Naquela rua soturna de Lisboa, existia um prédio. Eram quatro andares e um sótão, que também servia de habitação. Lá dentro, gente humilde. Viviam do seu magro pecúlio e da solidariedade que compartilhavam entre si. Por uma escada velha de madeira, subia-se até ao topo. Sempre de lanterna na mão, naquele reino das trevas, quer fosse de dia ou de noite. Era como dedilhar as cordas de uma viola. O gemido triste de um fado. No quarto andar, viviam as irmãs Margarida e Felismina. Ao lado, o velho João Bernardino, que subia as escadas curvado para a frente, trazendo às costas o peso das privações. E a Elvira, que vendia sardinhas ao fundo da Rua da Prata. No sótão, habitavam a Zulmira e o Rogério. A Zulmira, era ainda uma bonita mulher. No rosto, porém, tinha marcado o sofrimento dos sopapos da vida. Esgotava os seus dias dobrada sobre a máquina de coser “Singer”, ou picotando pacientemente malhas em meias de senhora. Ao Rogério, não se conhecia profissão. Tinha olhar de lince, naquele rosto esquálido. As farripas de cabelo que lhe sobravam na cabeça, penteava-as para trás, ensopadas em brilhantina. Percorria a noite de Lisboa, de gabardina cor de cinza até aos pés e boina basca descaída sobre a orelha, procurando negócios de ocasião. Negócios pardos. Uma vez, entrou deitado numa maca no hospital dos Anjos. Foi numa noite morna, lá para os lados da Madragoa. Um negócio de tabaco clandestino, de que cobrava o seu quinhão. Da discussão à zaragata, foi um passo. Alguém puxou de uma pistola e atirou-lhe. Mas salvou-se, com os cuidados médicos e o desvelo da Zulmira que o amava. O Rogério, passava agora as horas deitado, convalescendo, olhando para a velha televisão a preto e branco, de ecran baço, com que um dia apareceu em casa, sem explicar a proveniência. Um ano, houve festa naquele prédio da rua triste. A Margarida, tinha arranjado um emprego das mil e uma noites. À vista de quem ali vivia dos magros escudos. Bateu de porta em porta, a dar a feliz notícia aos solidários vizinhos. Era agora empregada de bordo do paquete “Santa Maria”. Ia finalmente saborear a vida. A Felismina – sua irmã – debulhou-se em lágrimas. Viviam sozinhas e perdia a sua companheira de sempre. A Margarida, porém, exultava, com o mundo a seus pés. Funchal, Rio de Janeiro, Buenos Aires, Nova York, na rota da vida. Mas foi sol de inverno. À terceira viagem, o navio foi tomado de assalto . Um tal Galvão, um bandido que odiava o Senhor Doutor Salazar - diziam lá no prédio. Todas as noites, a vizinhança encostava os ouvidos à telefonia, na procura de notícias da pobre Margarida. Um dia, resolvida a contenda, a irmã da Felismina chegou. Beijaram-se até às lágrimas. Depois, foram os vizinhos a abraça-la, um a um. À entrada da porta, a mala de cartão, com rótulos colados dos destinos por onde tinha passado. Fora curta aquela etapa da vida. Nunca mais regressou ao mar. Mas era agora muito considerada por todos. Tinha percorrido mundo. Um deslumbramento, para quem nunca tinha passado a fronteira da Rua Augusta. Hoje, passado mais de meio século, a pesada porta da entrada ainda lá está, com o seu batente em ferro pintado de verde. Mas já lá não estão os seus moradores de outras eras. Deram o derradeiro passo, para o outro lado da vida. Deles, apenas uma esfumada lembrança. E o trinar longínquo de um fado negro.
Q.P.
Q.P.
Esta é um conto de ficção, baseado em factos da vida real. Foi protegida a identidade dos protagonistas, honrando a sua memória.
ResponderEliminarO Autor
Muito bem!!! Tuas histórias são sempre um prazer para a... "leitura"! Parafraseando o "autor"...toma lá um abraço!
ResponderEliminarParabéns Quito. Um conto com muito ritmo.
ResponderEliminarAquela da Fronteira da Rua Augusta tocou-me especialmente. Ainda hoje há resquícios dessa realidade: vivi 6 anos em Alfama, a 5 minutos de Sta. Apolónia, a 10 do Terreiro do Paço e a 15 do Rossio; muitas vezes, ouvi dizer: «amanhã vou a Lisboa», «amanhã vou à cidade»
Rui Barreiros.
Gostei desta ficção do Quito que nos traz mais uma história dos velhos tempos da ditadura, de gente sofrida e triste do nosso povo a quem o consolo, muita das vezes, se finava no trinado duma guitarra na triste letra dum fado.
ResponderEliminarO Quito muda o cenário da ruralidade da Beira Baixa para a soturna ambiência dum velho bairro de Lisboa. Outras personagens, diferentes modos de enfrentarem as mesmas agruras, mas iguais e dolorosas passagens pela vida, numa época obscura que também nós conhecemos. Época que o texto localiza com a referência a um episódio que marcou a fragilidade do negro regime político que oprimiu as nossas gentes durante décadas. De que o fado era o refúgio…
ResponderEliminarAinda me ferem os ouvidos as palavras aflautadas do Senhor de Santa Comba a dizer:
Temos o Santa Maria connosco! Obrigado portugueses!
Quanto às razões do sequestro do navio, nem uma palavra, claro!
Obrigado, Quito, pelo excelente texto, na linha do que já estamos habituados.
O Quito traz-nos hoje os "trinados de um fado negro" que tanto se podem ouvir no meio rural como no urbano!
ResponderEliminarSempre uma leitura plena de sentimentos, dolorosos e sentidos.
Continua a ficcionar, nós gostamos.
Obrigado pela prosa.
ResponderEliminarTonito.
Como sempre uma delícia este teu texto!
ResponderEliminarGostei,e muito, pronto!
Os comentários já expressos dizem tudo!
Quatro andares e um sótão é o novo cenário para contar estórias de gente humilde.
ResponderEliminarEstórias que fazem parte da história mas que ainda são presente.
É delicioso o pormenor do "bandido Galvão" que, com o seu ódio a Salazar, estragou as mil e uma noites de Margarida...
Quito, mais um belo texto que merece integrar a tal colectânea que não perco a esperança de vir a ler.
Aquele abraço ( estejas onde estiveres ).
Este "estejas onde estiveres" requer uma explicação.
ResponderEliminarHoje, almoçando com alguns dos nossos comuns amigos, falou-se de ti (vá-se lá saber porquê...)
Uns diziam, como eu, está em Lagos. Outros, quiçá mais actualizados na informação, diziam que Lagos já foi. Agora parece que é Palma de Maiorca.
Daí que me tenha saído aquele "estejas onde estiveres"...
Olha, toma lá mais um abraço.
A todos agradeço os comentários.
ResponderEliminarCaro Viana
Estou por cá. No continente.
Aquela história ficcionista, tem muito de realidade. Os personagens existiram, embora eu, por respeito à sua memória, tivesse omitido os seus verdadeiros nomes.
A Margarida (nome fictício) andou mesmo embarcada no "Santa Maria". Aquela gente pobre mas muito solidária, viveu aquele drama só descansando quando a viram regressar.
Já lá vão mais de 5O anos. Sabes o que é que isso quer dizer? Estou velho !!!
Tomem lá um abraço ( Já começo a ter saudades da malta)