Está em minha casa desde há quinze dias...
Quando acordo e acendo a luz, ela ignora o frio, abre a caixa onde guarda as pinturas e os cremes e começa a maquilhar-se, a pentear-se. Parece que receia que eu a veja descomposta.
Quando acordo e acendo a luz, ela ignora o frio, abre a caixa onde guarda as pinturas e os cremes e começa a maquilhar-se, a pentear-se. Parece que receia que eu a veja descomposta.
Ainda meio ensonado, vejo-a sorrir para mim, entreabrindo aquela boca bonita. Mesmo com este frio, veste-se com uma lingerie finíssima azul celeste, transparente, que me deixa entrever, por baixo, o corpo esbelto, bem desenhado.
Sentada em frente ao espelho da cómoda do quarto, passa o baton vermelho cereja nos lábios, com uma precisão milimétrica.
Com maestria, revira as pestanas e engrossa-as com rímel. Vou correndo o olhar pela pele lisa das suas costas, pela curva côncava da cintura, pelos longos cabelos louros encaracoladas caídos ao longo do corpo.
Ainda deitado na cama, observo-a a pintar as pálpebras com um pó esverdeado que lhe realça os lindos olhos azul marinho.
Lentamente, pega na escova e corre-a pelo cabelo sedoso, demoradamente. De vez em quando, suspira suavemente.
Volta a sorrir-me, deixa-me indeciso...
Mas não! Já estou atrasado.
Levanto-me, visto o roupão e dirijo-me para a casa de banho. Ouço-a desejar-me um bom dia, numa voz gutural que parece vir das suas entranhas.
Não lhe respondo.
E desligo o interruptor daquela linda boneca automática, a pilhas, que são activadas pela luz e que eu comprei para oferecer à minha neta quando ela cá vier.
Rui Felício
Que maravilha para o nosso blog porcalhoto ;O)
ResponderEliminarO que é meu é nosso, minha querida São Rosas!
ResponderEliminarSabes que a boneca é parecidissima contigo?
Tá bem autorizo!
ResponderEliminarSempre dá um ar de lavado ao que é porcalhoto!
É uma "lufada de ar fresco" com cheiro a maresia vindo da Ericeira!
Mas cuidado Rui.
Não ligues o interruptor todos os dias...
Ou então compra mais pilhas Duracel para quando a tua neta chegar a boneca esteja em forma!
Não vale a pena dizer-te que gostei muito!
É dificil senão impossivel não apreciar textos com esta qualidade!
Vai estar en cena por várias horas!
Diliciem-se...
Nota ADM.um abraço Zé Leitão.
Brinquem antes com um tubo de bolinhas de sabão...
ResponderEliminarDaqui a pouco virá a bolinha vermelha.
Não é só escrever bem. Uma pessoa fica em suspense até ao choque da voz gutural que desliga o leitor, ao mesmo tempo que o Rui Felício delisgou o interruptor. Também é preciso ter engenho e arte: aonde é que eu já li isto... mas... neste caso aqui fica muito bem.
ResponderEliminarNota: Espero que o Quito fique animado para uma desgarrada com o Rui Felício.
eh,a minha fantasia foi crescendo,crescendo numa expectactiva demasiado óbvia...mas a supresa do desfecho foi encantadora.
ResponderEliminarO Rui encontra certas preciosidades, como uma boneca que, acionada a pilhas, se penteia, maquilha e ainda sorri!
ResponderEliminarSe eu tivesse uma boneca assim, nunca a desligaria.
Um avô que nos faz boa companhia, contando-nos uma estória tão pueril, quanto bem urdida!
Linda surpresa esta tua boneca que fez em todos fantasiar e fazer voar a imaginação para tudo se desfazer com um simples clic dum interruptor.
ResponderEliminarUm abraço
Delicioso... levaste-nos às nuvens do imaginário sensual e fizeste-nos cair nos braços da inocência... belo!
ResponderEliminarObrigada, Rui.
Pois é! Rui, onde é que compraste essa boneca? Também vendem com 1metro e 60cm de altura?...
ResponderEliminarEra também para oferecer à minha neta!!!...
Este bom malandro do Moreirinhas, com o seu impressionante sentido de humor, quase me desanima a fazer um comentário sério.
ResponderEliminarMas, não vou desistir da intenção.
Porque me apetece, porque acho que o Felício merece.
É impressionante como, após a leitura das primeiras linhas do texto, se torna imediatamente legível a assinatura do autor.
Parece que o texto é manuscrito, permitindo reconhecer a caligrafia e, assim, esbatendo a frieza da linguagem virtual.
Na pequenez de uma simples folha A5, é admirável como se consegue criar uma estória, roçando a boa literatura policial, em que se encaminha o leitor para diversas hipóteses do final da estória, sempre escondido, até ao parágrafo final.
Tal como na literatura policial, há que refrear a curiosidade e a tentação de olhar para o final do conto para melhor saborear o enredo e o trama.
E a surpresa sempre acontece. O "criminoso" não é aquele que a nossa imaginação, bem iludida pelo autor, fantasiou.
Porque a sua fantasia vai sempre mais longe e, desta vez, até remata com um toque de doçura infantil.
Ó Carlos e tu não viste a boneca a fazer-te olhinhos quando punha o rimel, muito menos os ais que ela suspirava de vez enquando.
ResponderEliminarE nem sequer quero admitir o que pensaste quando leste a passagem":levanto-me visto o roupão e dirijo-me para a casa de banho...
O teu comentário é como se estivesses na Livraria Minerva a apresentar um livro de contos deste Autor e te referisses concretamente a esta estória!
Gostei do texto, como já referi,mas comentar assim, também dá prazer a quem lê!
Ó Rui, a boneca deve ser mesmo parecida comigo. Eu também sou insuflável...
ResponderEliminareheheheheheh (riso bem malandro)
No teatro, no ballet ou na ópera, os actores, os bailarinos, os cantores, expõem-se perante o público que os vê, cientes que no final poderão vir aplausos, mas também pateada ou indiferença.
ResponderEliminarÉ a atracção pelo abismo!
Porque, anterior à imprevisível reacção do público, está o incontrolado impulso de fazerem o que fazem.
É um vício, mesmo quando não é reconhecida a valia do seu trabalho.
Fá-lo-ão sempre, até ao fim da vida, quer obtenham aplausos, quer sejam pateados.
Nasceu com eles. Faz parte das suas vidas.
O vício de escrever é algo semelhante.
Seja ensaio, romance, humorismo, crónicas ou pequenos contos ficcionados ou reais.
A atracção pelo abismo é a mesma.
É gratificante ler os vossos comentários, que agradeço.
Eles são o retorno da exposição a que de bom grado me submeto, antecipadamente preparado para os acolher, elogiosos ou não.
A descrição deste teu texto...é de um "connaiseur"!!
ResponderEliminarA intensão e o final, é de um Avô ternurento.
GOSTEI MUITO.
Um texto com a assinatura Rui Felício. O seu toque de magia no final. É para mim impressionante a capacidade de escrita - excelente escrita - do Rui, bem como a sua capacidade de fazer textos do abstracto. Dou-lhe imenso valor, tanto mais, que as linhas que tento ir alinhando têm sempre - ou quase sempre - uma fonte real de "inspiração". As ideias na cabeça do Felício, brotam como o jorrar límpido de uma fonte. Cristalino.
ResponderEliminarNo blog «a funda São» já estão 25 contos (não de Réis, mas do Rui), dos quais 22 publicados e 3 no forno.
ResponderEliminarA partir de agora, têm uma etiqueta própria, bem merecida: «contos Felícios».
Bem hajas, Rui!
Estes textos do Rui Felício fazem-me lembrar um convite para dançar.
ResponderEliminarNós entramos na dança, deixamo-nos levar, mas temos sempre a sensação de que é bom estar de pé atrás, porque, a qualquer momento, o nosso par pode fazer-nos dar uma pirueta inesperada e é isso que torna irresistível a sua leitura.
Os desfechos inesperados são a cereja no topo do bolo com que já estamos todos lambuzados.
Um beijinho especial para a Isabel Parreiral que soube há pouco estar engripada.
ResponderEliminarAs melhoras, Isabel!
Para poderes dar a costumada assistãncia e companhia aos teus netos.
Quanto à outra doentinha, a Olinda, penso que estará para breve a serração do gesso para finalmente vir à luz do dia a sua bela perna.
Um beijinho também para ti.
À minha querida São Rosas não dou nenhum beijinho, mas um sensual aperto de mão, sem que o Rafael se aperceba, agradecendo-lhe o seu último comentário.
ResponderEliminarSó mesmo tu para conseguires dar um aperto de mão sensual :O)
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