Há já muito tempo que não viajo no Metro de Lisboa. Mas reconheço que é um excelente meio de transporte quando se tem urgência em atravessar a cidade de um ponto a outro.
Lembrei-me de um episódio nele passado, quando ainda era jovem, há já muitos anos...
Tinha embarcado em Entre-Campos, em direcção ao Rossio[clique]. A carruagem não ia muito cheia. Consegui encontrar lugar sentado, acomodei-me e tirei da pasta um livro que andava a reler, do Processo de Franz Kafka.
Já o tinha lido algumas outras vezes e de cada uma que lia era-me possível imaginar um destino diferente para o Sr. Kafka.
Olhando por sobre as suas páginas amareladas, pude observar poucos metros à frente, num daqueles bancos de costas para as janelas que alguém inspiradamente baptizou de “banco dos palermas”, uma linda e elegante morena de olhos negros. Discreta no vestuário mas suficientemente bonita para que se destacasse entre as demais mulheres que viajavam na carruagem.
Durante a viagem, por uma vez ou outra arrisquei-me a fitá-la. Fui surpreendido por um olhar de retorno e um disfarçado sorriso. Foi no meio dessa troca de olhares que na estação do Saldanha entrou um homem de avançada idade, casaco coçado de tamanho bastante maior que o corpo franzino que envolvia , trazendo na mão uma Bíblia de capa tão carcomida e antiga que cheguei a pensar se não se trataria de um original das sagradas escrituras.
O homem, postou-se em pé em frente ao “banco dos palermas” e começou, em altos brados, a apregoar a mensagem de Cristo, levando à letra a recomendação de “ide e espalhai a boa nova em toda a parte!”. Percebia-se a frouxidão da sua dentadura postiça, o que lhe dificultava a dicção.
O seu arengar era acompanhado da saída ininterrupta de gotículas de saliva com que, entre uma palavra e outra, salpicava os seus involuntários ouvintes.
Mas eu estava mais preocupado era em não perder de vista aquela bela mulher. Peguei num lenço de papel que trazia no bolso e rabisquei rapidamente o meu nº de telefone... Já próximo do Rossio, levantei-me, enchi-me de coragem e, antes de sair, entreguei o lenço àquela mulher.
Ao mesmo tempo, o velho pregador entusiasmou-se no sermão e disparou contra a formosa mulher ,um consistente e avantajado perdigoto, que a atingiu em cheio na testa.
O comboio já começava a abrandar para a entrada na estação do Rossio.
Ela com um sorriso constrangido, aproveitou o lenço de papel que eu lhe dera, desdobrou-o e antes que eu esboçasse qualquer reacção, esfregou-o na testa limpando o cuspo com que o pregador a tinha atingido durante a prelecção.
Virou-se para mim e disse-me educadamente:
- Muito obrigada, senhor...
E devolveu-me o papel! Sem sequer se ter apercebido que eu tinha lá escrito o nº de telefone!
Do lado de fora da carruagem, em plena estação, vi o comboio arrancar de novo. Através da janela,vi, a distanciarem-se, aqueles belos olhos negros, aquele lindo sorriso e aquele enorme borrão de tinta azul que lhe ficara a manchar a testa.
Na minha mão, o lenço de papel amassado, com o nº de telefone esborratado, que ela, com cortesia, me devolvera..Rui Felício
Outros tempos,Rui.
ResponderEliminarAinda andavas de Metro e ainda se faziam campanhas com tinta Cisne...
Já imaginaste o que terá acontecido aquela bela morena?!
Aplica-te e diz lá o que aconteceu à menina.
Eu gostava que este episódio se passase no METRO de Coimbra a caminho da estação de Miranda do Corvo!
ResponderEliminarMais um excelente texto que eu não tenho dúvida nenhuma que seja fiqção(não sei se no novo acordo é assim que se escreve-para não levar um "c" atrás do outro),sim porque acredito que de vez enquando leves a chamada "tampa"!
Também não são tudo "favas contadas"!
E em conclusão dá para perceber que tu e a "menina" iam em bancos trocados!
Ora pensa lá bem!
O Rui Felício não perde qualquer oportunidade para "trocar olhares". Estou-me a lembrar de uma troca de olhares no "Mandarim" que me proporcionou a leitura de um dos mais interessantes textos que produziu.
ResponderEliminarQuanto à viagem de metro que aqui nos traz, não me parece ocasional o facto de ser Kafka o seu companheiro. Tenho de reler "O Processo" para confirmar mas esta é a minha primeira impressão...
Ficção ou não, esta linda morena conseguiu enfiar no bolso do nosso Escritor um consistente e avantajado perdigoto.
Mas, sem querer, não por vingança mas por acaso, ele carimbou-a com o seu timbre azul...
E ele há coisa mais erótica que o desejo que se fica por... um perdigoto?
ResponderEliminarÉ claro que este texto vai para o blog porcalhoto ;O)
Antes, elas deixavam caír o lencinho, agora deixaram-se destas batotas... "se queres... diz já!"
ResponderEliminarPois eu não creio que este texto seja ficção.
ResponderEliminarMas também não acredito que o Rui tivesse deixado a pequena ir embora, sem mais nem menos!...
Mas se deixou a pequena ir embora só com o carimbo esborratado na testa, de certeza que durante muitos dias andou a fazer aquela viagem de metro e à mesma hora!!!... Ele tinha que a carimbar como um cavalheiro...
Por isso é que ele diz que leu o Processo muitas vezes...
Extrai-se de “O Processo” de Kafka, o paradoxo de ser mais fácil negar a culpa inexistente, do que ter de se provar a inocência de uma acusação infundada.
ResponderEliminarÉ a regra da inversão do ónus da prova, própria das sociedades totalitárias.
Mais difícil ainda é resistir aos encantos da beleza feminina, em que não há culpa ou inocência.
Apenas desejo...
... e perdigotos!
ResponderEliminarO Rui, vai habituando todos aqueles que vão seguindo o blogue, a textos que amiudadamente surpreendem. Num olhar atento,o destaque para os três personagens que se perfilam. Sim, porque o autor é parte integrante desta novela, que mete igualmente uma interessante mulher, e aquela espécie de profecta biblico.A forma como se interligam no cenário da carruagem, os olhares, a dicção ou falta dela daquela espécie de "pastor" de almas, dão um interesse à narrativa que se lê com agrado e a curiosidade de se perceber o final. E o final não podia ter sido construído com maior mestria.Acredito, sinceramente, que este episódio se tenha passado. Mas também acredito haver "um toque de fantasia", no borrão marcado na testa da bela dama.E é nesse surprendente toque de magia, que está o burlesco e o picante de uma história de que Eça, certamente, não desdenharia. Parabéns, Rui! Arruma mais este texto na prateleira da já tua longa, por vezes desconcertante, e bela escrita...
ResponderEliminarAbraço
Rui, reli o teu texto e ri-me "esperdigotando-me"!!!
ResponderEliminarConvencidos...
Fui lendo o texto e até tem um fundo de real. Mas não ter o Rui Felício visto o borrão na testa dentro do comboio quando recebeu o lenço, ... Hum... parece-me que a estória não está acabada. Já estou à espera da próxima.
ResponderEliminarNão me "esperdigotei" como tu Celeste, mas esta narrativa deu-me vontade de rir e ao mesmo tempo fez-me recordar algumas cenas engraçadas passadas comigo na época dos "eléctricos" devia ter por volta dos os meus quinze ou desaseis anos! É evidente que perante a fluidez e graça com que um dos nossos narradores escreve, mais precisamente o Rui F. jamais me atreveria a passar para o ecran pequenos "apontamentos" que naquele tempo me punham em alvoroço e me tiravam muitas horas de sono...apesar da educação espartana com que fui educada pela minha santa Mãe.Devo dizer que apesar disso tudo, com a conivência de uma empregada nossa
ResponderEliminar(nesse tempo Criada) e também com a ajuda da localização da nossa casa, mesmo dentro do Penedo da Saudade sempre me safei bem, tirando partido do que podia e fazendo muitas vezes o que não devia!!!!
Mas tudo isto vem a propósito do romântico testemunho que o "sonhador" Rui tão bem descreveu!
Lamento não vos contar nada de interessante, nada de picante, eu até talvez pudesse...mas não, a única coisa que me ocorre dizer é que foi precisamente no "eléctrico", com o nº3 que numa troca de olhares eu fiquei apaixonada por uns olhos azuis celestiais e ele por uns olhos castanhos leais!
E foi assim que passados cinco meses eu e ele passámos de solteiros, a casados...
END
Moral da história;
Eu saí do eléctrico...e ele veio atrás de mim, para ver onde eu morava e depois de se ter informado o nome da família que ali vivia,ter passado a noite toda, agarrado à lista dos telefones a procurar pela "direcção" o meu nº do telefone!!!!! CONSEGUIU!
Há umas pequenas "falhas" na escrita das quais peço desculpa.
ResponderEliminarDeve ter sido da emoção!!!!!!!
Maravilha, Teresita. E nem um perdigoto!
ResponderEliminarFelício mostra o lenço com a tinta Azul.
ResponderEliminarUm Abraço.
Tonito.
E o papel amassado permanece bem guardado na caixinha de memórias...As viagens em transportes públicos são recheadas com estórias bem interessantes como esta!
ResponderEliminarSempre viajei em autocarros dentro de Coimbra,para a Pedrulha e para Ceira( meus locais de trabalho)e o cruzar de olhos,jogos de sedução ou atitudes menos correctas vivenciei...
Fizeste recordar-me algumas "coisas" giras nessas viagens!
Meu Caro Chico. A continuação da história faz parte das minhas recordações intimas que não devo revelar. Mas dá para imaginar,não?
ResponderEliminarInteressante e divertida história.
ResponderEliminarA forma como é introduzido o pregador de placa dos dentes a saltar da boca, é um achado. Este é o elemento perturbador, numa história que se adivinhava duma conquista que a troca de olhares fazia antever.
Quando em acto quase de desespero escreveste o nº de telefone no lenço, mesmo assim, os "desígnios do Senhor", fez com que ela incomodada com a situação, nem disso se tenha apercerbido, e, identificou tal atitude como uma gentileza da tua parte face à saraivada de perdigotos do pregador.
Acredito que nos dias seguintes bem que andaste de Metro à sua procura, claro, só para ver se ainda tinha tinta na testa.
Rui Felício,
ResponderEliminarDá, dáá.