Agosto acordou chuvoso. Uma bênção dos céus. Aqui, neste recanto beirão, um manjar para as terras ressequidas. Uma chuva miudinha e enervante. Lá no alto, junto à recta da esteveira, a terra castanha e húmida, transforma-se agora num amarelo desmaiado, ausente da poeira sufocante dos dias de estio. Até as árvores que compõem o cenário, se vestem de um verde mais carregado, sobressaindo na paisagem árida que as rodeia. Só não muda o ritmo do Tempo. Um remar lento, num caudal de solidão. E é neste vazio temporal que vou guiando, ao ritmo sinuoso da estrada estreita. Vou absorto nos meus pensamentos. O destino é o café do David. Paro e entro para almoçar. O David, logo que me vê, estende-me a mão por cima do balcão. É ali que ganha a vida, agora que recuperou de grave enfermidade. Atrevia-me a dizer que vive num mundo de fantasia. Atrás de si, tudo é um universo de cor. Garrafas contendo os mais variados líquidos coloridos, copos exibindo siglas variadas e apelativas, cartolinas com os furos da sorte ou azar e reluzentes prémios expostos, a que não falta, até, uma garrafa de licor. Um relógio verde, de ponteiros dourados, anuncia uma marca de cafés. Também um calendário vermelho, pendurado numa prateleira, com uma águia de bico ameaçador e asas enormes, que quase ocultam alguns dos artigos de consumo. É um calendário do Benfica. Entro, então, na sala de almoços, repleta de operários. E de emigrantes, que fazem questão de se demarcar dos demais. Falam francês, para que toda gente os oiça. Fico numa mesa comprida. Sou o único que tenho a roupa limpa, naquela mesa. A roupa dos outros está suja de terra ou óleo. Tem as marcas do labor sofrido de cada um. Ao princípio, olham-me com desconfiança. Um até me pediu desculpa, por estar a “perturbar” o meu almoço. Mas esse foi o mote para começarmos uma conversa. Mais à vontade, o diálogo ganhou asas como o vento. Falou-me que vai vivendo de pequenos trabalhos ocasionais e de uma passagem pela Suiça para esquecer. Trabalhava duramente dez horas por dia e alimentava-se muito mal. A comida da empresa, não tinha a quantidade nem a qualidade suficientes. Por vezes, jantava fora, para não ir para a cama sem uma refeição decente – disse-me. Agora, com três filhos e mulher em casa, são grandes as dificuldades. Falou-me em momentos angustiantes, para fazer face às necessidades da família. No fim, despedi-me dele, com um aperto de mão. Retribuiu, sorrindo. Reconheceu-me, depois, como ligado a uma farmácia. E falou-me de solidariedade, num dia em que precisou dos serviços cá de casa. Depois, parti. E de novo fechado nos meus pensamentos e desencanto, percebi que, naquele dia, tinha sido servida angústia para o almoço.
Q.P.
Q.P.
Almoço, todos os dias úteis, com operários. Tu darias um óptimo Gestor, Quito.
ResponderEliminarAbre aço!
Lindissimo texto Quito. Vai-me acompanhar nesta sesta de meia hora que tento respeitar diariamente!Mas olha uma coisa! Emigrantes em férias, com roupa suja, jà nao acredito!Os emigrantes quando vao de férias jà nao trabalham!!Dao a fazer àqueles que ainda aceitam de trabalhar! E o que me contam aqui!!
ResponderEliminarQuanto à quantidade da comida que se dava na Suiça, claro que nunca chegaria para os Portugueses que estao habituados a comerem como uns alarves!!!!Até na alimentaçao hà educaçao!!!
Mas adorei a tua historia.
Um abraço
BobbyZé
ResponderEliminarNão entendeste completamente o texto. Não relatei emigrantes sujos. Esses, trazem roupa de veraneio. Afinal, estão de férias em Portugal.
Referia-me aos que aqui vivem na zona e que no intervalo do trabalho almoçam naquele local.Por aqui, como em todo o país, o trabalho escasseia e há situações sociais preocupantes ...
Vou para Férias com muito gosto.
ResponderEliminarUm abraço.
Tonito.
É inevitável o cotejo desta “Angústia para o Almoço” com a “Angústia para o Jantar” de Luis Sttau Monteiro.
ResponderEliminarCarregada do mesmo neo-realismo de Sttau Monteiro, mais urbano e citadino, esta “Angústia para o Almoço” acrescenta-lhe a pungente sensibilidade que caracteriza o Quito, dando-lhe os contornos de uma ambiência rural onde persistem problemas, alguns resultantes da emigração que nem sempre foi de completo sucesso, ao contrário do imaginário que sobre ela construimos.
De facto Rui, foi nesta obra de Luís de Sttau Monteiro, que encontrei o titulo ideal para mais esta incursão pelo interior profundo. Apenas mudei a realidade temporal, pois os factos relatados ocorreram a hora distinta.
ResponderEliminarO teu pensamento sobre a emigração, é perfeitamente correcto. Emigração, não é sinónimo de sucesso. Se-lo-à, felizmente, em muitos casos. Mas também existe a parte negra. A face oculta. O caso deste homem, que um dia partiu para a Suiça à procura de melhores dias, será paradigmático. Cá como lá, apenas se cruzou com o desencanto da vida ...
O essencial do teu conto centra-se, obviamente, nas dificuldades da vida que, como lâmina fatal vai ferindo sem misericórdia cada vez mais gente.
ResponderEliminarTu trazes-nos o teu testemunho em relação a um interior cada vez mais esquecido, uma espécie de marca de água da tua escrita...
Mas quero destacar a envolvente, o cenário onde as coisas se desenrolaram, que nos descreves no periodo inicial do teu texto, com um tal realismo descritivo que só a quem manuseia as palavras com destreza está acessível.
Na segunda parte, depois de nos sentirmos perfeitamente enquadrados no cenário,como se pintasses a ouro sobre azul, transmites-nos a enorme sensibilidade que é a tua matriz.
Tal é o realismo que parece que estou a almoçar no Café do David e a comover-me com a história de vida de um dos emigrantes a falar contigo.
Parabéns Quito!
Claro que mais uma vez também te dou os parabéns!
ResponderEliminarDeu bem para perceber a angústia deste teu almoço!
Mas esta é uma realidade que se passa em muitos recantos do nosso país, mais disfarçada nos meios mais urbanos, mas que pessoas como tu, sensiveis aos dramas que se vivem num interior cada vez mais desertificado, sentem, vivem e convivem com esta realidade!
A pimeira parte do texto tem a tua inconfundivel marca, na maneira como descreves, a paisagem com as sua múltiplas cores, de amarelo esmaiado ou verde escuro e as pinceladas multicoloeres com que descreves a taberna do David!
Quanto à vida de emigrante os relatos que sempre ouvi,mas que talvez tenhamos que distinguir os emigrantes do inicio da emigração em massa e os actuais, as condiçoes em que trabalhavam eram muito penosas!
Mas emigrar na maioria dos casos não é bom sinal!
Quito, o teu texto é doloroso no aspeto humano, mas muito rico no aspeto literário!
ResponderEliminarBaseada nele, eu tenho sempre muito respeito pelos estrangeiros que veem para cá, pois nem sempre sinto a consideração devida.
Mais um belíssimo texto do Quito!
ResponderEliminarSempre atento aos problemas dos outros e bom observador em relação ao mundo que o rodeia. Parabéns!
Falou-se de solidariedade, naturalmente.
ResponderEliminarMais um belo texto em que o olhar atento do Quito não deixa escapar a oportunidade de ser solidário.
Aquele abraço.