A verdura da juventude circulava-me nas veias.
Ainda não tinha decidido o rumo a dar à vida. Frequentava o quinto ano do liceu. Ao passar pelo Palácio da Justiça, vi junto ao portão um esvoaçar de capas negras. A curiosidade levou-me a entrar e a espreitar a catedral da justiça. Nunca ali tinha entrado. Vagueei pelos painéis de azulejos dos claustros. Fiquei encantado. Aliás, este palácio, antigo Colégio de São Tomás e posteriormente residência dos Condes do Ameal, tem uma dignidade própria, talvez vinda da sua traça neo-renascentista, revivalista, associada à ideia de ser a casa da justiça.
O ar que ali se respirava era de respeito. Seriam umas dezanove horas. Os pesados e artísticos candeeiros de ferro fundido estavam acesos. Havia uns estudantes à porta de uma das salas que estava iluminada. Resolvi espreitar…
A sala de audiências estava cheia. A esmagadora maioria era de estudantes de capa e batina. Reparei melhor…O réu também era estudante. Sentado no banco próprio, envergava capa e batina e sobraçava a pasta com fitas largas de azul escuro. Defronte da bancada dos advogados, havia uma outra destinada aos estudantes quartanistas de direito que quisessem assistir às audiências. Estava totalmente ocupada. Exibiam as suas fitas rubras.
Entrei sorrateiramente. Misturei-me com os demais assistentes com receio de alguém me proibir de estar ali.
Ao lado da bancada dos três juízes, estava uma outra que vim a saber ser a destinada ao representante do Ministério Público. Era ele que falava naquele momento. Alto, magro, pálido, de óculos quase redondos, rígido na sua beca negra, com palavras duras, mesmo agressivas, infundia receio. Acusava, acusava, acusava…Levantava os braços, deixando pender as largas mangas e apontava o dedo na direcção do réu: “um verdadeiro energúmeno, um casanova sem regras nem princípios”. Que a sua responsabilidade era maior por se tratar de pessoa com estudos superiores. Que tinha abusado da inocência e da ignorância. Espírito tortuoso que, do alto da importância que a si próprio atribuía, desprezava as consequências danosas dos actos que praticava para satisfação de instintos animalescos. Que tinha sido plenamente provada a perversidade do estudante. A arte que usara para seduzir aquela frágil rapariguinha, fora subtil e psicologicamente sofisticada…
Olhei melhor…descobri a rapariguinha. Uma mocetona de quinze anos a parecer ter dezoito ou mais. Linda. Cabelos loiros a caírem-lhe colo abaixo numa carícia feita de caracóis. Uma face muito fina, de traços perfeitíssimos.
Uma boca que só podia ter sido projectada no Além.
Uns olhos de inocência que convidavam ao sonho.
O representante do Estado continuava a sua alegação destruidora, implacável, mortífera. Dispôs-se a ler trechos daquelas cartas que choravam uma paixão docemente louca.
Eram cartas bem escritas. Tinham um sabor camiliano. Sublinhavam com uma leitura soletrada, gestos largos e silêncios significativos, alguns pormenores para si reveladores das linhas que o réu tinha tecido a sedução.
A análise crítica das cartas pelo Ministério Público era demolidora, por muito persuasiva. É interessante que, apesar disso, em confronto com o texto que se ia ouvindo, algo nos fazia pender para o lado daquela sensibilidade, da suavidade das expressões, da ternura que escorria daquela escrita.. A conclusão que ia tomando forma dentro de nós era a de que quem escrevia daquela forma não podia ser o façanhudo criminoso que o M.P. queria construir.
Olhei para a bancada dos advogados. Era ali que podia haver respaldo para a esperança. Lá estava o advogado constituído pelo réu. Baixo de estatura. Cara apreensiva. Nervoso. Fazia constantes anotações. Comecei a temer o resultado. Pedi a um estudante de direito que estava a meu lado que me explicasse a situação.
O Manuel, o réu, habitava nas águas-furtadas de uma pensão. Um quartito muito pequeno com janela sobre o telhado. A moça era filha da dona da pensão. O Manuel talvez tivesse deixado que um olhar mais atrevido e guloso fosse atrás da rapariga. Talvez. O certo é que esta correspondia abertamente. A qualquer dichote do rapaz, respondia ela com requebros de voz e de corpo. Insinuava-se no andar à frente dele. A mãe não perdia pitada para exaltar as virtudes da filha. Todas as vezes que falava com o dr., falava logo na filha. Era clara a intenção de meter a filha pelos olhos adentro do dr.. O Manuel fez-lhe um poema. Quando teve oportunidade de lhe apertar a mão, procurou fixar o olhar de forma a transmitir uma mensagem de cumplicidade, ao mesmo tempo que lhe deixava ficar um papel que ela discretamente guardou. Recebeu depois uma cartinha perfumada a agradecer os versos. Escreveu-lhe então uma carta. Depois outra e outra…Organizou uma serenata debaixo da janela. Ela abriu a luz e fechou-a de seguida, em sinal que estava a ouvir. As canções, as guitarras e violas na noite de Coimbra penetram fundo dentro de nós… Mergulham-nos numa luarenta nostalgia e criam clima especial, difícil de transmitir. A quem tenha vivido tais momentos, não necessitamos de dizer mais. Ela voltou a acender e a apagar a luz em sinal de agradecimento. Um dia, inesperadamente, a moça lembrou-se de ir pelo telhado bater no janelo do quarto do Manuel. Só queria falar um pouco. O Manuel ainda resistiu. Mandou-a embora. Que não a deixava entrar. Mas ela dizia que era só um momento. Que estava triste e queria desabafar.
Entrou…
No dia seguinte, logo pela manhã, mãe e filha avançaram pelo Palácio da Justiça dentro e dirigiram-se à Polícia Judiciária. Fizeram queixa do energúmeno sedutor.
Falava agora o advogado de defesa.
Começou por recordar o perfil do réu acabado de ser desenhado pelas testemunhas. Um traço completamente diferente daquele do M.P. havia apresentado. Tratava-se de um rapaz estudioso, cumpridor, educado e sensível. Se era assim, perguntava:” como é que foi possível acontecer o que tinha acontecido?” O advogado continuou, aludindo aos claros propósitos da mãe da moça e, se calhar, desta também. Depois, a doença de alma que afecta os estudantes que são contagiados por esta Coimbra, sempre romântica, a estilhaçar o coração dos jovens enamorados. Que o M.P. não compreendia tal por não ter frequentado esta Universidade e vivido nesta cidade.
O estudante, aquele réu, havia dado largas à sua imaginação. Voara com ela em volta da moça e deixara cair, aqui e ali, retalhos da sua alma sensível toda envolta em névoas de fantasia. Talvez não escrevesse aquelas cartas para aquela rapariga em concreto, mas para o arquétipo de uma mulher-musa que desenhara no espírito. Deixara que o aparo fosse beber tinta nos recantos mais fundos do seu no imaginário sensível e poético do estudante de Coimbra. Aquelas cartas, na verdade, não se dirigiam àquela moça, mas ao luar que beijava o telhado, ao rumor manso das águas sonolentas do Mondego ou ao cristalino chorar das fontes do Botânico. Todos os estudantes desta Coimbra perturbadoura sabiam isso. Estavam ali dezenas e dezenas que compreendiam perfeitamente o que se tinha passado nas profundezas do espírito daquele rapaz. Um estado de alma muito próximo da beatitude. Se culpa houvesse, havia que imputá-la ao diáfano nevoeiro de romântica melancolia que encharca o coração dos estudantes desta cidade. Se fosse possível, teríamos aqui João de Deus, António Nobre e mesmo o próprio Camões. Eles que falassem…Que dissessem o que lhes aconteceu…Como foram, também eles, infectados por este mal de alma que anda agarrado a tudo em Coimbra, como uma patine que cobre quem transponha a porta férrea.
Cada palavra ressoava dentro de nós. Na sala havia um silêncio total. Apenas se ouviam cair, pesadas de sinceridade e verdade, as palavras do advogado.
A rede tinha sido construída para apanhar nas suas malhas o dr.. E o dr., sem se aperceber, dera as voltas mais convenientes para se enredar nela.
Mas dizia o causídico que, apesar de tudo, a nobreza do rapaz tinha-o impelido a ir aos autos declarar que estava disposto a emendar o seu erro. Que casaria, se fosse esse o desejo dela. Perante tal gesto de imensa dignidade, como era possível ver no rapaz que ali estava um energúmeno? Um criminoso? Nada de mais falso e injusto!
- Então o Manuel vai casar-se com a moça? Perguntei ao vizinho do lado.
- Não! O advogado dele é que o aconselhou fazer aquela declaração depois de saber que ela já andava a namoriscar outro.
-Então para quê?
-Se ela respondesse que sim ele teria dito que já não o faria por ela andar a namorar com outro. Se respondesse que não, o estudante tinha, de forma expressa, dado um passo de tal forma nobre que os juízes não podiam ficar indiferentes.
- Bem pensado!
As palavras do advogado foram fortes e sensibilizaram toda a audiência.
Dias depois foi lida a sentença. Uma pena suspensa… O juiz presidente, virando-se para a assistência, praticamente composta por estudantes, comentou:
-Viram o que se passou? Tenham cuidado! No meu tempo havia que proteger as meninas. Mais fracas…Menos adaptadas à vida…Agora há que proteger os rapazes!
Muito cuidado! Cuidado rapazes!
Deste julgamento ficou a impressão forte da figura do advogado. Da defesa que através da palavra certa, apropriada, judiciosa.
Quando saí do Palácio da Justiça disse de mim, para comigo: é isto que quero ser! Advogado! Pelo menos, vou tentar!
O tempo correu…
Tinha feito a primeira parte do estágio. Entrava no Palácio da Justiça.
-É advogado estagiário? Perguntou o então oficial de diligências.
-Sou!
-O sr. dr Juiz pede para ali chegar.
Entrei na sala de audiências. A mesma onde assistira ao caso do estudante. Estava prestes a iniciar-se um julgamento.
.O sr. Dr. é advogado estagiário?
-Sou sim, sr dr. juiz!
-Queira fazer o favor de assumir a defesa deste réu.
Se me tivessem dado um murro no estômago, não causaria pior efeito que aquela nomeação inesperada. Era a primeira vez que intervinha numa audiência. Tão perturbado fiquei que tive receio de tropeçar nos meus próprios receios quando me dirigi à bancada dos advogados para tomar o meu lugar. Ali, coincidência das coincidências, estava em representação do queixoso o mesmo advogado que fizera com que me decidisse a ser advogado. Quando lhe contei, mais tarde, toda esta história, abraçou-me feliz.
Guardo dele um carinho e uma amizade eternas.
Nota: Dr João Mendes Ferreira, advogado, já falecido e que na nossa juventude morou na Rua Vasco da Gama.
Este o primeiro "conto ou crónica" dos 17 que fazem parte de "A CULPA E A HONRA", conforme a urdidura da "estória"(é dificil, por vezes, demarcar a ficção da realidade), trata-se de narrativas curtas, de belo recorte, vivificadas por este humanismo solidário, ou por essa solidariedade humanista, que é o timbre identificador do verdadeiro advogado.(António Arnaut)
Este o primeiro "conto ou crónica" dos 17 que fazem parte de "A CULPA E A HONRA", conforme a urdidura da "estória"(é dificil, por vezes, demarcar a ficção da realidade), trata-se de narrativas curtas, de belo recorte, vivificadas por este humanismo solidário, ou por essa solidariedade humanista, que é o timbre identificador do verdadeiro advogado.(António Arnaut)
GOSTEI.
ResponderEliminarTonito.
Rafael, obrigado por teres trazido aqui esta bela história escrita por este saudoso amigo.
ResponderEliminarO João era uma daquelas pessoas com quem dava gosto falar. Tinha sempre uma história e um riso franco.
Lembro-me dum episódio em que ele também interveio. Um dia resolvemos montar uma peça de teatro. O ensaiador era um tio do Fernando Virgolino, de que me não lembro do nome, a peça "O troca tintas", e o local de ensaios a garagem do João Ferreira. Esta peça nunca chegou a ser apresentada ao público mas ficou a intenção e os muitos serões de franca camaradagem.
Mais uma vez, o Rafael traz-nos a memória do João Ferreira. Sobre ele e sua família, já aqui me referi num comentário a uma postagem anterior.
ResponderEliminarUm amigo, como alguns outros, que nos deixou cedo demais ...
A minha memória infelizmente não retém o autor, mas tudo leva a crer que o tenha conhecido, já que morou no Bairro.
ResponderEliminarO conto, escrito com a leveza própria dos verdadeiros escritores, seduz e atrai pela caracterização do romantismo da cidade de Coimbra e fez-me recordar a única vez que estive, como estudante, no Palácio da Justiça de Coimbra a assistir na bancada dos advogados a um julgamento relacionado com uma questão de águas gerador de um litígio entre dois proprietários vizinhos da aldeia de S. João do Campo.
Era uma prerrogativa dos quartanistas de Direito poderem assistir a audiências no Palácio da Justiça, facto que, suponho, só acontecia em Coimbra.
Sublinho a Nota inserta em rodapé, de António Arnaut e que traduz fielmente aquilo que define a profissão de advogado e que cito:
"...ou por essa solidariedade humanista, que é o timbre identificador do verdadeiro advogado."
Infelizmente o frio materialismo dos nossos dias tem devorado esse humanismo e essa solidariedade, descaracterizando o timbre a que António Arnaut se refere...
O João Mendes Ferreira era um conversador incansável, que quando falava ou escrevia cativava pela sua capacidade de análise e expressão. Este artigo tirado do livro A Culpa e a Honra é bem uma uma prova da sua vivência. De facto se não tivesse sido advogado, só poderia vir a ser advogado.
ResponderEliminarEste é o primeiro conto ou "estória", que embora um pouco longo, é o que represnta talvez melhor a vivência do João Mendes Ferreira como estudante de Coimbra.
ResponderEliminarOutros mais pequenos de igual modo interessantes, terei o prazer de publicar.
Foi advogado/escritor e foi nosso companheiro no nosso Bairro!