resisto a contar outro aspecto que me impressionava (e que, ainda hoje, de vez em quando me vem à memória) relacionado com essa vivência no Leste de Angola. Em diversos casos de feridos extremamente graves e alguns mesmo mortais, as palavras, muitas vezes as últimas, que dirigiam era sempre de apelo/socorro à Mãe!...Não memorizei outras, que seriam lógicas,dado que alguns desses camaradas até eram casados, e mesmo, num desses, com filhos. Mas, no que assisti, era sempre "a Mãe" por quem chamavam....Último apego à vida?
ResponderEliminarUm abraço.
Carlos Carvalho, o teu depoimento é tocante e nunca o tinha visto abordado neste contexto!
ResponderEliminarQuando regressei à minha Rua Bartolomeu Dias, depois de voltar da guerra, cada barulho de noite era um sobressalto. Foi assim durante muitos meses. Quando, esta semana, numa pequena roda à lareira, eu e um grupo de amigos da minha companhia 3 4O6, falavamos daqueles tempos, questionámos, se hoje teriamos resistência psicológica para passar de novo pelo que passámos. Todos disseram que não ...
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