Choupal -1948
Foi numa longínqua Primavera. Sozinho, ao volante de um velho Volkswagen do Estado, rumei à Mata Nacional do Choupal. Comigo, a incumbência de procurar uns documentos, no arquivo ali instalado. Num ambiente frio e bolorento, dediquei-me à tarefa. Durante horas, fui consultando as “folhas de jornais” dos funcionários da Mata, de tempos de antanho. Missão de paciência, desfolhar aquelas páginas azuis e húmidas, que eram o registo dos dias de trabalho, da jorna de cada um. Em cada folha, alguns nomes conhecidos, do meu tempo de meninice. Quando eu corria à desfilada com o meu cão, pelas margens do Mondego. A contrastar com o desconforto do local, lá fora, o esplendor de um dia radioso. Após a minuciosa tarefa, decidi fazer uma romagem de saudade. A pé, parti Choupal abaixo. Em cada árvore, em cada caminho, em cada trilho, em cada pedra, uma memória. Com o Mondego a meus pés, recordei a frágil ponte do Pama. Unia as duas margens do rio e, no Inverno, a intempérie e a força das águas, ameaçavam destruir o “ganha – pão” do humilde habitante da margem esquerda do rio, que cobrava uma magra quantia, por cada travessia da ponte. Depois, por minutos, por muitos minutos, contemplei a casa onde nasci. Em recolhimento, relembrei o dia glorioso, em que o Fernando Pimenta me fez um carrinho de madeira. O desgosto daquela tarde, em que, de joelhos no chão e a soluçar, sepultei debaixo de uma frondosa nespereira, o meu velho cão “Blego”. E lembrei a “roda doida”. Era a nora que, generosamente, trazia no cirandar dos seus alcatruzes, o peixe que alimentava as bocas de muitos habitantes da região. Junto dela me sentei, olhando, absorto, aquele fragmento da minha memória. E, em cada alcatruz, uma lembrança. Uma passagem pela eira, onde aprendi a andar de patins. E as memórias das estrondosas quedas. O verde “motor – de – rega” que, com o seu ronco cavernoso, alimentava as pequenas valas, por onde corriam a cantar, fios da água cristalinos. Em passo lento, embrenhei-me num eucaliptal, que dá acesso a um local de grosso areão. Ali, também um singelo braço de rio. Na água transparente, pequenos peixes, deambulando na procura de comida. E um pequeno e velho barco negro, encalhado na estreita margem. Sentado no areal, fragilmente só, sorvendo em pequenos tragos aquele caldo de solidão, revivi o filme da minha infância. Quando já morava no bairro, e ali ia visitar os meus avós. Recordei a sinfonia do vento, nos dias cinzentos e agrestes. E o silêncio das noites estreladas, embrulhado na capa do meu avô. O silvo agudo da máquina a vapor, na Estação Velha, naqueles entardecer de Outono. E o barulho metálico e ritmado dos seus rodados, ao passar a vetusta ponte de ferro, no coração do meu Choupal. Foi então, que senti uma leve comichão no rosto. Instintivamente, levei a mão à face, e percebi que estava molhada. Era o silêncio de uma lágrima …
Q.P.
Q.P.
Como sempre, lavras com rara beleza textos ricos, de encantar. Deleito-me ao consumi-los, embalado pela melodia que da leitura brota e pela fragrância dos aromas que a cada palavra lida, mais estimulam a ância de chegar ao fim, sem qualquer vontade de acabar.
ResponderEliminarAbraço
Bravo!!!
ResponderEliminarCaro amigo! Essa lagrima, mesmo em "silencio" deve ter um sabor muito especial! Leio, releio e...volto a ler este belo "poema" !!! Mais um!
Dá cá um abraço! E ... se fosse uma història de "faca e alguidar"...a tal jornalista (?), já me tinha contactado! Essas "historias" ...vendem-se!!!??? Enfim...
ResponderEliminarComo os alcatruzes da nora que tanto fascinaram a minha meninice quando apreciava, horas a fio, o seu rodar e o característico barulho das ferragens e da água a escorrer, ali para os lados da Lapa dos Esteios, também agora a lágrima silenciosa do Quito me faz recordar esses tempos que não voltam...
ResponderEliminarEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarQuito
ResponderEliminarQue lindo relembrar do passado aonde não falta o mais pequeno pormenor das tuas recordações do Choupal, nem os momentos em que te embrulhavas na capa do teu Avô até à comichão no rosto e a respectiva lágrima. Quito, é um texto muito bonito.
Já que mostras o teu Avô no Choupal, trouxe-me a recordação que foi lá que o corpo do meu Avô foi encontrado sem vida, morto por política. Republicano ferranho, tinha fechado a farmácia em Ceira e ido de bicicleta até Coimbra para dar vivas República, no dia da sua instauração. Era por este motivo que o meu Pai não deixava os filhos de nenhuma maneira se meterem em política e talvez como numa retaliação aos republicanos, era monárquico convicto. Só tive conhecimento do acontecido com o meu Avô depois de voltar de África e lá, compreendi algumas situações do passado.
Li o texto mas não acabei de o ler. Está a passar pela ponte das tuas memórias para as minhas.
ResponderEliminarBem hajas!
Quito é um dos melhores textos que escreveste, para mim talvez até o melhor!
ResponderEliminarLogo o título que escolheste para o texto deixava antever que iria ter uma grande carga emotiva!
"O Silêncio de uma lágrima"...é o título perfeito para a capa do livro das tuas memórias!
Tenho a esperança que um dia isso acontecerá!
Não quero também deixar passar sem uma referência e a propósito deste teu belo texto o comentário do Chico Torreira que lembrou a morte dramática do avô exactamente no Choupal!
É nestes espaços de partilha que tomamos conhecimento de factos do passado que envolvem os nossos amigos!
Boa prosa, como sempre.
ResponderEliminarUm Abraço.
Tonito.
O presente constroi-se com os alicerses da memória de factos passados, e, o Quito, mais uma vez nos deleita de forma brilhante com o relato saudoso de momentos vividos do tempo que já não volta.
ResponderEliminarA tua lágrima é a de todos nós quando desfolhamos as páginas amarelecidas da nossa memória.
Um abraço Quito. Gostei.
Abílio
Temos muitas espécies de "choupais" nas nossas memórias e tu tens o condão de no-los saber recordar! Obrigado Quito!
ResponderEliminarQuito,
ResponderEliminarOs teus textos têm o condão de nos transportar ao local que relatas, e fazem-nos sentir as mesmas emoções que tu sentes ao escrevê-los.
O Tonito na fotografia e tu nos bonitos textos que escreves, são realmente uma mais valia para o nosso Blog.
Beijos para ti e para a São.
Lágrima
ResponderEliminarsilenciosa,
salgada,
teimosa.
Cócegas na face,
sorriso doce.
Ruga sulcada
no teu Choupal.
Intemporal!
Belíssimo texto! Compreendo perfeitamente essa lágrima!... Também já me aconteceu, de visita à casa onde vivi, desde que nasci até aos 30 anos!
ResponderEliminarTambém me aconteceu, quando regressei a Timor, 32 anos depois de lá ter estado na tropa.
O teu texto fez-me lembrar tudo isso!
Obrigado.
Lembranças afectivas,intimas,tistes e alegres
ResponderEliminardo teu Choupal...também tenho algumas deste recanto de Coimbra mas as tuas são muito especiais,Quito,ali nasceste e cresceste e o teu
cunho pessoal e familiar está lá bem enraizado.
Como te compreendo!
A infância, a adolescência, a juventude, uma boa parte da vida do Quito está no seu Choupal.
ResponderEliminarComove-se falando dela e transmite-nos a emoção.
Da mesma forma que a velha máquina a vapor fazia ouvir o seu barulho metálico e ritmado, o Quito faz-nos sentir a sua saudade e a sua gratidão por ter sido parte do coração do Choupal.
Parabéns e ... aquele abraço.
Vale a pena observar a foto com atenção e fazer a ligação ao texto.
ResponderEliminarMais uma vez, parabéns!
Muito emotivo, muito belo.
ResponderEliminarParabéns
Este texto também me transportou no tempo para a minha meninice. Dos passeios e jogatanas na mata (com o meu pai na baliza), de irmos dar à roda no bebedouro de onde a água saía cristalina, matando-nos a sede e preprando-nos para mais aventuras, dos Volkswagens dos serviços onde me sentava a fingia que "conduzia" (lembro-me tb da Mini Moque que uns anos mais tarde tentei comprar num leilão que foi depois ganho pelo Paulo Quelhas). Lembras-te daquela vez que assaltaram um Volkswagen e que fui à PSP com o avô pq precisavam de algúem baixinho para meterem pelo óculo de trás e abrir a porta ?? Lembro-me que fiz uma birra de todo tamanho pq estava cheio de medo de entrar no "carro dos ladrões" :)
ResponderEliminarNaquela mata vive um pouco de todos nós, que amamos Coimbra, e entristece-me muito ver por lá tanta coisa abandonada e estragada. Os campos junto da casa onde nasceste ainda os vi todos cultivados. O circuito de manutenção está uma miséria. Enfim ...
Outra coisa absolutamente fabulosa é a foto do texto. Penso que não referiste isso mas a foto foi premiada num concurso certo? Quando olho para ela sinto-me tranportado para dentro da própria foto, como se fosse eu o fotógrafo e estivesse a colocar aquele "quadro" na objectiva ...
Pois, Gonçalo, esta foto teve um 1º prémio em Espanha, creio que Salamanca.É a foto do teu bisavô. E do Choupal.Quem a tirou, foi um padre que na altura vivia na zona, que se chamava Samagaio.
ResponderEliminarDesde que o Choupal saíu da esfera dos Serviços florestais, foi a pique. Nem vale a pena contestar. O abandono da mata fala por si. E as imagens valem mais que mil palavras. A peregrina auto-estrada só passa rente ao Choupal, derrubando apenas uma faixa de 200 ou 300 metros de Mata e as suas àrvores centenárias. É o que eles dizem. Mas fica conspurcada com o fumo e a poluição sonora.E um dos tesouros do Choupal que foi meu, era o silêncio. Apenas a locomotiva a vapor tinha direito ao seu silvo agudo. Esse som, estridente, era património da Mata. Vão assassinar o meu passado e a minha infância. Pois que descansem também no inferno...
Abraço