segunda-feira, 29 de agosto de 2011

BIBLIOTECA "ENCONTRO DE GERAÇÕES"REPÚBLICA DO CARMO- PARTE II

CAPÍTULO 5(parte)-Romance Histórico de Coimbra-A Republica do Carmo- de Fernando Rovira
Quem era Leonor, a formosíssima tricana de Coimbra, heroína da nossa história?
Estêvão ouviu pela primeira vez falar dela, deveis estar lembrados, na noite em que livrou o estudante Mendonça de uma enorme sova no botequim de Sansão. Alguém a definiu então, de maneira primorosa: uma beleza espiritual. Pois bem, quem leu o que na época se escreveu a seu respeito não tira uma virgula ao que foi dito.
Trajava sempre de tricana. Mas não ia “descalça para a fonte”, como a Leonor de Camões, que não lho permitia o viver da casa que recebera como filha.
Trajo de tricana, sim, mas aprimorado, luxuoso mesmo, no que chegou a ser imitada por algumas meninas ricas da cidade que, até então, consideravam esse trajo próprio de moças pobres, devaneios de estudantes. Usava mantilha, prendia o xaile com elegância, a saia um pouco subida a deixar ver a meia branca e, no pé, o formoso chinelo de biqueira de verniz.
Até à morte da mãe, ia Leonor nos 16 anos, ambas viviam numa casita modesta situada no local que, umas dezenas de anos depois, herdou o nome da fábrica que ali laborou quase até aos finais do século XVIII, habitualmente designada pelo povo por feitoria dos linhos.
Por ali ter nascido e vivido, era conhecida por alguns por Leonor de S. Francisco; por outros simplesmente por Inglesa.
Porquê, Inglesa? Pelo louro do cabelo? Por ser alta e esbelta? Por ser diferente?...Nada disso!
A avó de Leonor era lavadeira. Na Primavera e no Verão, quando o Mondego corria manso e de águas pouco fundas, ela batia e torcia nas lajes negras do rio a roupa da gente rica da cidade. Com isso bastava ao sustento, seu e da filha, o qual não ia além daquele pouco a que estão habituadas as pessoas simples do povo.
A filha, mãe de Leonor, era aos 18 anos uma moça bonita, de grandes olhos doces e lânguidos.
Ajudava a mãe nos serviços mais difíceis e penosos da lide. Era ela que transportava à cabeça as avantajadas trouxas de roupa que vinha suja de cidade e para lá voltava com a seráfica alvura dos altares.
Um pouco além das pedras onde as lavadeiras ensaboavam, batiam e coravam a roupa, ficava o local onde os ingleses, aquando da Terceira Invasão Francesa, haviam fixado uma guarda, lugar esse que viria a perdurar na toponímia coimbrã com o nome de Guarda Inglesa. Os militares, que ali permaneceram vários meses, conduziam os cavalos pela arreata e iam pô-los a beber num ponto do rio situado um pouco acima do sítio onde as lavadeiras se entregavam ao seu afã diário. Entre eles, havia um, louro, de bigodito também alourado, que deixava transparecer pela atitude sempre alegre o feitio bem disposto e folgazão dum latino. Tinha o costume de se aproximar das lavadeiras e dirigir-lhes a palavra.
Elas nada percebiam daquela algarviada e, como não sabiam responder ao que não entendiam, faziam a única coisa que podiam fazer…riam. Outras vezes, aproximava o cavalo delas e ficava a gozar o espectáculo de ver cada uma a fugir para seu lado em grande galhofa.
De todas as vezes que isso acontecia, e bastantes era, o soldado não tirava os olhos de Maria Leonor, que assim se chamava a tricana de olhos doces e lânguidos.
Entre as mais moças solteiras que por ali estavam, era Maria Leonor a única que atraía as atenções do militar.
Logo que o viam surgir da margem, com o cavalo pela arreata, as companheiras diziam-lhe com uma ou outra invejazita mais traquina a tresmalhar dos sorrisos benevolentes:
- Lá vem o inglês. O diabo do homem não tira os olhos de ti, Maria Leonor. Parece que lhe saltam da cara!
- Muita água bebe aquele cavalo…Ainda acaba por arrebentar, coitadinho! – acrescentava logo outra.
-Vocês são doidas! – retorquia ela, corada.
- Ó Maria Leonor, ainda hoje não puxaste pela garganta.
Tens de cantar uma dessas cantigas tão bonitas que tu sabes!
- Sei cá eu qual hei-de cantar?!
- Canta aquela das fogueiras de S. João – lembrou a mãe.
E a voz bem timbrada elevou-se nas alturas, insubmissa e romântica, a partilhar a alegria com as águas, com os salgueiros, com as areias do rio…


Ó cidade de Coimbra
Arrasada sejas tu
Com beijinhos e abraços
Não te quero mal nenhum.

Sansão é dos frades crúzios
A Calçada dos amantes
A Praça das regateiras
A Ponte dos estudantes.

Campos verdes de Coimbra
Cheios de canaviais
Quem se fia em estudantes
O que recebe são ais.

Quem é este passarinho
Que no ar faz ameaças?
C´o biquinho pede beijos
Co´as asinhas pede abraços.


O soldado sentou-se e ali se deixou ficar, embevecido…Quando o último verso se extinguiu, levantou-se e bateu palmas entusiasmado.
As lavadeiras já se haviam habituado a vê-lo por ali, mas sempre a distância respeitosa. Um dia, o soldadinho foi mais atrevido. Veio junto de Maria Leonor e, num português arrevesado, perguntou-lhe se queria ir com ele para Inglaterra, quando a guerra acabasse. Ela tardou, mas acabou por compreender, e, sem levantar os olhos da pedra onde torcia a roupa respondeu:
- Sei lá onde isso é….
E ambos se puseram a rir.


O Mondego continuou a correr, as lavadeiras a lavar, a guarda inglesa no seu posto a guardar e Maria Leonor e o soldado a amarem-se.
Uma tarde, o soldado vinha triste. Maria Leonor não perguntou nada. Para quê?...!
Despediram-se. Nas bocas, ficou o travo de sal do último beijo.
O militar não está em lado nenhum, a não ser entre a vida e a morte, mesmo se o coração parte cheio de esperança de voltar.
- Quando a guerra acabar, venho buscar-te!
Maria não disse nada. Ficou a ouvir os passos lentos a afatarem-se, esmagando a areia e o seu coração.
As companheiras estavam com ela, sua mãe também estava ali, mas Maria sentia-se só numa noite sem manhã…
Os dias passaram sobre sobre os dias. Cada hora, uma esperança morria e o coração ia-se finando na setença que adivinhava.
- Maria, olha quem lá vem!
O mesmo uniforme, o mesmo garbo…mas não era o sodado de Maria. A voz soou triste como um requiem:
- És tu a Maria Leonor? És tu a Maria?...
Maria levantou os olhos assustados. Na voz do soldado adivinhou a desgraça. Por fim, o grito rompeu o vómito de aflição que lhe fechava a garganta:
- Morto, meu Deus?!
O soldado, cabeça pendida e olhos a marulharem em águas de agonia, apenas soube dizer:
- Caíu a meu lado. Pediu-me para te vir dizer…
O rio, que era triste, ficou mais triste. A espuma do sabão eram saudades que a água ia levando, mas nunca as levou todas…
- Como se vai chamar? – perguntou uma companheira.
- Se for menino, é João.
- E se for menina, é Maria Leonor, como tu…
- Não, só Leonor. As Marias são infelizes.
Leonor nasceu e passou a ser a razão duma vida.
Ao certo, nunca soube nem o dia, nem o local onde João morreu, nem a terra que lhe comeu o corpo. Para ela, esse dia foi aquele em que os seus beijos tiveram o gosto do sal.
De uma vez, ao regressarem a casa, calhou a filha perguntar:
- Onde morreu o pai?
Ela parou, levantou os olhos para o céu, e respondeu:
- Ali…por detrás do Monte da Esperança.
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FIM da apresentação  deste Livro do Fernando Rovira
(a primeira parte foi postada em 26/08

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