quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

MEMÓRIAS DE UMA ESTALAGEM ...

Eira Longa. Pintura da Vânia ....
Mais um ano que se esgotou, na fronteira dos sonhos improváveis. Rodeado de amigos, pulei a fasquia de mais uma década de vida. Trás-os-Montes, tem sido talismã de momentos inolvidáveis. A paz, o silêncio, a deslumbrante paisagem, fazem parte do meu roteiro anual. As Feiras do Fumeiro, em Boticas ou Montalegre, são destino obrigatório. Porém, a vertente comercial, tem-se encarregado de minar o que era uma festa de raiz popular. Recordo aquele dia, a tiritar de frio, em Montalegre, em que uma idosa, de xaile negro, me ofereceu, espontaneamente, uma malga de sopa de feijão bem quente. Outros tempos. Agora, são os grandes pavilhões, impessoais, quem mais ordena. Ao colar estes fragmentos da minha memória, é inevitável falar daquele que era o meu porto de abrigo: a Estalagem de Carvalhelhos. Na sua arquitectura de linhas simples, recordo as janelas de madeira pintadas de vermelho, que davam ao conjunto uma graciosidade impar. Também os terrenos adjacentes, com o cantar dos ribeiros cristalinos, as árvores atapetadas de líquenes e a fofa manta - morta.
A Estalagem era antiga. Lá dentro, à esquerda, uma enorme lareira e uns sofás de couro. Ao lado, uma espaçosa sala -de – jantar. Era ali, com um grupo de amigos oriundos do Porto, que passávamos alegres serões, enquanto víamos nevar lá fora. No andar superior, os quartos, sem grandes requintes, mas funcionais. Soube agora, em Boticas, que a pretexto de umas obras de remodelação – que de facto necessitava – a estalagem vai fechar definitivamente. Na minha lembrança, fica a simpatia de todos quanto trabalhavam naquela unidade hoteleira. A delicia da sua comida caseira, e a célebre sineta que convidava os utentes para as refeições. Recordar a tradição do “cozido à portuguesa”, no Domingo da partida, com os maravilhosos “enchidos” da zona. Depois, com uma amálgama de malas no átrio da Estalagem, o abraço de despedida entre todos, rumando cada um ao seu destino. Quantas alegrias, tristezas, confidências ou angústias, partilhámos à lareira! Agora, tudo acabou. E no dia de Ano Novo, a olhar para aquele rosário de recordações, percebi na cara do António Ferrão, ao telemóvel, que algo não estava bem. Eu e o Chico Nunes, ficámos naquela ansiedade, até sabermos do lamentável acidente da Olinda. Com um suspiro de desalento, de novo olhei a Estalagem. Assim se fechava, de uma forma cinzenta, um livro de infinitas e doces memórias. Mas não fiquei órfão. A cada noite, sucede um amanhecer. E de novo, com alegria, o meu ponto – cardeal, rumou a outras paragens. Pela mão de um amigo, entrei na Casa da Eira Longa. Tudo me pareceu familiar, logo que cheguei. Já tinha, por indicação de uns amigos de Boticas, as melhores referências. Mas o clã Herminio, encarregou-se de superar as expectativas. Não posso esquecer a Sua afabilidade e educação, o requinte da comida, as excelentes instalações. É obrigatório voltar. De triste, a despedida. Os abraços comovidos. E as lágrimas da Vânia. As lágrimas simples de uma rapariga simples. Lágrimas de tristeza. Mas um dia, Vânia – tenho a certeza – voltarás a chorar de alegria, quando este barulhento grupo coimbrão de novo invadir a Eira Longa. E aí, as lágrimas, serão da emoção do reencontro.
Q.P.

15 comentários:

  1. Sempre romântico, meu querido Quito!
    Agora que já me habituei a viver, a ler e a interiorizar os teus bonitos textos, apercebi-me que conhecendo-te.... não te conheço nesta faceta de alguém, que encerra em si, muita sensibilidade, muito romantismo, muita nostalgia e sobretudo que pôe o sentido exacto em cada uma das palavras que escreve, levando-me a partilhar contigo o bom e o mau, o triste e o alegre!
    Tivesse eu esse dom meu Amigo!Como terias parceira para te acompanhar nestas andanças da escrita!
    Um beijo.

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  2. Este texto, foi feito de uma forma emotiva e ao correr da pena. É uma homenagem aos proprietários, e a todos aqueles que nos proporcionaram momentos que vão perdurar na nossa memória. Na despedida, fiquei impressionado com as lágrimas sentidas da Vânia. Decidi "enfeitar" o texto com uma pintura dela, que se encontra na Adega. Estou certo que um dia, voltaremos a conviver com estas pessoas magníficas ...

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  3. Conheci bem a Estalagem de Carvalhelhos, onde fiquei mais do que uma vez, há muitos anos.
    A referência do Quito fez-me recordar bons tempos. Que não voltam...
    Tenho pena que, segundo ele diz, a estalagem se tenha degradado.

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  4. Pelo que narras estavas como "peixe na água"
    Esta maravilhosa região de Trás-os-Montes e mais concretamente aqui pela região de Boticas touxe-te à lembranca outros belos momentos que por aqui passaste!
    São como dizes tempos diferentes!
    Desta vez não tiveste a malga de sopa de feijão a fumegar!
    Já não foi na Estalagem de Carvalhelhos com as sus janelas pintadas de vermelho...mas a paisagem ,essa seria semelhante!
    Os mesmos ribeiros de água cristalina, os liquenes que cobriam as árvores!
    Também a fofa manta manta-morta lá estava, mas desta vez foi madrasta para a mana Olinda, que de tanta fofura não viu uma pedrinha que a desequilibrou e a enviou para as urgências do Hospital de Chaves!
    Mas com o companheirismo do G17 o acidente acaba por ficar reduzido a um tempinho de inatividade da Maria Olinda, muito a tempo de estar apta para a próxima passagem de ano!
    Mais um muito obrigado ao Clã Herminio!

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  5. De facto, Rui, a estalagem precisava urgentemente de se remodelar. Em termos de conforto. Porque o serviço, esse, era muito bom.
    Conheço, palmo a palmo, as zonas circundantes da estalagem. Por aqueles bosques me embrenhei. A "Fonte do Amores" é muito bonita, mas descida do "Castro" de Carvalhelhos é perigosa. Eu próprio, também caí uma vez, naquelas andanças, felizmente sem consequências. Quando vi o grupo aventurar-se, naquele manto escorregadio, fiquei um pouco inquieto. Tive, infelizmente, razões para isso ...

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  6. Um texto com o timbre do Quito que escreve de impulso, à flor da pele, e o projecta para o sentir profundo de vivências passadas e presentes.
    Um abraço.
    Abílio

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  7. Mais um texto pensado (mesmo ao correr da pena!!!), vivido, sentido e muito bem sistematizado, numa linguagem a que o Quito já nos habituou! Parabéns meu amigo! E o G17, como sempre em grande! Acredito que o clã Hermínio jamais vos esquecerão! Parabéns Daisy pela bela e oportuna foto-reportagem! Para a Olinda Linda...rápida recuperação...e já estou a imaginar alguns "cupidos" gravados no gesso!!! lol

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  8. Um abração para a família anfitriã.
    Quito,boa expressão do que viveste e sentiste!

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  9. Quito
    A pintura do quadro da Vânia é a cereja no topo do bolo do teu texto, "escrito ao correr da pena" que sei não parar na "fronteira dos sonhos impossíveis"!
    Mais um abraço para todos.

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  10. Quito, obrigada por tudo aquilo que escreveste...ÉS MARAVILHOSO.Beijinhos

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  11. Foi uma passagem para o 2011 espectacular. Esperamos por vós brevemente, pois cá estaremos para vos receber da melhor forma. Desejo as rápidas melhoras para a D.Olinda. Beijinhos e um grande abraço para todos

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  12. A Estalagem de Carvalhelhos morreu como morrem muitas outras coisas, principalmente, no interior do nosso país! Também a conheci no auge e é com muita pena que a vejo naquele estado.
    Gostei do texto do Quito. Está perfeito.

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  13. Também gostei muito do texto do Quito e julgo dever enaltecer as suas preocupações alimentares (já naquele tempo!!!)no que respeita a dietas consagradas como são (não és tu, São Rosas!) as do "cozido à portuguesa" em que até o toucinho também é cozido, não existindo essa praga de fritos ou assados(Bom! Se for cabrito não faz mal pois é vegetariano...) que fazem mal à saúde!

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  14. O Quito vai somando memórias antigas com recentes, vai juntando as suas imagens do passado com outras de hoje, vai-nos oferecendo a sua profunda capacidade de observação.
    Com o ser humano sempre na primeira linha. Ele semeia e colhe amizades com esta facilidade que aqui nos mostra ao correr da pena...
    Aquele abraço.

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