terça-feira, 30 de agosto de 2011

UM CONTO DA GENTE SIMPLES ...

...... o velho armário do dentista ...

(foto de Daisy Vieira)
Em Juncal do Campo, pequena aldeia da Beira Baixa, existiu um homem que se chamava Duarte. Finou-se, vai para uma década. Era muito conhecido nas aldeias em redor, pelos seus vários dotes. O Duarte – o Duarte ferrador – ferrava burros e cavalos. Mas não era só esse o seu único atributo. Também era barbeiro e dentista. A verdade, é que nestes três ofícios, não tinha mãos a medir. Ferrava as bestas, com o mesmo desvelo com que cortava cabelos, de tesoura e pente na mão. Depois, rapava a nuca aos fregueses com uma navalha, dos pêlos impertinentes que resistiam no cachaço. O pó de talco era a apoteose final, num expediente de onde recebia uns parcos tostões. Injusto, seria omitir que também fazia a barba aos conterrâneos. Molhava o pincel numa pequena taça de alumínio, onde jazia um pó previamente diluído em água. Com a navalha em riste, escanhoava milimetricamente o rosto do freguês, com os óculos pendurados na ponta do nariz, a assobiar a “Senhora do Almortão”. Maior responsabilidade, era a sua apetência para dentista. Com o paciente – nunca esta palavra foi tão certeira – sentado numa velha cadeira de madeira, o Duarte pelejava contra qualquer dente incisivo ou molar que lhe aparecesse pela frente. Nunca perdeu uma refrega. Com o alicate numa mão e água – forte na outra como anestésico, o ferrador do Juncal viu a sua fama espalhar-se léguas em redor. E nem sequer faltava o armário das mezinhas caseiras, para os casos mais complicados. Que conste, nunca dali saiu ninguém com grossa hemorragia, que fizesse o sofredor necessitar de tratamento hospitalar. Um dia, a loja do Duarte, que também era barbearia e consultório de dentista, fechou para sempre. Resta a “Ti” Engrácia, viúva que lhe dedicou uma vida. Agora que o companheiro partiu deste mundo, vai espiando por entre as cortinas rendilhadas da janela, os movimentos da rua estreita.
Q.P.

10 comentários:

  1. Só de mirar o armário e os produtos anestésicos, cicratizantes e desinfectantes e instrumentos, seria razão suficiente para passar a dor do mais corajoso paciente que, por certo preferiria, no último instante,adiar a refrega com o Duarte.
    Mas ainda bem que ele existiu! Só assim nos é possivel deliciarmo-nos com este conto escrito com a habitual matriz do Quito, a quem dou os meus parabéns.
    E a quem agradeço por nos trazer á memória esta típica figura a quem poderiamos chamar o homem dos sete ofícios.
    Não esqueço a Ti Engrácia, no ocaso da vida, a espreitar por trás das cortinas, os movimentos da aldeia...

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  2. É sempre uma delícia ler o Quito. O "consultório" do Duarte ferrador impressionou-me bastante. Também Juncal do Campo, a terra da São, na sua quietude e beleza, mereceram o interesse da minha objectiva em muitos outros pontos. Foi bom visitar os Amigos que nos receberam principescamente.

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  3. É uma pena aquele lugar estar ao abandono! Gostei de lá ter estado e ouvir aquelas histórias contadas pelo Quito e pela São. O texto do Quito é excelente!

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  4. Abençoado ferrador do Juncal que tanto dentinho deve ter arrancado e sem alguém "esfalecer"...muitos houve por esse Portugal fora! Mas o ti Duarte e a ti Engrácia,gente boa da Beira,mereceu um cantinho especial no coração do nosso Quito..."Anestesiaste-nos" com esta escrita bonita e embelezada com a foto da Daizy.Obrigada!

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  5. Uma boa dupla! Daisy e Quito!
    Imagem e texto, respetivamente.

    Só pensar que tenho de marcar consulta no dentista me assusta.
    Agora, num ferrador?!!!
    Impressionante!

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  6. O que foi, e o que É.
    Tempos de memórias passadas.
    Obrigado pela lembrança de outros tempos.
    Tonito.

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  7. Uma imagem, vale mais que mil palavras.
    Este texto, sem a foto da Daisy, não nos traria o "cheiro" da realidade que foi o "consultório" do Duarte.
    Eu e a São, é que agradecemos a visita que os Amigos Daisy e Alfredo nos fizeram, vindo à Beira Baixa ao nosso encontro. Muito nos sensibilizou.
    Se o Felício, esta noite, tiver pesadelos, com o "dentista" às gargalhadas de drácula, a correr atrás dele de alicate na mão, a culpa não é só minha. A Daisy e a bela foto, também têm muitas culpas no cartório ...

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  8. Excelente história dessa figura incontornável em muitas aldeias deste nosso Portugal, em que o barbeiro era, muita das vezes, o dentista radical em que o tratamento se resumia como situação de último recurso a arrancar dentes.
    Desta vez pela pena do Quito foi-nos apresentado o Duarte, homem dos mil ofícios, ferreiro, barbeiro e dentista, o único serviço de saúde do Juncal, que com a sua partida deixou Juncal mais pobre.

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  9. Que não se pense que o "barbeiro/dentista" é uma figura exclusiva de aldeia. Quando eu era puto, em plena cidade do Porto, havia um barbeiro que era também conhecido por "tira-dentes". Só as pessoas de poucos recursos económicos se socorriam dos seus serviços e eu sempre tive a impressão que "aquilo" era ilegal. Mas tinha fregueses...

    Quanto a este Duarte que nunca perdeu uma refrega contra molar ou incisivo, nunca mandou um paciente para o hospital, nunca causou uma grossa hemorragia, era um estomatologista de primeira categoria.

    Mais um conto do Quito que nos traz o prazer da leitura da sua escrita fluída e envolvente

    Toma lá um abraço.

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  10. Esta agora do Satanás é que me deixa com dor de dentes!Será que a máquina do Tonito precisa de água forte para bochechar as teclas?
    Na minha santa terrinha também havia o ferrador Amador...mas só servia para pôr meias solas nos bois, vacas, burros e afins!
    Bom texto valorizado com a foto da Daisy!
    Parcerias que funcionam bem!

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