...a automotora ALLAN ...
Já tinha falado ao Rui Felício, deste artigo do “Jornal do Fundão”. Achei muito interessante, a abordagem ao centenário comboio regional, que vai calcorreando os carris da Beira - Baixa. E, se ao extenso artigo, juntarmos a prosa entusiasmante e envolvente do Nuno Francisco, estamos conversados. O Paulo Moura, beirão dos quatro costados, que, como eu, vai desfolhando as páginas deste grande semanário regional, por certo que também embarcou na carruagem dos afectos. Porque o artigo fala de um comboio, mas também das pessoas que fazem dele o seu meio de transporte. E é assim, pela pena do conceituado jornalista, que vamos ao encontro deste velho comboio, porque “ …na centenária linha, o tempo flui sobre os carris…”. Neste interior de um Portugal quase esquecido, acrescento eu. Acomodemo-nos pois, e partamos: “ … O silvo é intemporal. A marcha cadente nos carris, julgamo-la eterna. Este é um velho trajecto que se cumpre no desfiar dos dias que se esbatem no caminhar do tempo. A automotora avança indiferente à ruína das estações usurpadas de importância, sacrificadas no altar da memória; às portas e janelas com vista para o vazio em edifícios de importância esventrada, aos apeadeiros plantados na paisagem rural. São vidas apeadas em todas as estações e apeadeiros. Com vagar e destino certo. O serviço regional pela centenária linha da Beira Baixa. Democrático. Pára no lúgubre apeadeiro de aldeia e na vistosa estação da cidade. Não sabe quem entra, não adivinha quem sai. Simplesmente pára e aguarda novas. Paciente. É nas faldas da Gardunha que a velha automotora ALLAN, renovada em 2002, flui ainda ao labor do diesel que a empurra em direcção a Castelo Branco ( … ). O comboio regional das 13.08 é aguardado por cerca de três dezenas de passageiros. É com uma inusitada pontualidade britânica que chega à estação do Fundão. 13.08 em ponto. Sacos, grelhas, árvores de fruto entram na automotora, em clara denúncia do dia da semana em que estamos. A idade da maioria dos passageiros também denúncia outras geografias sociais, por onde este serviço da CP se desdobra. Desenha-se uma peculiar cartografia que será percorrida por este pequeno comboio até chegar a Castelo Branco. Um espaço rural envelhecido, despovoado. Um arrufo de modernidade está plasmado nos indicadores digitais que pontificam nas extremidades da automotora: sabemos que a temperatura exterior é de cinco graus e sabemos também a velocidade com que galgamos os carris. A saída do Fundão mostra um comboio quase lotado, com as conversas a cruzarem-se por entre um tema: a agricultura, com o excesso de “águas nas terras” a marcar o compasso das trocas de palavras. Esta é uma ampla sala – de - estar, onde quase todos se conhecem, onde se cruzam os pequenos dramas quotidianos, pelos menos aqueles que podem ser partilhados em público, em tom suficientemente alto, para que o diálogo se possa impor ao ruidoso monólogo do motor a diesel da ALLAN. Vale de Prazeres, Alpedrinha e Castelo Novo, fazem reduzir intempestivamente o cruzamento de palavras dentro da máquina. Balançamo-nos, agora, a uns estonteantes 54 quilómetros por hora. Vamos ganhando balanço e vamos perdendo passageiros por entre as estações e apeadeiros. 76 quilómetros por hora … 80 quilómetros por hora … 85 quilómetros por hora … rrrrrrrrrrrraaaaaaaaaaaaa ….13.45. Soalheira e o seu renovado apeadeiro, ditam o fim do concelho do Fundão. As conversas sobre agricultura desvanecem-se. Castelo Branco é já ali, o destino certo de quase todos os passageiros que subsistem dentro da carruagem. Falta Lardosa e Alcains. No entra e sai, chegámos à estação de Castelo Branco com perto de 20 passageiros. O roncar da máquina abranda. Nos derradeiros quilómetros já pouco se fala. Pouco menos de 50 quilómetros numa hora e dois minutos. A máquina chegou às 14.10. Como o horário anunciava. Com tempo. No seu tempo. Um tempo que, como estes carris, lhe pertencem há muito…”. Agora que o comboio regional chegou ao seu destino, são horas de partir. Espero, que tenham apreciado a viagem, com o Nuno por maquinista. Como Vos disse, é a história de um comboio que se cruza com os caminhos da vida de todos que fazem dele o seu meio de transporte. E também dos afectos da gente rija de Beira Baixa, que, amiudadamente, não o demonstrando na sua vivência do dia - a - dia, são genuínos, duradouros e leais. Transversais ao Tempo. Esculpidos no granito, no amanhecer e entardecer das gerações…
Q.P.
Q.P.
Viajei muitas vezes, num percurso mais alongado e mais demorado, e num comboio mais comprido e mais antigo, nesta linha da Beira Baixa. Todavia, não a conheço bem porque a percorria a dormir... Embarcava no Entroncamento por volta das 11,30 da noite de domingo e chegava à estação de Fatela, a 20 Kms de Penamacor, pelas 6 da madrugada de segunda-feira. Passava a viagem a dormir e o revisor acordava-me quando se aproximava o meu destino. Apanhava a carreira que serpenteava em zigue-zague pelas aldeias perdidas da região e que me deixava à porta do quartel de Penamacor perto das 8 da manhã. Fardava-me à pressa e ia dar a primeira aula do dia ao pelotão de recrutas que estava a meu cargo.
ResponderEliminarFiz isto durante os meses que tarimbei como militar no quartel de Penamacor.
O Quito, ao escolher este belo texto, demonstra-nos uma coisa importante: - além de escrever muito bem,também sabe ler e escolher as leituras...
Coisa que já se sabia, porque escrever é lançar a semente e a leitura é a colheita. E não sabe semear quem não sabe colher.
Parabéns Quito!
Caro Rui
ResponderEliminarObrigado pelas palavras que me dirigiste. Sei que numa época da Tua vida, também calcorreaste este mundo interior. Por isso, tinha a certeza que o tema Te era caro. Estive tentado a colocar em destaque uma máquina a carvão. A Allan, com o seu toque de modernidade, não se assemelha a uma velha máquina de outrora. A visão de uma máquina daquelas envolta em fumarada, com um cavalheiro de chapéu alto e bengala a cruzar-se com uma donzela de vestido longo e sombrinha de cetim, no apeadeiro de Alpedrinha, daria um toque de romantismo Queiroziano, a este minha vontade de apanhar uma boleia do Nuno Francisco para elogiar um comboio.Afinal, um comboio centenário que, longe dos grandes centros, cumpre a sua missão. Transportar passageiros por esta paisagem nua e intemporal da Beira Baixa. E, no seu rame-rame,ser testemunha de histórias de vida, alegres ou pardas, da cumplicidade de um olhar enamorado de um jovem casal e de um rio transbordante de emoções...
Abraço
Vós dois escrevem e eu leio!
ResponderEliminarAssim talvez ainda vá a tempo de semear e me habituar a colher...se tiver tempo...
Só vou poder ler o Jornal do Fundão quando chegar a casa, à noite. Mas assim é um luxo, com esta leitura antecipada proporcionada pelo nosso Quito.
ResponderEliminarE já deu para me relembrar das viagens diárias que fazia de Caria para o Liceu da Covilhã... as moedas que punha nos carris, coladas com pastilha elástica, para serem achatadas por aqueles monstros metálicos... e, recuando no tempo, aos meus 6 ou 7 anos, quando fiz a minha primeira viagem de comboio com o meu pai e eu quis brilhar quando parámos numa estação:
- Ó meu Pai, estamos na estação de Senhoras!
A carruagem onde íamos tinha ficado parada em frente às casas de banho...
Tenho andado últimamente pouco de comboio e as viagens que fazia era uma e às vezes duas por semana para Lisboa a caminho de reuniões, algumas, bem chatas.
ResponderEliminarEra um prazer andar de comboio que dava tempo para tudo, para ler e até para conversar...
Gostei do que escreveste. Um abraço.
Caro Paulo
ResponderEliminarSe conseguiste fazer uma peregrinação pelos teus tempos de infância, já fico satisfeito por ter abordado o tema à boleia do Nuno Francisco.
Há sempre episódios que nos marcam, como foi o caso da "estação das senhoras"...
Para além deste artigo,há também um artigo de opinião do mesmo jornalista, de Célia Domingues e António Pinto Pires...
Abraço
Caro Abilio
ResponderEliminarEu apenas fiz a introdução da prosa do Nuno Francisco. O artigo é dele. O fecho é que é também da minha lavra, escrito a verde, como terás percebido.
Abraço
Para o Quito e Rui!
ResponderEliminarHoje num dia particularmente triste para mim, certamente o primeiro de alguns ou de muitos que se irão seguir, não podia deixar de agradecer os bonitos textos que tanto um como o outro, frequentemente escrevem prendendo-me e deleitando-me, absorvendo-me, levando-me assim por momentos, para longe da triste realidade da vida.
Por momentos Quito senti-me mais uma passageira da velhinha automotora ALLAN partilhando conversas cheiros e vivências dessa gente sã da Beira Baixa!!!
Um beijo.
Mais um belo,interessante e..."actual" texto do Quito!
ResponderEliminarE...
"Sou tão enthusiasta pelos caminhos de ferro que, se fosse possível, obrigava todo o paiz a viajar de comboio durante 6 meses."
Fontes Pereira de Melo, in a "A Locomotiva", 1883
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Jose Leitao - Janeiro 2011
A "Allan" não fazia mais do que aquilo que lhe era pedido, transportando pessoas e cumprindo horários com rigor.
ResponderEliminarPois se até tinha carris!...
Meu caro Quito, esquece a brincadeira.
Gostei do texto que, modestamente, referencias como sendo mérito do Jornal do Fundão. A verdade é que não me escapou a tua introdução e, sobretudo, o fecho, o tal escrito a verde.
Grande abraço.