O Agostinho era bruto. Um bondoso bruto. Era guarda - florestal
e percorria todos os caminhos da Mata do Choupal, de mãos atrás das costas. Da
farda azul, fazia parte um cinto negro de fivela larga, que não lhe adelgaçava
a barriga obesa. Também uma corneta de metal, presa por uma correia de cabedal,
a tiracolo, que servia para comunicar com os outros zeladores daquele
património de Portugal e de Coimbra. Consoante o toque, assim se sabia com quem
pretendia contactar. Um toque, o administrador da Mata. Dois toques, o mestre -
florestal. Três toques, um guarda - florestal. Era assim, naquelas décadas de
quarenta e de cinquenta, do século passado.
O Agostinho tinha uma cara grande e morena e um bigode que
condizia com o cinto – preto. E um nariz avassalador, com as marcas de um surto
de varicela, que o atacou em criança. Conhecia a Mata, melhor que a sua própria
casa. Era um bom guarda, mas tinha um feitio belicoso e intransigente para com aqueles que tentavam
levar um pouco de lenha para se aquecer do rigor do Inverno. A lenha, recordo,
era um dos produtos da Mata e a sua venda receita do Estado. O Agostinho,
seguia-lhes os passos e, uma vez, apanhou um infeliz pelo fundilho das calças,
quando o triste juntava um pouco de madeira para levar para o lar.
Aterrorizado, o homem implorava compaixão, perante a estatura de paquiderme do guarda,
que lhe dizia em voz grossa:
- Podes ir para casa, mas deixas cá pele da barriga …
Depois, como num golpe
de magia, a cara do Agostinho transfigurou-se, afivelou no rosto um sorriso
cordato e disse ao suplicante:
- Vá … vai lá embora … leva a lenha e não digas que me viste
…
Mas da fama de mau, não se livrava. Por vezes, era o mestre -
florestal, que tinha que travar os seus excessos de zelo.
Lembro o Agostinho, com saudade. Recordo- lhe a sua estatura
avantajada e umas botas negras e cardadas, que faziam parte da farda. E um boné,
de onde sobressaíam em latão reluzente, duas letras douradas, M e N - Matas Nacionais.
Tenho a imagem dele, debaixo da ponte de Caminho de Ferro do
meu velho Choupal, a ver passar por cima, a locomotiva em movimento acelerado,
levando a reboque, aquelas pequenas carruagens verdes, onde a cada porta
correspondia uma janela, como pequenas peças animadas de um brinquedo de
criança. E recordo o barulho estrondoso, das enormes rodas de ferro sobre os
carris, enquanto ia vomitando baforadas de nuvens negras pela chaminé da
máquina possante e o apito sonoro e arrepiante, quase aflitivo, que ecoava pela
Mata e que em ondas sonoras cada vez mais distantes e esbatidas, se perdiam
pelos campos do Mondego, ao encontro dos alagados arrozais de Montemor e dos
telhados modestos das povoações de Bencanta e Espadaneira …
Foi assim, na minha infância. Foi assim, naquele Tempo …
Quito Pereira
Sem o ter conhecido, parece que estou a ver o Agostinho, descrito magistralmente pelo Quito, à maneira queirosiana.
ResponderEliminarNada lhe falta para compor a sua imagem. Nem no aspecto fisico, nem na indumentária.
Nem mesmo ali falta o ambiente em que se move, a floresta, o comboio a silvar, a corneta como forma de comunicação.
Mas, pensando melhor, corrijo-me.
Não, não parece que o estou a ver.
Estou mesmo a vê-lo!:
Zelador da coisa pública como era seu dever, tinha que afivelar a máscara da intransigência e da dureza perante os infractores. De outro modo não cumpriria as suas obrigações.
Mas, na verdade, dentro da carapaça aterrorizadora batia um coração condescendente.
Capaz de perdoar...
Faz-me lembrar o ditado popular: “cão que ladra não morde”.
No Bairro, "Naquele Tempo" do Quito que foi o meu também, havia alguns infiltrados que não ladravam.
E por isso bem mais perigosos.
E que morderam a alguns dos nossos amigos e vizinhos, destruindo-lhes as pacatas vidas familiares..
Por culpas inexistentes e incompreensiveis nos tempos actuais.
Felizmente que esses tempos já passaram...
O "teu" Choupal agora através do Sr. Agostinho, o guardião zeloso da mata...
ResponderEliminarCada período do texto traduz "o cordão umbilical" que te mantém ligado ao local que te viu crescer e cada árvore é parideira de saudade!
Hoje não frequentamos o nosso Choupal como muitos anos atrás com o farnel e ali almoçávamos com a família... Que belos Domingos ali passei e também com os doentes do hospital onde trabalhava,no Verão,mas durante as horas de trabalho com a respectiva equipa.
Os domingueiros do Samambaia hão-de fazer ali um almoço ambulante!
É uma proposta que faço.
Agostinho, um bondoso bruto que acaba de me ser apresentado pelo Quito!
ResponderEliminarMais um excelente texto duma infância tão distante, mas tão bem descrita e recordada! Até parece que também andei a brincar no Choupal, com o Quito e a fugir do Guarda Agostinho!...
Vês Quito,ao relatares tão apaixonadamente as tuas vivências do teu, nosso Choupal, aguças a vontade para um piquenique!
ResponderEliminarO Senhor Agostinho, "leão com coração de passarinho", aqui
o pões de forma tão real, que me deixa em sentido, mas a admirá-lo.
neste belo texto sobre as tuas vivências de infância no choupal, ficamos a conhecer um pouco de como se fazia a vigilância da Mata do Choupal!
ResponderEliminarInteressante como naqueles tempos(não havia telemóvel) se usava uma corneta para comunicarem entre si os guardas florestais, zeladores da mata!
Por falar em corneta faz-me lembrar também quando bem jovenzinho lá pela minha santa terra Penela, quando o o almoço estava pronto, minha mãe me dizia: Fernando chama o avô para vir almoçar!
Meu avô normalmente a essa hora estava na mercearia/taverna que fica ao fundo da ladeira um pouco menos que cem metros da minha casa.
Então e como tinha comprado uma corneta de barro na feira anual de São Miguel, ia à janela da sala e fazia soar um toque estridente que já tinha combinado com o meu avô Manel!!
Com a vinda para Coimbra com 14 anos...tudo acabou, por aqui! Mas como meu avô também veio para aqui para o Bairro...outros episódios se passaram...
O Rafael a tocar a corneta fez-me lembrar o meu Pai que assobiava baixo puxando o ar para dentro. Era um assobio que fazia pouco barulho mas que devido a ser muito agudo se ouvia por todo o lado, mesmo no Cavalo Selvagem.
EliminarTambém me trouxe à memória o assobio do sr. Pires a chamar o seu filho, Carlitos. Era um assobio muito potente.
Emfim, tempos que passaram e não esquecem.
Eu também conheci o Choupal mas como o Quito o descreve, não. Só ele. Isto não foi só o falar de um guarda, mas de toda uma vivência em que se nota a saudade. Quanto ao sr. Agostinho, fiquei com a sensação de uma pessoa que tinha bom fundo mas tinha medo de perder o emprego.
ResponderEliminarUm abraço.
A todos os amigos que aqui vieram dar o seu contributo, o meu obrigado.
ResponderEliminarNa verdade, é estimulante para quem escreve num pequeno blogue de amigos, sentir o retorno de uma amizade.
Para mim, escrever não é uma tarefa ao correr da pena. Leva tempo. O que faço é esforçado, compondo e destruindo, até que o conteúdo final me pareça aceitável de oferecer aos amigos.
O Carlos Viana disse um dia, a propósito do texto "A conspiração", que a prosa era "um ato de amor" pelos amigos. O Viana, bateu o ponto certo. Seja pela minha infância Choupalina, na batalha ao lado de movimentos cívicos, ou contando simples experiências profissionais de outrora, o que está subjacente a tudo isto é a amizade. É a minha forma de comunicar com todos vós. De, pela escrita ou pela fotografia, seja na Europa ou fora dela, perpetuar e perpetuarmos o Bairro.
Um abraço a todos