quinta-feira, 18 de abril de 2013

ALCATRUZES DA VIDA


Pegou no maço de Definitivos, tirou mais um cigarro e acendeu-o.
Como acontecia há várias noites, a insónia vencia-o e assim como as cinzas fatídicas do cigarro se pulverizavam, também as ideias se lhe esfumavam, incapaz de as encadear, de forjar um raciocinio coerente.
Ali do alto do Penedo da Saudade, os olhos espraiavam-se pelo vale do Calhabé, corriam sem se deter pelo estádio municipal, pela igreja de São José, pelo apeadeiro do comboio e quedavam-se no extremo nascente do planalto onde tinha sido plantado, numa geometria irrepreensivel, o casario do Bairro. Era ali que dormia a sua amada, lá para os lados da Rua da Guiné.

Nunca se tinham falado, mas apaixonara-se por ela desde o primeiro dia em que a viu num baile do Greco para onde tinha sido convidado por um colega de faculdade há um mês atrás.





Névoas silenciosas vindas do Mondego e do Pinhal de Marrocos começavam a cobrir lentamente, em farrapos obliquos, as casas do vale deixando aqui e ali a descoberto os fantasmagóricos picos das suas chaminés, como pontas de jazigos, numa desolação madornal de cemitério, sepultando e escondendo no seu ventre os funcionários, os operários e os camponeses que habitavam aquele plácido e húmido recanto da cidade ainda rural, planificado na bruma.
 
Mal adivinhava o seu pai, lá longe em Mangualde, que, com sacrificios imensos o mandara estudar em Coimbra para ser doutor, alugando-lhe um quarto numa casa perto do convento das Carmelitas e do Penedo, que o seu filho Pedro, em vez de pegar nos livros, passava as noites a esfumaçar à janela, de coração apaixonado, obstinado naquele bairro.
Ou, melhor dito, numa determinada casa daquele bairro.
Ou, para sermos mais precisos, na janela daquela casa onde dormia o seu amor.

Mal começou a romper a aurora, passou a cara por água, tentando disfarçar as olheiras profundas, penteou-se, vestiu a capa e batina, meteu dois livros debaixo do braço e saiu de casa.
Em vez de se dirigir à Universidade para ir às aulas, desceu a pé pelo Cidral, estugou o passo com a capa a ondular e dirigiu-se até à passagem de nivel. Como de outras vezes, era ali que esperava que ela passasse para ir às aulas do Liceu Feminino onde frequentava o 7º ano.
Nunca antes lhe tinha falado, mas desta vez estava resolvido a abordá-la e a declarar-lhe o seu amor.

Pouco depois, viu-a descer a rampa que vinha da Rua de Angola em direcção ao apeadeiro, acompanhada de outras colegas, numa algazarra juvenil, de gargalhadas e dichotes.
Mas o seu coração baqueou. Num amplexo apertado, um rapaz envolvia a Graça com o braço em redor dos ombros.
Afinal ela já namorava!

Desistiu de lhe dirigir a palavra.
Macambúzio, acabrunhado, com o coração a sangrar de desgosto, virou costas em direcção à paragem do Calhabé para ir apanhar o trolley para a Universidade.





Muitos anos mais tarde, o Dr. Pedro Matias, já médico em Mangualde, viu a Graça entrar-lhe no consultório, pedindo-lhe que a observasse e medicasse. Precisava de se tratar de uma gripe que a vinha apoquentando há uns dias e aproveitara uma diligência no tribunal de Mangualde para ir ao médico.
Era agora advogada em Nelas...

Reconheceu-a, falaram de Coimbra, do Bairro e do Greco.
Receitou-lhe umas aspirinas que é prescrição que nunca falha.
Só então o Pedro ficou a saber que aquele rapaz que a abraçava, naquele tenebroso dia no apeadeiro, era o irmão da Graça que se dirigia para as aulas no D. João III, acompanhando-a até ao Infanta D. Maria.


Rui Felicio

16 comentários:

  1. Rui, o que eu chamo um galo nítido.
    Um Abraço.
    Tonito.

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    1. Lapidar como sempre, o meu amigo Tonito.
      Um abraço para ti também. Obrigado.

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  2. Fico atordoada com esta história...Ao lê-la não posso de deixar de olhar para trás e pensar:Porra,isto também me aconteceu!
    Ao passar no trolley nº 5 e o vi, na paragem da rua dos Combatentes,com outra todo risonho e falador com uma rapariga...chorei de ciúmes e raiva!Não a conhecia e pensei "filho da mãe" anda a enganar-me.............Afinal era a irmã que eu ainda não conhecia! Ah,que alivio quando pedi contas!
    Enfim a tua história bem mais completa e melhor imaginada fez-me recordar este episódio"muito grave" para a época...
    Queremos mais,Rui!

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    1. Embora o episódio que relatei tenha uma origem verdadeira...
      Apesar de a protagonista vivesse na Rua da Guiné, tal como Olinda...
      A verdade é que não era a ti, Olinda, que me estava a referir.
      Veja-se, porém, a coincidência de também com ela se ter passado um caso semelhante!
      A diferença é que a Olinda, não deixou os seus créditos por mãos alheias, tirando a limpo e cara a cara, as dúvidas que a afligiam.
      Ainda hoje é assim a nossa Olinda.
      E ainda bem que assim é!

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  3. Há um Bairro que é uma saudade. O autor deste conto, que reputo de verídico, mesmo que romanceado, sabe-o. E eu, leitor atento, também o sei.

    Hoje, por felicidade minha, leio esta bela prosa, no local que é o berço todo este desencontro amoroso - o Bairro Marechal Carmona.

    Porém, o que mais me faz reler esta estória, não é o seu epílogo. Mas sim a forma que reputo de brilhante, em como, com pena de Mestre, o escritor nos traz para a cena onde se passam os factos.

    Corro o texto e retenho na retina estas passagens:

    "Ali do alto do Penedo da Saudade, os olhos espraiavam-se pelo vale do Calhabé, corriam sem se deter pelo estádio municipal, pela igreja de São José, pelo apeadeiro do comboio, e quedavam-se no extremo nascente do planalto onde tinha sido plantado, numa geometria irrepreensível, o casario do Bairro (...)"

    ou ainda

    " Névoas silenciosas, vinda do Mondego e do Pinhal Marrocos começaram a cobrir lentamente, em farrapos oblíquos, as casas do vale, deixando aqui e ali a descoberto os fantasmagóricos picos das suas chaminés, como pontas de jazigos,numa desolação madornal de cemitério ( ...) planificado na bruma"

    O escritor, conscientemente, monta com argúcia o palco onde se desenrola um drama amoroso, para depois, envolver o leitor num ambiente lúgrebe, em que não faltam em tons carregados de negro, as citações a "pontas de jazigo", cemitérios e brumas condizentes com a tela sombria de um texto que, aparentemente, até parece ligeiro, ficando-se pelo desconsolo de alguém que se apaixonou por uma mulher nos tenros anos da juventude.

    Para mim, contudo, as tintas carregadas com que o autor pinta o texto, leva-me a pensar que a narração é bem mais profunda do que parece ser numa leitura mais aligeirada.

    Que posso dizer ao Felício ? O mesmo que alguém que está aqui comigo, me disse ao ler esta prosa: " Que delícia de escrita ...

    Um abraço

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    1. Tenho que vir aqui para reforçar esta opinião do Quito.

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    2. O Quito, arguto e atento como sempre, aludiu a algo que lhe pareceu estar subjacente à história propriamente dita.
      E tem razão.
      Pretendi, porventura desajeitadamente, lembrar a ruralidade da zona da cidade em que viviamos.
      De onde paulatinamente foram desaparecendo as hortas, os olivais, o pinhal de Marrocos, a Quinta das Flores e a convivência próxima entre os seus habitantes e aqueles que ali aportavam diariamente vindos dos arredores, através do comboio, também ele mesmo desaparecido.
      Ao pintar de cores negras esse cenário, ao desenhá-lo com traços pungentes, quis significar a premonição do seu fim, da condenação que já lhe estava ditada pelo progresso que o engoliria em breves anos.

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  4. Que maravilha para os Contos Felícios d'a funda São. Posso, Rui Felício?

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  5. A teia vai sendo tecida, envolvendo o leitor.
    A evocação de zonas, locais, ruas, faz parte da teia que também serve ao Autor para se recrear com as suas próprias recordações.. O Bairro, Coimbra, como palco...
    Não importa muito saber se a estória tem fundamento real. Uma paixão que morre por um desentendimento pode acontecer. As grandes paixões dão lugar a grandes ciúmes e o ciúme é um mau conselheiro do amor...
    Para todos os efeitos, um grande obrigado ao Rui Felício por nos trazer mais este naco de boa prosa.
    Continuas em grande forma, querido amigo. Parabéns.

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  6. Felício, formidável o que escreves mas desta vez deixaste-me desiludido só!!! com o final..., sou romântico!!!
    Um abraço
    Fernando AZENHA

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  7. Um texto ao estilo do Rui, muito agradável de ler, com uma narrativa que tinha tudo para ser um amor bem sucedido, mas que uma paixão excessiva, talvez daquelas que se diria assolapada, se precipitou num drama amoroso!Precepitações irremediáveis!
    Para além do "drama" apreciei a menção de lugares que são caros há nossa juventude, como D. João III, Cidral,Liceu Feminino, São José, Bairro Marechal Carmona, Rua da Guiné e de Angola, Greco!Um belo rosário de "boas recordações"!
    Feliz pelos teus textos!

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  8. Agradeço a simpatia das vossas palavras, meus amigos.
    É reconfortante saber que uma história simples e despretensiosa revolve as memórias de cada um trazendo à tona outras recordações guardadas na memória de cada um.
    Chama-se a isso memória colectiva. Afinal, o cimento que congrega amizades de décadas hoje mais sólidas do que nunca.
    Graças, em larga medida, ao Encontro de Gerações e ao Fernando Rafael, seu incansável mentor.
    Amizades essas, bem patentes nos bons e nos maus momentos, como não me canso de sublinhar perante amigos recentes a quem revelo sempre que se propicia, o extraordinário e inimitável espirito do Bairro onde vivemos os melhores momentos da nossa juventude.

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  9. A "história simples e despretensiosa" é nos apresentada com tal mestria pela pena do Rui Felício, que se torna um episódio de muito agradável leitura e, como é seu timbre, terminando de forma inesperada, colhendo de surpresa a expectativa do leitor!
    Um prazer, a tua participação, Rui.

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