Solidariedade ...
É aqui, sentados junto à chama pálida da lareira, que falam do crepitar do Tempo. E da vida. O regresso ao passado, faz-se pela permuta das memórias. Das memórias dum Tempo que partiu, na cadência ritmada do cruzar dos dias. A uni-los, uma profissão que lhes endureceu o rosto e lhes marcou o corpo. E a alma. De mineiros Vos falo, deste rincão da Beira Baixa. Era o turno da tarde. O Manuel Batista, esburacava, a picareta, a parede húmida onde havia de assentar o travejamento de madeira da galeria. Foi então, que lá do fundo da mina, apareceu o demónio sobre carris. A vagoneta, desgovernada, esmagou-o contra a parede. De vários lados, apareceram mineiros, na tentativa de o resgatar à morte. E o capataz. Tarefa inglória. O homem da Maria das Dores finara-se, quando procurava o sustento da vida. Para si e para os seus. Rapidamente o trouxeram para a superfície, embrulhado num lençol. Lá em baixo, ficaram os outros. Foi então que o capataz falou. Em voz imperativa, ordenou o regresso ao trabalho. Foi a gota de água que fez transbordar o copo. O Alves, abeirou-se dele, e com a manápula aberta como uma tenaz, filou - o pela garganta. Por momentos, lutaram. Os outros tentaram desapertá-los, e, naquele poço sombrio, apenas a fantasmagórica luz dos capacetes dançando no tecto da mina, era testemunha muda e lúgubre daquele ajuste de contas. O Rosa, era um homem cruel, um esbirro a soldo da Companhia. Culpavam-no do desaparecimento do Taborda, elemento destacado da luta dos mineiros, na busca de melhores condições de vida. Um dia, apareceram na mina dois indivíduos de fato escuro e chapéu de aba larga, bem - falantes, que o levaram num carro preto. E o Taborda, nunca mais voltou. Com o capataz encurralado contra a parede, o Alves apertava, apertava, apertava, até que os outros gritaram: “…pára Alves, … pára.. !!!”. Sentaram-se, então, ofegantes, até que o Alves, com o dedo indicador apontado ao nariz do capataz, ameaçou-o: “…se bufares lá em cima o que aqui se passou cá em baixo … se puseres o sustento de todos nós em risco, desces o poço e já o não sobes com vida ...”. O tempo foi passando. O regresso ao trabalho na mina, normalizou. Mas a Maria das Dores ficara em sérias dificuldades, com três filhos para criar. Era ainda jovem e bonita. Mas, no rosto sofrido, a marca das privações. Eram os companheiros da mina, que, do seu magro salário, se quotizavam na ajuda à sua sobrevivência e à dos filhos. Maria das Dores, era agora património afectivo daquele grupo de mineiros, que tomaram para si a tarefa de a ajudar, na medida das suas pobres posses. Até que um dia, chegou à mina, um francês. Um jovem francês. E, naquele turno da noite, falou dos encantos da Maria das Dores. Excedeu-se, num entusiasmo brejeiro. Quando deu por ela, estava agarrado pelos colarinhos da camisa de ganga. Percebeu então, que Maria das Dores era uma mulher respeitada e ajudada no seu drama de viúva, com três filhos a seu sustento. O desdém do francês, porém, não era mais do que um coração em desatino. Sob o olhar atento dos outros, enamorou-se dela. Um dia, casaram. E, assumindo os filhos da Maria das Dores como seus, numa tarde fria e cinzenta, partiram para a França. De capacete e cara mascarrada, os mineiros despediram-se deles. E das crianças. Foi ali, numa rua escura do bairro da mina, que o caminho sinuoso do Destino, os separou. Os mineiros voltaram para o fundo do poço. A Maria das Dores, filha adoptiva daqueles homens de rosto rude e coração de ouro, partiu. E nunca mais voltou.
Q.P.
Q.P.
Esta foi uma história de vida, dos anos 50 do século passado. Foi-me contada pelo ex-mineiro Manuel Pedro da Silva, já falecido. Na sua linguagem simples e rude, pintou esta tela de cor negra. Pretendo, agora, emoldurá-la com a cor dourada da solidariedade. Fraca moldura. Outros, profissionais da arte de escrever, saberiam tirar partido deste drama, imprimindo-lhe a inteensidade requerida. Tentei limar-lhe as arestes, romanceando-o,para que não me acusem, se calhar com razão, de uma escrita macilente e descolorida. Ficou a intenção.
ResponderEliminarTu abusas de ti próprio, Quito. Se eu fosse ao Quito escritor, mandava o Quito (auto)crítico ir lá fora ver se ainda está nevoeiro.
ResponderEliminarO meu Pai foi professor primário nas Minas da Panasqueira. Contou-me muitas histórias reais que já na altura só de ouvir me doíam... e uma vez levou-me lá, ainda criança, para eu ficar a saber que aquilo não era ficção.
A Solidariedade parece estar sempre muito mais próxima (e mais presente) de quem tem uma vida muito mais dura.
ResponderEliminarEm vidas "mais suaves" essa Solidariedade, na maior parte das vezes, acomoda-se ou é mesmo adormecida...
(Não te desfaças dessa tua "lareira", Quito! Como tua fonte inspiradora também nos aquece!)
A realidade de uma vida dura que nos trazes através do testemunho de quem a viveu.
ResponderEliminarO espírito de grupo a sobrepôr-se a quem quer
"bufar"ou "tirar partido"de uma colega...Mas a Maria das Dores foi mesmo amada pelo francês e
a sua vida tomou outro rumo...e a camaradagem, de novo, falou mais alto,na hora da despedida.
Estas vivências são,afectivamente,bem
descritas por ti!
Quito
ResponderEliminarFalo bem a sério. "Pincela" os teus textos como quiseres. Dá lhes a cor e a vida que entenderes, mas escreve, companheiro. Escreve, e um dia põe pernas ao caminho e publica o que tão bem sabes dizer com as palavras.
Parabéns.
Um abraço
Trago aqui mais uma cavaca, para não deixar que a fogueira esmoreça.
ResponderEliminarUm quadro de pinceladas cinzentas de um trabalho árduo, outras verdes da esperança de um futuro diferente e risonho.
A moldura, de um dourado intenso!
A realidade, nua e crua, descrita com a assinatura do Quito!
Um artigo que nos fala da gota de água originada por anos de sofrimento na mão de um despota, de uma fatalidade que só um grupo de mineiros foi capaz de suavizar. Fala-nos de dois amores, um dos quais ao próximo e desinteressado no caso do grupo de mineiros para com a Maria das Dores e seus três rebentos. Finalmente o amor no seu explendor aonde um imigrante aceita os seus filhos e leva-a com ele para uma vida diferente. Que mais o Quito nos irá dar? Esperemos.
ResponderEliminarMais uma pérola.Quito.
ResponderEliminarObrigado.
Sei que não gostas de rótulos,mas nesta escrita das entranhas,que fala da vida física e musculada,de homens e mulheres,da vida dos afectos e da solidariedade,já algumas vezes vislumbrei o traço fundo do neo-realismo.
Não sou crítico literário.Só quero que escrevas.
Um abraço.
Um Abraço Quito.
ResponderEliminarTonito.
Com que prazer leio os teus textos!
ResponderEliminartem os condimentos todos para prender o leitor até ao fim!
Confesso que não esperava este final..mas ainda bem...porque a Maria das Dôres depois de tanto sofrimento bem merceu que a vida deixasse de ser madrasta para ela e para os filhos!
Sublime!
ResponderEliminarExcelente!
Nota 20!
Alias so 20's...em tudo o que escreves!!!
Parabens e da ca um abraco.
A minha homenagem à forma sentida como escreveste este episódio da vida numa mina, está na postagem do Hino dos Mineiros de Aljustrel que postei.
ResponderEliminarUm abraço
Abílio
Hoje foi dia de alegria nacional.
ResponderEliminarO Benfica ganhou, pela primeira vez, a um clube alemão, passando à seguinte fase da competição europeia. O Braga contribuí poderosamente, derrotando o seu adversário europeu, para a nossa alegria. O Porto, já ontem, mesmo perdendo, também ganhou e afastou um clube com elevados pergaminhos e ainda por cima espanhol! Só o Sporting, confirmando a crise na crise, não correspondeu às nossas ansiedades. Ainda assim, pode-se dizer que conseguimos 75% de êxito. Quase que temos a Europa ajoelhada a nossos pés...
Os jogadores de futebol estavam, até há bem poucos anos, isentos de pagamento de IRS. Hoje pagam impostos sobre 50% dos seus salários.
Este estatuto fiscal tem a ver com o estatuto de profissionais, justamente ou não, considerados de "desgaste rápido".
Este estatuto de excepção fiscal sempre me revoltou e, defendendo a minha irritação e contrariedade, sempre perguntei se os mineiros não tinham um "desgaste mais rápido"...
O Quito, sempre solidário com os que mais sofrem a dureza de uma sociedade injusta, oferece-nos mais um texto repleto de pistas para uma boa meditação.
Toma lá um abraço.
Meu caro Biana.
ResponderEliminarNota bem.
Uma coisa é uma coisa.
Duas coisas são duas coisas.
Um mineiro é um homem que trabalha.Ninguém lhe disse,nem ele pretende saber,se tem uma profissão de desgaste rápido.
Aprendi isso na Panasqueira e,muito melhor,no Pejão.
Os "profissionais" do futebol são umas "figuras" para pendurar nas paredes,ao lado das gajas semi-nuas(ou mesmo nuínhas de todo).
Uma coisa é trabalhar.
Outra coisa é estragar a parede com o boneco.
Um abraço.
Frederico Fellini transformaria esta história num filme. Eça de Queirós assumiria a autoria deste texto.
ResponderEliminarMas talvez, num e noutro, lhes tivesse faltado a sensibilidade do Quito que soube sublinhar a rudeza e a honradez do povo beirão. Rude, quando foi preciso colocar o francês na ordem. Justo quando acreditou na sua seriedade e boas intenções.
Porque acima de tudo, estava a honradez de uma filha da terra.
Mais uma vez, não consegui despregar o olhar de mais uma bela narração, à moda do Quito, como tantas outras. Qual delas a melhor. A deliciosa forma como escreves, isalta ainda mais a sensibilidade de cada um, não deixando ninguem indiferente e, as histórias, apesar de muitas nostálgicas, atingem inorme relevo e um baleza imensa.
ResponderEliminarBem hajas
Abraço
Já não era para aqui voltar mas ao ver o comentário do Carlos Viana, mudei de ideias ao ler que os jogadores de futebol pagam 50% do IRS, porque são considerados pessoas que sofrem um "desgaste rápido".
ResponderEliminarO jogador de futebol no nosso país, pois é este que está em causa, ganha muito acima dos bons salários, o que não me cria inveja nenhuma. São pessoas que pelo seu talento ajudam a movimentar económicamente um país, pois são os bilhetes que se vendem, fotografias, revistas, tempo de televisão, etc, etc, que dão trabalho a muita gente, além das empresas que originam ou possam fazer parte. O mesmo acontece com os artistas. Por isso recebem muito mais e estou de acordo. Agora que um estado de direito, que deve manter a igualdade dos seus cidadãos, situação que deve estar institucionalizada e faça uma certa classe pagar só 50% do IRS, para mais uma classe que está superiormente paga, aonde está a tal apregoada democracia? Nunca pensei! – Também me admira como não há grupos de cidadãos que façam valer os seus direitos, pois até os há com capacidade.