quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

O ELOGIO DO COMBOIO ...

...a automotora ALLAN ...
Já tinha falado ao Rui Felício, deste artigo do “Jornal do Fundão”. Achei muito interessante, a abordagem ao centenário comboio regional, que vai calcorreando os carris da Beira - Baixa. E, se ao extenso artigo, juntarmos a prosa entusiasmante e envolvente do Nuno Francisco, estamos conversados. O Paulo Moura, beirão dos quatro costados, que, como eu, vai desfolhando as páginas deste grande semanário regional, por certo que também embarcou na carruagem dos afectos. Porque o artigo fala de um comboio, mas também das pessoas que fazem dele o seu meio de transporte. E é assim, pela pena do conceituado jornalista, que vamos ao encontro deste velho comboio, porque “ …na centenária linha, o tempo flui sobre os carris…”. Neste interior de um Portugal quase esquecido, acrescento eu. Acomodemo-nos pois, e partamos: “ … O silvo é intemporal. A marcha cadente nos carris, julgamo-la eterna. Este é um velho trajecto que se cumpre no desfiar dos dias que se esbatem no caminhar do tempo. A automotora avança indiferente à ruína das estações usurpadas de importância, sacrificadas no altar da memória; às portas e janelas com vista para o vazio em edifícios de importância esventrada, aos apeadeiros plantados na paisagem rural. São vidas apeadas em todas as estações e apeadeiros. Com vagar e destino certo. O serviço regional pela centenária linha da Beira Baixa. Democrático. Pára no lúgubre apeadeiro de aldeia e na vistosa estação da cidade. Não sabe quem entra, não adivinha quem sai. Simplesmente pára e aguarda novas. Paciente. É nas faldas da Gardunha que a velha automotora ALLAN, renovada em 2002, flui ainda ao labor do diesel que a empurra em direcção a Castelo Branco ( … ). O comboio regional das 13.08 é aguardado por cerca de três dezenas de passageiros. É com uma inusitada pontualidade britânica que chega à estação do Fundão. 13.08 em ponto. Sacos, grelhas, árvores de fruto entram na automotora, em clara denúncia do dia da semana em que estamos. A idade da maioria dos passageiros também denúncia outras geografias sociais, por onde este serviço da CP se desdobra. Desenha-se uma peculiar cartografia que será percorrida por este pequeno comboio até chegar a Castelo Branco. Um espaço rural envelhecido, despovoado. Um arrufo de modernidade está plasmado nos indicadores digitais que pontificam nas extremidades da automotora: sabemos que a temperatura exterior é de cinco graus e sabemos também a velocidade com que galgamos os carris. A saída do Fundão mostra um comboio quase lotado, com as conversas a cruzarem-se por entre um tema: a agricultura, com o excesso de “águas nas terras” a marcar o compasso das trocas de palavras. Esta é uma ampla sala – de - estar, onde quase todos se conhecem, onde se cruzam os pequenos dramas quotidianos, pelos menos aqueles que podem ser partilhados em público, em tom suficientemente alto, para que o diálogo se possa impor ao ruidoso monólogo do motor a diesel da ALLAN. Vale de Prazeres, Alpedrinha e Castelo Novo, fazem reduzir intempestivamente o cruzamento de palavras dentro da máquina. Balançamo-nos, agora, a uns estonteantes 54 quilómetros por hora. Vamos ganhando balanço e vamos perdendo passageiros por entre as estações e apeadeiros. 76 quilómetros por hora … 80 quilómetros por hora … 85 quilómetros por hora … rrrrrrrrrrrraaaaaaaaaaaaa ….13.45. Soalheira e o seu renovado apeadeiro, ditam o fim do concelho do Fundão. As conversas sobre agricultura desvanecem-se. Castelo Branco é já ali, o destino certo de quase todos os passageiros que subsistem dentro da carruagem. Falta Lardosa e Alcains. No entra e sai, chegámos à estação de Castelo Branco com perto de 20 passageiros. O roncar da máquina abranda. Nos derradeiros quilómetros já pouco se fala. Pouco menos de 50 quilómetros numa hora e dois minutos. A máquina chegou às 14.10. Como o horário anunciava. Com tempo. No seu tempo. Um tempo que, como estes carris, lhe pertencem há muito…”. Agora que o comboio regional chegou ao seu destino, são horas de partir. Espero, que tenham apreciado a viagem, com o Nuno por maquinista. Como Vos disse, é a história de um comboio que se cruza com os caminhos da vida de todos que fazem dele o seu meio de transporte. E também dos afectos da gente rija de Beira Baixa, que, amiudadamente, não o demonstrando na sua vivência do dia - a - dia, são genuínos, duradouros e leais. Transversais ao Tempo. Esculpidos no granito, no amanhecer e entardecer das gerações…
Q.P.

10 comentários:

  1. Viajei muitas vezes, num percurso mais alongado e mais demorado, e num comboio mais comprido e mais antigo, nesta linha da Beira Baixa. Todavia, não a conheço bem porque a percorria a dormir... Embarcava no Entroncamento por volta das 11,30 da noite de domingo e chegava à estação de Fatela, a 20 Kms de Penamacor, pelas 6 da madrugada de segunda-feira. Passava a viagem a dormir e o revisor acordava-me quando se aproximava o meu destino. Apanhava a carreira que serpenteava em zigue-zague pelas aldeias perdidas da região e que me deixava à porta do quartel de Penamacor perto das 8 da manhã. Fardava-me à pressa e ia dar a primeira aula do dia ao pelotão de recrutas que estava a meu cargo.
    Fiz isto durante os meses que tarimbei como militar no quartel de Penamacor.

    O Quito, ao escolher este belo texto, demonstra-nos uma coisa importante: - além de escrever muito bem,também sabe ler e escolher as leituras...
    Coisa que já se sabia, porque escrever é lançar a semente e a leitura é a colheita. E não sabe semear quem não sabe colher.

    Parabéns Quito!

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  2. Caro Rui
    Obrigado pelas palavras que me dirigiste. Sei que numa época da Tua vida, também calcorreaste este mundo interior. Por isso, tinha a certeza que o tema Te era caro. Estive tentado a colocar em destaque uma máquina a carvão. A Allan, com o seu toque de modernidade, não se assemelha a uma velha máquina de outrora. A visão de uma máquina daquelas envolta em fumarada, com um cavalheiro de chapéu alto e bengala a cruzar-se com uma donzela de vestido longo e sombrinha de cetim, no apeadeiro de Alpedrinha, daria um toque de romantismo Queiroziano, a este minha vontade de apanhar uma boleia do Nuno Francisco para elogiar um comboio.Afinal, um comboio centenário que, longe dos grandes centros, cumpre a sua missão. Transportar passageiros por esta paisagem nua e intemporal da Beira Baixa. E, no seu rame-rame,ser testemunha de histórias de vida, alegres ou pardas, da cumplicidade de um olhar enamorado de um jovem casal e de um rio transbordante de emoções...
    Abraço

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  3. Vós dois escrevem e eu leio!
    Assim talvez ainda vá a tempo de semear e me habituar a colher...se tiver tempo...

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  4. Só vou poder ler o Jornal do Fundão quando chegar a casa, à noite. Mas assim é um luxo, com esta leitura antecipada proporcionada pelo nosso Quito.
    E já deu para me relembrar das viagens diárias que fazia de Caria para o Liceu da Covilhã... as moedas que punha nos carris, coladas com pastilha elástica, para serem achatadas por aqueles monstros metálicos... e, recuando no tempo, aos meus 6 ou 7 anos, quando fiz a minha primeira viagem de comboio com o meu pai e eu quis brilhar quando parámos numa estação:
    - Ó meu Pai, estamos na estação de Senhoras!
    A carruagem onde íamos tinha ficado parada em frente às casas de banho...

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  5. Tenho andado últimamente pouco de comboio e as viagens que fazia era uma e às vezes duas por semana para Lisboa a caminho de reuniões, algumas, bem chatas.
    Era um prazer andar de comboio que dava tempo para tudo, para ler e até para conversar...
    Gostei do que escreveste. Um abraço.

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  6. Caro Paulo
    Se conseguiste fazer uma peregrinação pelos teus tempos de infância, já fico satisfeito por ter abordado o tema à boleia do Nuno Francisco.
    Há sempre episódios que nos marcam, como foi o caso da "estação das senhoras"...
    Para além deste artigo,há também um artigo de opinião do mesmo jornalista, de Célia Domingues e António Pinto Pires...
    Abraço

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  7. Caro Abilio
    Eu apenas fiz a introdução da prosa do Nuno Francisco. O artigo é dele. O fecho é que é também da minha lavra, escrito a verde, como terás percebido.
    Abraço

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  8. Para o Quito e Rui!
    Hoje num dia particularmente triste para mim, certamente o primeiro de alguns ou de muitos que se irão seguir, não podia deixar de agradecer os bonitos textos que tanto um como o outro, frequentemente escrevem prendendo-me e deleitando-me, absorvendo-me, levando-me assim por momentos, para longe da triste realidade da vida.
    Por momentos Quito senti-me mais uma passageira da velhinha automotora ALLAN partilhando conversas cheiros e vivências dessa gente sã da Beira Baixa!!!
    Um beijo.

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  9. Mais um belo,interessante e..."actual" texto do Quito!
    E...
    "Sou tão enthusiasta pelos caminhos de ferro que, se fosse possível, obrigava todo o paiz a viajar de comboio durante 6 meses."

    Fontes Pereira de Melo, in a "A Locomotiva", 1883

    ...
    Jose Leitao - Janeiro 2011

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  10. A "Allan" não fazia mais do que aquilo que lhe era pedido, transportando pessoas e cumprindo horários com rigor.
    Pois se até tinha carris!...

    Meu caro Quito, esquece a brincadeira.
    Gostei do texto que, modestamente, referencias como sendo mérito do Jornal do Fundão. A verdade é que não me escapou a tua introdução e, sobretudo, o fecho, o tal escrito a verde.
    Grande abraço.

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