quinta-feira, 25 de agosto de 2011

METEORO

Corria o Natal de 1961, annus horribilis do Estado Novo, marcado pela perda de Goa uns dias antes, pela conspiração do quartel de Beja e pelos ataques dos angolanos em Luanda.
Os cientistas não tinham dúvidas!
A tenebrosa notícia era difundida ininterruptamente, entremeada com música clássica, pela televisão e pela rádio, fundamentada com cálculos matemáticos indiscutíveis. Salazar, com ar pungente, falou ao País, recomendando ao grande povo português que soubesse comportar-se com dignidade na hora da tragédia, porque a Pátria saberia renascer das cinzas, mesmo que ficasse orgulhosamente só no mundo, porque este era o castigo divino para aqueles que nos atacavam.
Um meteoro de enormes dimensões iria romper a atmosfera terrestre naquela noite. A energia do choque seria mais de um milhão de vezes superior à que libertara a bomba de Hiroshima! Sabia-se com exactidão o ponto onde ocorreria o impacto, perto do apeadeiro de São José, em Coimbra e era certa a destruição total do planeta Terra. Não havia forma de lhe escapar. Seria indiferente mudar de uma cidade para outra, de um país para outro. Era o apocalipse, o fim do mundo, tal como Nostradamus previra.
Interpretei o calor abafado que estranhamente me inundava o corpo naquela noite fria de Dezembro, como efeito da lenta aproximação incandescente do meteoro, depois da sua entrada elíptica nas altas camadas da atmosfera. A multidão em pânico olhava a bola luminosa que, a cada minuto, ia aumentando de diâmetro no breu da noite.

Ao meu lado, na rua, aquela bonita rapariga que eu só conhecia de uns fugazes encontros nos bailes do Clube Recreativo do Calhabé, tremia de medo sem saber o que fazer, tal como todos nós. Não havia mais do que um superficial conhecimento entre mim e a Ângela, por termos dançado duas ou três vezes, mas a aflição daquele momento aproximava-nos, impelia-nos um para o outro.
Olhámo-nos. Sem necessidade de quaisquer palavras, decidimos aproveitar os últimos momentos de vida. Beijámo-nos longamente, indiferentes aos gritos aterrorizados da multidão. À espera do fim próximo que o calor cada vez mais intenso prenunciava, queimando-nos os corpos, o beijo catalisava as profundezas de todos os sentidos...

Subitamente, acordei sobressaltado, exausto, com o coração a bater desenfreado. Espreitei pelas persianas do meu quarto, e em vez do imaginado cenário de destruição, vi o verde das árvores dos quintais do bairro e a calmaria de um bonito sol de inverno, rebrilhando no orvalho das plantas e das flores . Afinal tudo não passara de um sonho!
Vesti-me à pressa, corri à Fonte da Cheira e bati à porta da Ângela que a abriu sorridente, pegando-me delicadamente na mão. Por algum efeito telepático, também ela, como eu, tinha sonhado com o hipotético meteoro. Também ela tinha sentido o mesmo calor abrasador que eu senti...

Rui Felicio

10 comentários:

  1. A desconcertante imaginação de Rui Felício, sempre mesclada com factos reais, começa por nos remeter para o inicio do desmoronar do Império...
    Goa, Damão e Diu foi o primeiro sinal. Recordo-me bem de Salazar criticar a pouca resistência oferecida pelos militares lusos. E, sabem porque me recordo? Porque meu pai, ouvindo na rádio as noticias, comentou para mim: - O gajo está doido! Se a União Indiana mijasse, afogava os desgraçados dos nossos tropas...
    O "gajo" era Salazar, obviamente...

    Mas logo a pena irrequieta de Felício nos atira para uma outra dimensão, deixando como mero apontamento o facto histórico que quis relembrar.

    E aí temos um meteoro, prontinho a cair em S.José, com todas as trágicas consequências previstas por Nostradamus.
    Daqui, até a um enlace de amor, foi um saltinho de pardal, onde nem a telepatia é poupada para justificar os calores da juventude...

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  2. Mais um texto magnífico do Rui. De um facto real - a tragédia apocalíptica - o autor parte para uma história bem elaborada, a que não é alheio o seu universo de juventude e nosso feudo - o bairro e arredores. A velha capela de S.José e a Fonte da Cheira, lá estão como pano de fundo. E amor, sempre glorificado, neste prosar delicioso, escrito pela pena do Rui Felício ...

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  3. Nem comento o texto do Rui...Só vos digo que, num dia mau, chegar aqui e ler o que acabei de ler, é uma lufada de ar fresco e alegria!
    Obrigada, Rui!!!

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  4. Vamos aos factos verídicos desta ficção:

    1.- A queda dos territórios indianos ocorreu em 19/12/1961;
    2. - O assalto ao Quartel de Beja ocorreu uns dias depois do Natal de 1961 ( em 01/01/1962 )
    3.- O desencadear da guerra em Angola ocorreu em Março de 1961.
    4.- A Ângela morava de facto ao lado do Marbran
    5.- Nostradamus previu ( erradamente ) o fim do Mundo através do choque de um planeta contra o nosso.
    6.- Sonhei de facto com a catástrofe apocalíptica depois de ter lido, mais ou menos naquele ano, as "previsões" de Nostradamus

    O que não garanto, porque já não me lembro, é que tenha sentido os tais calores naquele inverno de 1961. Mas, com a idade que tinha, é bem provável que sim...

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  5. Claro que me delicio sempre com estes textos!
    Presentemente a leitura, contra o que é hábito comigo, tem sido uma das coisas boas que me têm acontecido com o blog...ou por causa dele!
    São so contos da Daisy, os livros do João Ferreira Mendes e ainda os livros do Fernando Rovira.
    Ontem tive cá em casa o Mário Rovira que me fez a entrega dos livros "A Francesa", que serão em devida altura entrgues a quem foram dstinados.
    Trouxe um outro livro, oferta do Fernando Rovira "A República do Carmo" -Romance Histórico de Coimbra e Editado em 2007
    Vou ver se consigo publicar alguns passos deste excelente livro!

    Quanto ao texto propriamente dito acrescentar apenas como curiosidade, que assisti a uma manifestação de desagrado em relação à invasão da India, na Praça 8 de Maio em frente da Câmara.
    Muita gente, um carro com altifalante e a certa altura, no meio de incitamentos à repulsa pela invasão, o locutor, talvez improvisado, mas muito nosso conhecido aqui do Bairro, clama:
    " Vamos agora prestar um minuto de silênco pelo presidente da India"-houve um momento de silêncio e estupefação pelo insólito da situação...mas logo de seguida o autor do pedido acrescenta: "afinal o presidente(teria dito o nome(Gandi?), NÃO MERECE SEQUER UM MINUTO DE ATENÇÃO"!!!

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  6. Lembro-me ( uns anos antes ) de ter sido "aconselhado" pelo Reitor, junto com as turmas quase todas do liceu a participar numa manifestação também na Praça 8 de Maio de desagravo pela célebre atitude de Kruschev na Assembleia Geral da ONU em que este se descalçou e brandiu vigorosamente o sapato batendo com ele na mesa repetidamente, quando se debatia o colonialismo português.

    E nunca me esqueci de um homem que ali estava a ouvir um discurso feito da janela da Câmara, ser abordado por um agente da Pide que o questionou:
    - Você não bate palmas?
    O homem tirou as mãos dos bolsos e começou a aplaudir, dizendo com ar temeroso:
    - Bato, claro que bato!

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  7. "Bato, claro que bato" palmas ao Rui Felício por ao contar-nos uma história produto da sua imaginação, encaixou, como não lhe desse grande importância, factos relevantes dum triste passado recente da nossa História, a propósito da qual também se refere as "grandes e patrióticas manifestações espontâneas" a que não podiam faltar os esbilros do regime, que atentos iam anotando quem batia palmas...

    A Ângela coitada, até poderia ser a Sandra, logo veio dizer, por coincidência, que também tinha tido calores abrasadores nessa mesa noite, como fosse caso único e não produto duma juventude com as hormonas aos saltos…

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  8. Meu Amigo Abilio,

    Concordo que o uso do nome de Ângela ou de Sandra em nada alteraria a ficção.
    Sucede que a Ângela existia mesmo e morava de facto perto do CR do Calhabé.

    O importante é que o conto ocorreu a partir das minhas recordações sobre acontecimentos reais que marcaram aquele ano de 1961 e que marcaram o inicio do declínio do regime.
    Foi nesse mesmo ano que ocorreram também as greves às aulas e contestações estudantis que uniram pela primeira vez e simultâneamente os estudantes das 3 principais cidades universitárias de Lisboa, Porto e Coimbra, e o assalto ao paquete Santa Maria.

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  9. Os contos do Rui nunca são inventados! Têm sempre um fundo de verdade e são sempre baseados em episódios e acontecimentos reais! E é isso que os faz tão deliciosos e interessantes, além de muito bem escritos, claro!
    Também eu, naquele ano, sonhei com o fim do mundo, mas com os meus 14 anos fui para a Igreja de S.José rezar com a catequista Mª José, a quem me agarrei cheio de medo aproveitando a ausência do Padre Aníbal Pacheco!

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  10. Bela catequese a tua, Alfredo...
    Rui Felício, o teu texto fica obviamente na forja para ser publicado também n'a funda São.

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