sexta-feira, 19 de abril de 2013

NAQUELE TEMPO ...


O Agostinho era bruto. Um bondoso bruto. Era guarda - florestal e percorria todos os caminhos da Mata do Choupal, de mãos atrás das costas. Da farda azul, fazia parte um cinto negro de fivela larga, que não lhe adelgaçava a barriga obesa. Também uma corneta de metal, presa por uma correia de cabedal, a tiracolo, que servia para comunicar com os outros zeladores daquele património de Portugal e de Coimbra. Consoante o toque, assim se sabia com quem pretendia contactar. Um toque, o administrador da Mata. Dois toques, o mestre - florestal. Três toques, um guarda - florestal. Era assim, naquelas décadas de quarenta e de cinquenta, do século passado.

O Agostinho tinha uma cara grande e morena e um bigode que condizia com o cinto – preto. E um nariz avassalador, com as marcas de um surto de varicela, que o atacou em criança. Conhecia a Mata, melhor que a sua própria casa. Era um bom guarda, mas tinha um feitio belicoso e  intransigente para com aqueles que tentavam levar um pouco de lenha para se aquecer do rigor do Inverno. A lenha, recordo, era um dos produtos da Mata e a sua venda receita do Estado. O Agostinho, seguia-lhes os passos e, uma vez, apanhou um infeliz pelo fundilho das calças, quando o triste juntava um pouco de madeira para levar para o lar. Aterrorizado, o homem implorava compaixão, perante a estatura de paquiderme do guarda, que lhe dizia em voz grossa:
- Podes ir para casa, mas deixas cá pele da barriga …

 Depois, como num golpe de magia, a cara do Agostinho transfigurou-se, afivelou no rosto um sorriso cordato e disse ao suplicante:
- Vá … vai lá embora … leva a lenha e não digas que me viste …  

Mas da fama de mau, não se livrava. Por vezes, era o mestre - florestal, que tinha que travar os seus excessos de zelo.

Lembro o Agostinho, com saudade. Recordo- lhe a sua estatura avantajada e umas botas negras e cardadas, que faziam parte da farda. E um boné, de onde sobressaíam em latão reluzente, duas letras douradas, M e N  - Matas Nacionais.
Tenho a imagem dele, debaixo da ponte de Caminho de Ferro do meu velho Choupal, a ver passar por cima, a locomotiva em movimento acelerado, levando a reboque, aquelas pequenas carruagens verdes, onde a cada porta correspondia uma janela, como pequenas peças animadas de um brinquedo de criança. E recordo o barulho estrondoso, das enormes rodas de ferro sobre os carris, enquanto ia vomitando baforadas de nuvens negras pela chaminé da máquina possante e o apito sonoro e arrepiante, quase aflitivo, que ecoava pela Mata e que em ondas sonoras cada vez mais distantes e esbatidas, se perdiam pelos campos do Mondego, ao encontro dos alagados arrozais de Montemor e dos telhados modestos das povoações de Bencanta e Espadaneira …

Foi assim, na minha infância. Foi assim, naquele Tempo …
Quito Pereira          

8 comentários:

  1. Sem o ter conhecido, parece que estou a ver o Agostinho, descrito magistralmente pelo Quito, à maneira queirosiana.
    Nada lhe falta para compor a sua imagem. Nem no aspecto fisico, nem na indumentária.
    Nem mesmo ali falta o ambiente em que se move, a floresta, o comboio a silvar, a corneta como forma de comunicação.

    Mas, pensando melhor, corrijo-me.
    Não, não parece que o estou a ver.
    Estou mesmo a vê-lo!:

    Zelador da coisa pública como era seu dever, tinha que afivelar a máscara da intransigência e da dureza perante os infractores. De outro modo não cumpriria as suas obrigações.
    Mas, na verdade, dentro da carapaça aterrorizadora batia um coração condescendente.
    Capaz de perdoar...
    Faz-me lembrar o ditado popular: “cão que ladra não morde”.

    No Bairro, "Naquele Tempo" do Quito que foi o meu também, havia alguns infiltrados que não ladravam.
    E por isso bem mais perigosos.
    E que morderam a alguns dos nossos amigos e vizinhos, destruindo-lhes as pacatas vidas familiares..
    Por culpas inexistentes e incompreensiveis nos tempos actuais.

    Felizmente que esses tempos já passaram...

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  2. O "teu" Choupal agora através do Sr. Agostinho, o guardião zeloso da mata...
    Cada período do texto traduz "o cordão umbilical" que te mantém ligado ao local que te viu crescer e cada árvore é parideira de saudade!
    Hoje não frequentamos o nosso Choupal como muitos anos atrás com o farnel e ali almoçávamos com a família... Que belos Domingos ali passei e também com os doentes do hospital onde trabalhava,no Verão,mas durante as horas de trabalho com a respectiva equipa.
    Os domingueiros do Samambaia hão-de fazer ali um almoço ambulante!
    É uma proposta que faço.

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  3. Agostinho, um bondoso bruto que acaba de me ser apresentado pelo Quito!
    Mais um excelente texto duma infância tão distante, mas tão bem descrita e recordada! Até parece que também andei a brincar no Choupal, com o Quito e a fugir do Guarda Agostinho!...

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  4. Vês Quito,ao relatares tão apaixonadamente as tuas vivências do teu, nosso Choupal, aguças a vontade para um piquenique!
    O Senhor Agostinho, "leão com coração de passarinho", aqui
    o pões de forma tão real, que me deixa em sentido, mas a admirá-lo.

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  5. neste belo texto sobre as tuas vivências de infância no choupal, ficamos a conhecer um pouco de como se fazia a vigilância da Mata do Choupal!
    Interessante como naqueles tempos(não havia telemóvel) se usava uma corneta para comunicarem entre si os guardas florestais, zeladores da mata!
    Por falar em corneta faz-me lembrar também quando bem jovenzinho lá pela minha santa terra Penela, quando o o almoço estava pronto, minha mãe me dizia: Fernando chama o avô para vir almoçar!
    Meu avô normalmente a essa hora estava na mercearia/taverna que fica ao fundo da ladeira um pouco menos que cem metros da minha casa.
    Então e como tinha comprado uma corneta de barro na feira anual de São Miguel, ia à janela da sala e fazia soar um toque estridente que já tinha combinado com o meu avô Manel!!
    Com a vinda para Coimbra com 14 anos...tudo acabou, por aqui! Mas como meu avô também veio para aqui para o Bairro...outros episódios se passaram...

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    1. O Rafael a tocar a corneta fez-me lembrar o meu Pai que assobiava baixo puxando o ar para dentro. Era um assobio que fazia pouco barulho mas que devido a ser muito agudo se ouvia por todo o lado, mesmo no Cavalo Selvagem.
      Também me trouxe à memória o assobio do sr. Pires a chamar o seu filho, Carlitos. Era um assobio muito potente.
      Emfim, tempos que passaram e não esquecem.

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  6. Eu também conheci o Choupal mas como o Quito o descreve, não. Só ele. Isto não foi só o falar de um guarda, mas de toda uma vivência em que se nota a saudade. Quanto ao sr. Agostinho, fiquei com a sensação de uma pessoa que tinha bom fundo mas tinha medo de perder o emprego.
    Um abraço.


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  7. A todos os amigos que aqui vieram dar o seu contributo, o meu obrigado.

    Na verdade, é estimulante para quem escreve num pequeno blogue de amigos, sentir o retorno de uma amizade.

    Para mim, escrever não é uma tarefa ao correr da pena. Leva tempo. O que faço é esforçado, compondo e destruindo, até que o conteúdo final me pareça aceitável de oferecer aos amigos.

    O Carlos Viana disse um dia, a propósito do texto "A conspiração", que a prosa era "um ato de amor" pelos amigos. O Viana, bateu o ponto certo. Seja pela minha infância Choupalina, na batalha ao lado de movimentos cívicos, ou contando simples experiências profissionais de outrora, o que está subjacente a tudo isto é a amizade. É a minha forma de comunicar com todos vós. De, pela escrita ou pela fotografia, seja na Europa ou fora dela, perpetuar e perpetuarmos o Bairro.

    Um abraço a todos

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