Chamava-se Albino, mas pouca gente sabia o seu nome. Era tratado e conhecido por todos como o Binão. Na década de sessenta, devia andar na casa dos 50 anos de idade.
Morava na Rua do Teodoro, numa minúscula casa térrea decrépita e era visto amiúde na zona das paragens dos trolleys do Calhabé a caminhar, bamboleante, umas vezes em direcção à Rua dos Combatentes ou outras a caminho de uma taberna que havia antes de se chegar ao Café Aquário. Gostava de jogar ao burro, no quintal da tasca, debaixo de uma parreira. Talvez por estar muito treinado ou talvez porque era baixa e, por isso, mais adequada à sua estatura, a bancada de madeira carcomida onde era preciso acertar com as malhas de chumbo nos quadrados do tabuleiro, facilitava-lhe o arremesso dos discos, e ganhava com frequência as partidas, emborcando de graça os copos de tinto que constituíam as apostas do jogo.
De cabeça quadrada e disforme, desproporcionada do corpo, pernas curtas, grossas e arqueadas, a sustentarem um tronco largo e musculado, de onde emergiam dois braços fortes que lhe chegavam aos joelhos, era senhor de uma força hercúlea que assustava quem se atrevia a ridicularizar a sua grotesca figura.
Nunca o vi rir, certamente pelo natural complexo da sua estatura anã de pouco mais do que 1,40 m. Quando enclavinhava, como uma tenaz, a sua mão no braço de alguém mais desprevenido, que tivesse tido a desdita de lhe dirigir alguma piada de mau gosto, rangiam-se-lhe os dentes e os ossos da vítima estalavam como cartilagens.
Curiosamente, neste jogo, disputado aos pares, o seu parceiro habitual era o enorme Calmeirão, conhecido mandador das fogueiras dos Santos Populares.
O Binão vivia pobre, sobrevivendo da paga de esporádicos recados que fazia.
Mas já tinha sido muito rico!
Na década de quarenta, ainda jovem, tinha-lhe saído a sorte grande na lotaria. Seiscentos contos, segundo se dizia! Uma fortuna!
Foi então que finalmente convencera a Alzira, por quem andava apaixonado há anos, a namorar e a casar com ele. Passando ele a ser dono daquela enorme fortuna, a Alzira, que até aí sempre lhe recusara os intentos, espantando-o de forma grosseira e sugerindo-lhe que “se medisse”, acabou por ceder às suas insistências.
Casaram na antiga igreja de S. José, perante os sorrisos dos convidados e a chacota de quem assistiu à cerimónia. Ela, elegante e bonita suplantava-o do alto do seu 1,70m e ele, de olhos em alvo e pescoço esticado, parecia fitar o céu quando a olhava.
Constava que o casamento não durara mais do que dois ou três meses, porque a Alzira, de quem se desconhecia o paradeiro, pela calada de uma noite, enquanto ele dormia, fugiu com uma mala cheia com todo o dinheiro que o Binão ganhara na lotaria e que escondia religiosamente debaixo do colchão.
Rui Felício
Um belo texto, lido num belo fim de tarde algarvio. Um conto leve, impregnado de pormenores deliciosos,como é o caso dos atributos físicos do anão Albino ou da sua curvilínea noiva, que vivia dois andares acima, em termos de estatura. Mas fica o dilema: onde acaba a realidade e começa a ficção produzida pelo cérebro irrequieto do Rui Felício ? Será a fortuna que saiu ao noivo ?
ResponderEliminarNão me atrevo a descodificar o mistério.
Boa prosa, Rui, parabéns.
Abraço
Rui
ResponderEliminarNão resisto a voltar aqui para te dizer o seguinte:na feira do livro de Lagos, comprei dois livros do Moita Flores. Dois livros dos subterrâneos de Lisboa: " Em memória da Albertina que Deus Haja" e "O carteirista que fugiu a tempo". A linguagem é pura e dura. Por vezes, tenho-me farto de rir, sobretudo com o segundo livro. As páginas 3O e 31, não são próprias para senhoras que vão tomar chá ao fim da tarde na pastelaria "Suiça", lá para os lados do Rossio. Merecem mesmo excomunhão papal.
Mas isto apenas para te dizer,que se o Moita Flores sintetizasse este teu conto, fá-lo-ia certamente da seguinte forma: " A história de um burro-anão e da cabra da chavala que se embrulhou com ele, deu de frosques e lhe esmifrou com o guito"...
O dar de fosques sempre foi o tormento dos asares da vida de cada um.
ResponderEliminarUmas vezes corre bem outras dá para a desgraça.
Tonito.
E já está na forja para sair também no próximo domingo n'a funda São.
ResponderEliminarCalmeirão e Binão,figuras da nossa infância e juventude,frequentadoras do Calhabé,inspiraram a tua imaginação e criatividade para uma prosa ficcionada de grande classe...Bravo!
ResponderEliminarBem engendrada esta estória, com nomes e locais bem nossos conhecidos!
ResponderEliminarA taberna já lá não está e seria a do Emiliano.
O Aquário também já não existe, mas nesse tempo era um café de referência da zona do Calhabé!
Havia mesmo ao lado também uma estação de Correios, cuja Chefe era uma tia do Sérginho e onde também trabalhei.
Um texto à Rui Felício - uma delícia!
O Binão era baixo de estatura mas também parco nas ideias.
ResponderEliminarQuis comprar a Alzira por seiscentos contos, sem perceber que com essa fortuna a poderia alugar sempre que bem lhe apetecesse.
Depois da asneira feita, nada mais lhe restou que não fosse o jogo do burro para ir apanhando umas cabras...
Mais um conto à Felício que nos deixa, como sempre, sem se saber onde acaba a memória para dar lugar à fantasia.
Mas, cá para mim, a "tasca" era a do Emiliano.
Grande abraço.
Juro que escrevi o meu comentário antes de ver o de Dom Rafael.
ResponderEliminarJURO!
Depois duma descrição tão contundente deste desajeitado e grosseiro Binão só me surge dizer: “Ah grande Alzira!”.
ResponderEliminarParabéns Rui, por mais esta excelente e divertida história.
Matei a cabeça para me lembrar do nome da tasca. Foi por não me recordar que não lhe escevi o nome.Afinal a vossa memória está mais fresca do que a minha. Agora sim, recordo-me perfeitamente. Era mesmo o Emiliano.
ResponderEliminarMas não posso deixar de manifestar a minha tristeza pela incredulidade de alguns. Sois como São Tomé e só por isso arriscam a que de Vós não seja o reino dos céus.
A tasca existiu, o Calmeirão também, o Binão idem, o jogo do burro estava lá, a Alzira não estou certo e a sorte grande dos seiscentos contos não tenho provas mas era o que corria...
Sempre que o Rui Felício nos relata estes factos passados, já nem ouso duvidar!
ResponderEliminarO Calmeirão era meu sapateiro na Alta.
O Binão, tenho a ideia que tinha medo dele, um medo não justificado, pois nunca me ameaçou...
O fim do romance com a Alzira era o previsível, só anãozinho não via!
Boa leitura a encerrar o Agosto.
Mais um belo texto do Rui! Depois de ler o Texto fico com a ideia que conhecia as figuras, embora não me lembre delas!
ResponderEliminarSaiu-lhe cara a paixão! Sim, porque nem sabemos se chegou a ter íntimas relações com a mulher!...