sábado, 20 de agosto de 2011

NUMA NOITE DE VERÃO

Debaixo de uma árvore centenária, numa noite amena, com um fute de delicioso espumante rosé à minha frente que, a espaços, bebericava, escutava com atenção o meu amigo a descrever-me o percurso artístico de um dos seus filhos. Indiferente ao ruído de fundo daquela festa de casamento para que tínhamos sido convidados, absorvia as suas palavras e ia construindo mentalmente o retrato do seu filho que não conheço pessoalmente. A devoção quase imperativa à música, a exigência que coloca como objectivo quase inatingível, a busca utópica da perfeição, os momentos de desânimo por falhas imperceptíveis aos olhos dos leigos mas que o artista considera imperdoáveis, obrigando-o a uma repetição incessante até à sua correcção.
Conheço bem esta forma de ser de quem se dedica à arte de alma e coração, por vocação, pelo exclusivo prazer de a exercer.
Ouvia o meu amigo e inconscientemente projectava a caracterização que fazia, para os mesmos exactos comportamentos que eu conhecia da minha filha. Jamais esquecerei um espectáculo em Sevilha em que o público a chamou à boca de cena, sozinha, por mais de três vezes para a aplaudir, aparecendo-me no final, lavada em lágrimas porque, segundo ela, tinha cometido dois erros crassos que, embora não detectados pelo público, ela considerava inaceitáveis numa profissional de ballet.
Nessa noite, sonhei com um palco etéreo, dividido ao meio. De um lado o pianista filho do meu amigo a interpretar obras de Bach e de Brahms. Do outro, a minha filha a voltear no palco a coreografia da Sagração da Primavera.
Passei a viagem de regresso a Lisboa a conjecturar sobre a valia do nosso bairro, do qual continuam a sair, através da descendência da nossa geração, motivos de orgulho para todos nós. Estes são simples exemplos de tantos outros que conhecemos e que, por recato e modéstia, não têm sido divulgados…

Rui Felicio

5 comentários:

  1. Concordo plenamente com a mais valia dos artistas deste Bairro.
    Só não concordo é com o espumante, eu sou mais vinho TINTO.
    Tonito.

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  2. Foi um excelente fim de tarde. Para além dos magníficos vinhos servidos, também o leitão era de grande qualidade. Foram muitas horas passadas à mesa. E as palavras são como as cerejas. Rimos com algumas peripécias passadas no antigo bar do Centro que são desconhecidas da maioria, conversámos sobre as nossas preocupações e até algumas angústias. E falámos dos filhos. Em comum, termos filhos ligados às artes. E ambos percebemos, porque já tivemos ocasião de observar, que quem vive a arte com paixão, vive num mundo de utopia, sempre à procura da perfeição impossível. É uma insatisfação permanente, bem retratada pela filha do meu amigo Rui Felício, que, em Sevilha, três vezes veio à boca de cena e que no fim se recusava a sair do camarim com os companheiros, porque no seu entender, não atingiu o que idealizava, pese toda uma plateia a reconhecer a sua grande capacidade e sensibilidade artística.Sei, por experiência própria, que não é muito fácil conviver com quem parece viver num planeta distante, embora isso só seja perceptível, a quem convive com bailarinos ou músicos dentro de portas. Existem, por esse mundo fora, milhares de virtuosos, em muitas artes. Pessoas que vivem mais para a arte do que da arte. Por vezes, o aspecto remuneratório é-lhes completamente secundário. Para finalizar, apenas dizer que numa noite de leitão na Mealhada, um pianista, docente de música e a viver na Alemanha, disse-me que só na cidade de Colónia, existiam mais de 2OO virtuosos do piano, todos do Oriente. Gente que vive a música pela música .Tocar é o seu único projecto de vida.
    Lamentavelmente Rui, o pai da noiva não tem mais filhas para casar. Esgotou-se a colheita. Agora temos que ir comer leitão para outro lado.
    Abraço

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  3. Obrigado Quito. A milhares de KMs de distância, saboreias as cálidas temperaturas da nossa terra e eu, com os termómetros a menos de metade,sinto o calor da tua sensibilidade na expectativa de um reencontro em breve, seja com o pretexto de uma festa de casamento, de um jantar de leitão ou simplesmente de uma bica em lugar sossegado...

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  4. É muito legitimo o orgulho de um pai e é muito natural que queira partilhar esse seu orgulho com aqueles que mais lhe são chegados.
    O Rui Felício, pai legitimamente orgulhoso, aqui nos traz um naco da sua prosa, partilhando connosco a conversa havida com outro pai, também ele dono da mesma legitimidade.
    E, meus queridos amigos, a ambos deixo o meu abraço de parabéns.
    É também muito interessante o diálogo aqui estabelecido, através dos vossos comentários.
    Do Quito retenho, porque sei do que fala no concreto, a dificuldade de se viver da arte. Diz ele, e bem, que há pessoas que vivem para a arte e não da arte. E não viverão mais felizes?, pergunto eu.
    Será que é impossível conjugar a utopia com a vida?

    Aqui está um bom tema para, num qualquer próximo dia, ser debatido frente a uma bica em lugar sossegado...

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  5. Absorvi as tuas palavras...a tua escrita encanta!
    Então quando se trata da filha mui bela e mui distinta bailarina...parabéns ao pai e filha.

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