quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

O DESTINO ...

... a esteveira ...
Hoje, é último dia do mês Novembro. A Natureza, acordou envolta numa estranha paz. Um cálido amanhecer, veste a planície campesina de uma claridade generosa, que faz sobressair, ao longe, o porte majestoso das montanhas. De novo estou só. Apenas o meu pequeno carro me acompanha, por estas terras sem fim. Ambos gememos o mesmo fado. E, mais uma vez, cumprindo a nossa sina, trepamos ao planalto. A velocidade moderada, percorremos este vácuo do Tempo. É uma recta que parece não se esgotar, numa longa e estreita fita de alcatrão. A recta da Esteveira. Apercebo-me então de um ponto escuro, esbatido no horizonte, junto à berma da estrada. À medida que me vou aproximando, o ponto vai tomando forma. É um homem. Não o reconheço. Nunca o vi por aqueles povos, mas decido parar. Pelo espelho retrovisor, vejo-o caminhar para o carro, em passo apressado. De samarra, boné, e botas de borracha de cano alto, acerca-se de mim. Umas rugas fundas, marcam-lhe o rosto. Também uma barba rala de três dias. Diz-me que vai para a Lamerinha. Afinal, também a minha rota. Senta-se ao meu lado e partimos. Por breves instantes, é o silêncio. Depois, pergunto-lhe o nome. Responde-me: “ …Tenho o nome da sua terra… chamo-me Salgueiro … João Salgueiro … sou primo do David … e sei que você é o homem da farmácia ...”. Quebrado o primeiro gelo, faço-lhe ver a minha estranheza, por se encontrar sozinho naquele sitio tão ermo. Foi então, como que desfiando um rosário de lamentações, enquanto vai observando com um olhar distante a paisagem, me diz: “ … Sabe, tenho ali um pequeno “chão”. Ando apanhar a minha azeitona. Mas é muito trabalho para praticamente nada, pois dão muito pouco dinheiro por ela no lagar. Vou também semeando umas “coisitas”… já lá vai o tempo, em que eu tinha mais de setenta cabeças de gado, mas depois apareceu-me uma doença “malina”, e fui ficando sem forças, pelo que tive que vender o rebanho …”. Conta-me então que já chegou às sete décadas de vida, e que todos os dias se desloca a pé para o seu “chão”. Mais de uma hora de viagem a pé, na ida e regresso a casa, um pequeno povoado escondido nas entranhas da montanha. Por vezes, consegue boleia, quando o reconhecem. Minutos depois, uma curva larga à direita, e chegamos à Lameirinha. Convida-me para bebermos um copo de vinho . Recuso. Digo-lhe que tenho de guiar, desejando-lhe felicidades e uma rápida recuperação da sua doença “malina”. É então que ele, com a mão calejada e enorme, me cumprimenta demoradamente. Depois, fixando os seus olhos expressivos nos meus, acrescenta: “ … não sei qual a Vontade de Deus, mas um homem tem que se conformar com o Destino …”.
Q.P.

11 comentários:

  1. Gosto do que o Quito escreve, não só pelo invólucro apelativo mas também pela mensagem mais ou menos explicita que as suas palavras sempre contêm.
    Este texto, como habitualmente, repleto de detalhes descritivos que partilhamos sem esforço e com prazer, desta vez trouxe a lume uma convicção a que o povo se submete, de que não podemos fazer nada quanto ao insondável futuro.
    Chamam-lhe destino e nele se refugiam as pessoas simples, acreditando na sua inevitabilidade.
    Quanto a mim, nada mais errado!
    O destino é uma linha, muitas vezes sinuosa, penosamente construída por nós próprios ao longo da vida. A mediatriz da sua projecção para o vindouro desconhecido, e a análise da nossa vida passada, poderão dar-nos os contornos desse futuro. Assim o queiramos! Conhecê-lo, ainda que de forma nebulosa e vaga, só depende de nós e do nosso comportamento anterior, mas nunca de uma fatalidade imutável.
    Ao contrário do aforismo popular, não nascemos com o destino traçado na palma da mão!
    Quem sempre foi incorruptível, terá o destino de ser incorruptível ( Carácter )
    Quem sempre foi sequioso e obcecado pelo poder, terá o destino de ser destruído pelo poder ( Castigo )
    Quem aferrolhou riqueza ilicitamente, terá o destino de ser destruído pelo dinheiro ( Compensação )
    Quem sempre foi escravo e subserviente, terá o destino de ser um déspota ( Vingança )
    O difícil é reconhecermos os nossos erros e as nossas virtudes, sem sofisma nem falsa modéstia.

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  2. Ao pé de Caria, pela estrada antiga para a Covilhã, tammbém se passa pela recta de Lamaçais. Na altura, para nós aquilo era enorme, tendo em conta as curvas a que obriga a nossa Serra. Depois dessa recta, havia outra, bastante mais pequena.
    Uma vez, um amigo meu ia de carro com o pai:
    - Ena, pai! Q'a recta tão grande!
    - É, não é, filho? É a recta de Lamaçais.
    Quando fizeram a curva e entraram na recta mais pequena, o filho ainda ficou mais admirado:
    - E continuuuuuuaaaaa!...

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  4. Um texto com assinatura Quito Pereira, que nos fala da vida real de muitas pessoas de idade já avançada que vivem no campo. Não faltou a descrição das roupas, a conversa da vida do senhor, a sua doença e o seu conformismo envolvido numa crença. Também se sobressai o seu "chão" que ele tão teimosamente se nega abandonar, para seu bem. E tudo num vácuo do tempo.

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  5. uma escrita não "malina" mas muito saudável que vem dessa recta da Beira Interior para nos fazer reflectir nas lições de vida dessas gentes que tanto amas e nós também passamos a amar...

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  6. A letra "D", é ainda a trave-mestra que norteia muito destes povos. DEUS e DESTINO, são palavras com uma "terrível" força secular. Sobretudo, para as pessoas de provecta idade. O ditado popular, muito conhecido nesta zona, " ...quem tem que morrer num palheiro, não lhe erra a porta...", já em si, expressa muito do pensamento destas gentes. Porém, parece-me haver aqui um paradoxo. Sendo esta - desde sempre - uma forte zona de emigração, percebe-se da vontade de procurar melhores condições de vida. Numa palavra...de torcer o DESTINO ...

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  7. Quito,
    Quanto à emigração, pelo que vejo aqui, penso que é natural a tua admiração.
    As pessoas emigram só ou com a família mas também com os seu País, a sua terra, seus hábitos e costumes, seu Deus, o Santo lá da terra e o Destino, porque estão habituados a viverem com essa mentalidade.
    Por aqui noto isto pois em quase todas as diásporas a situação é idêntica. Vêm-se igrejas e outros locais de culto, tudo do mais variado.
    O Quebec que foi uma província extremamente católica e já há muitos anos que se tornou ateísta, pelo que não se via sinais de relegiões nas ruas incluindo padres ou freiras. Últimamente, após o 11 de Setembro, foi mudando de forma inesperada com a atitude dos muçlmanos que antes também não eram muito notados. Acontece porém que os nossos compatriotas açoreanos, muito relegiosos, desde que emigraram para esta terra há muitos anos, têm mantido sempre a procissão do Santo Cristo, que até é bem aceite e desperta uma certa curiosade nestas Gentes. É a única procissão que se passeia anualmente nas ruas de Montreal.
    Para eles, trazem o Destino e com ele vão vivendo: muitos dos descendentes, como aí, é que já pensam de outra maneira.

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  8. De forma simples a escrita do Quito tem uma força enorme. Já pouco há para dizer! Gostei do texto, também fiquei a pensar...

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  9. Continuo a gostar da forma como escreves em que humanizas situações de pessoas simples e estoicas que nos trazem os seus saberes, aceitando a vida de sacrifício que levam porque estava escrito algures que assim seria...

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  10. Quito é com imenso prazer que leio as tuas crónicas da vida real que vais observando aí por Salgueiro do Campo!
    Dá-me realmente prazer ler o que escreves e desta vez terá sido dois em um pois o comentário do Rui Felício é um complemento inetessantísimo!
    O que eu aprendo com estes dois "escritores"~Só vós dois me fazima ler tanto para além do "CALINO";Diário de Notícias e por vezes a Bola e o Record!
    Para livros...nem tento, ou por outro já tentei, mas adormeço!
    Por isso "cultivem-me!
    Também apreciei o comentário do Chico!

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  11. Quando falha a esperança, resta acreditar num destino!
    Quantos casos como este que tão bem nos descreves, Quito!

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