Visita protocolar como Comandante Operacional dos Açores ...
Ninguém, rigorosamente ninguém de bom senso, faz a apologia
da guerra. E hoje, ao redor de uma mesa de amigos, venho fazer a apologia da
paz. Da paz que foi escrita num teatro de guerra. Ali, naquele Lugar, cercado
de arame farpado, vivíamos mais de cem almas. E um capitão. Um capitão
transmontano que, desde cedo, granjeou a simpatia dos seus oficiais, sargentos
e soldados. E a receita era simples: impunha-se sem se impor. Era mais um dos
nossos. Nos momentos de aperto, uma serenidade contagiante que se transmitia a
todos nós. Naquela roda de afetos, sempre os soldados como principal motivo das
suas atenções. E entre eles, os que reconhecia serem os mais humildes e
iletrados. Um deles chama-se Jesus e o capitão José Carlos Cadavez, ao
aperceber-se que era quase um indigente, nomeou-o seu “impedido”. A razão entendia-se.
Queria tê-lo junto dele para o proteger.
Os anos passaram. Regressámos a Portugal, nesta roda da vida.
O cabelo embranqueceu. Mas o contacto manteve-se. Um dia, ao telefone, disse-me
com aquela voz forte que o caracteriza:
- Ó Deus Pereira, vou fazer um almoço cá em casa para os meus
amigos mais chegados, porque vou passar à reserva, quero que apareças e traz a Conceição
contigo…
E assim, com um restrito
grupo de outros militares da antiga Companhia da Guiné, lá nos juntámos no
Ribatejo, para homenagear um General que tem coração de soldado.
Nos almoços que todos os anos organizamos há cerca de quatro
décadas, o antigo capitão tinha um desgosto. Nunca mais viu o Jesus. Mas um
dia, lá para as bandas do Douro, um soldado da Companhia conseguiu saber do
paradeiro daquele homem e as notícias não eram as melhores. O Jesus enviuvara
há anos, vivia pobremente e a porta da sua humilde casa, nem sequer fechadura
tinha. No ano que passou, num almoço militar do Norte, um dos organizadores
ficou de ir buscar o Jesus para o levar ao almoço. E combinaram encontrar-se num
caminho rural junto da casa do antigo soldado. Foi então que o General Cadavez
deu uma “ordem”:
- Quem vai buscar o Jesus sou eu !!!
Então, levantando-se noite escura, foi à procura do infeliz
ex-militar, perdendo-se no caminho, por entre montes e vales. E, ao passar numa
velha estrada, viu um homem de baixa estatura, de aspeto humilde. Logo o
reconheceu. Era o Jesus, de camisa limpa e a barba escanhoada, num assomo de
dignidade e uma réstia de amor – próprio, a aguardar que o viessem buscar para
ir à festa dos seus antigos camaradas de armas. O General Cadavez saiu do
carro, no seu corpo avantajado, e disse-lhe com a sua voz de trovão:
- Ó Jesus, lembras-te de mim?
Já tinham passado muitos
anos, o pequeno homem não o reconheceu, de tão modificado que antigo capitão
estava. Foi então que o agora General, de braços abertos e a emoção estampada
no rosto lhe disse:
- Sou o Cadavez, fui teu capitão na Guiné!
Jesus ficou estático, colado ao chão. Depois, num impulso,
soltou uma exclamação, correu para ele e em pranto disse-lhe:
- Ó meu capitão, que grande alegria, já tinha perdido a
esperança de o voltar a ver…
E naquele raiar da manhã, abraçados numa curva do caminho,
choraram os dois ...Quito Pereira
No almoço, foi feita uma quotização entre os militares, para ajudar o Jesus. Foi conseguida uma importância significativa, que lhe foi entregue num envelope. Trata-se de um homem simples e poupado, que fará do dinheiro bom uso.
ResponderEliminarFica aqui, para os meus amigos, a minha homenagem ao General Cadavez. A barreira dos anos não desfez esta amizade mútua entre as nossas famílias.
Porque, como de resto vos disse, é um General com coração de soldado ...
O que os afectos fazem!
ResponderEliminarAi de quem os não tem ou os encobre...
Uma amizade que perdura com raízes no campo da guerra mas se o general é afectuosa Quito tu não ficas atrás,meu bom amigo!
há virgulas que me escapam quando teclo e não só...
EliminarObrigado, Olinda. Não resisti a contar-vos o que se passou naquele dia.De facto Olinda, é de afetos que estamos a falar. O caso do Jesus, é bem o exemplo de como em tempos muito difíceis, se criou entre nós um cimento que colou para sempre todas as peças (os homens) de uma companhia, condenados a viver dois anos, num pequeno quadrado de arame farpado...
EliminarExemplos destes são raros.
ResponderEliminarOs percursos de vida entre as classes sociais são muitas vezes divergentes e levam ao afastamento e, não raro, ao esquecimento como forma de ocultação de um sentimento de culpa, que os de melhor sorte carregam consigo, por pertencerem aos pilares de uma sociedade injusta que permite que aqueles que deram a sua carne, a sua juventude e o seu sacrificio numa guerra que não lhes explicavam, vivam a sua velhice no limiar da pobreza ou mesmo abaixo dele.
Por serem raros, estes exemplos devem ser enaltecidos.
E devemos agradecer a quem, como o Quito, os exalta.
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Lembro-me de um soldado da Conraria, que comigo andou pela Guiné, a viver cheio de dificuldades, que há uns anos me veio contar as razões a sua situação. Tinha trabalhado quase trinta anos numa fábrica dos arredores de Coimbra que por razões económicas tinha suspenso os contratos de trabalho da maioria dos trabalhadores com a promessa de os retomar quando as condições melhorassem.
Informei-me e vim a saber que a suspensão dos contratos não era, como foi dito, com vista à recuperação da empresa, nem tão pouco a um eventual despedimento colectivo com pagamento de indemnizações, mas sim com o fito de levar a empresa à insolvência.
Ou seja, a razão resumia-se a ganhar tempo e a manter os trabalhadores na expectativa ...
Aconselhei-o a recusar a suspensão do contrato e a propor uma rescisão negociada, dado que as perspectivas futuras da empresa eram sombrias..
Acompanhei-o no desenvolvimento das suas diligências e participei com ele na negociação..
Foi o primeiro a fazê-lo e conseguiu um acordo superior aos minimos.
Outros seus colegas seguiram-lhe o exemplo mas já não foram a tempo.
Integram agora a lista de credores da empresa no processo de insolvência,
Não receberão nada, segundo parece.
Porque o Estado, como credor privilegiado, vai esgotar os activos da empresa, para se ressarcir das dividas que esta tem no que respeita a impostos e contribuições não pagas.
Repare-se! O Estado! É assim a lei, é verdade, mas esse Estado é aquele a quem muitos daqueles homens serviram e que foram por ele descartados quando já deles não precisou...
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Desculpa Quito, a extensão do comentário. Mas não resisti a contar esta história a propósito do que escreveste.
Porque o estreitamento de laços naquele ambiente de guerra é para o resto da vida.
Outro amigo cheio de afectos!
EliminarA ilustração do que contas tem essa marca.
Não tens que me pedir desculpa de nada, Rui! Tu, como eu, entendemos bem as dificuldades por que passámos. E tu mesmo, num momento dramático de um soldado que combateu na Guiné, por motivos laborais, não vacilaste em lhe dar a mão. Bem - Hajas.
EliminarA tua última frase do comentário, sintetiza todo um pensamento. Os estreitamento de laços para o resto da vida ...
Que narrativa tão bonita, tão comovente, Quito!
ResponderEliminarE os caminhos que a vida traça designando encontros , desencontros e estórias da vida onde a verdadeira amizade, apesar do tempo e prevalecendo adormecida ao longo dos anos, ressuscita à primeira chamada!?
Só tu meu amigo, com essa tua bondade e esse teu coração de manteiga, me podias envolver nesta demonstração de tão nobre e puro sentimento!
Bem hajas!!!!!
TERESA LOUSADA
Obrigado por te juntares a nós, Teresita. Também tu, és uma pessoa de afetos e por isso muito estimada por todos nós. Abraço ...
EliminarChiça Quito são textos que emocionam mesmo!
ResponderEliminarA guerra como lemos reforça até ao limite a amizade entre todos os combatentes!
Temos este exemplos não só no teu texto, bem como no comentário do Rui Felício!
Um abraço para os dois!
Estou espantado, Rafael !!! Só costumas aparecer às 3 da matina !!!
ResponderEliminarBem ... não fui, não sou, nem nunca serei apologista da guerra. Mas tenho orgulho na minha "família militar". A mobilização que houve no almoço, para o ajudar monetariamente é significativa. E a atitude do General é "5 estrelas". Contou-nos, às gargalhadas, da sua aventura para encontrar o Jesus, perdido no meio da escuridão, num local onde nunca tinha passado ...
Toma lá um abraço
Quito
ResponderEliminarDe facto a tropa também nos deixou boas recordações e amizades que nos marcaram para a vida. O teu artigo e o comentário do Rui Felício, são bem uma prova dessa situação. Pessoas destas vai havendo por este mundo fora mas ao nível de gerenais, poucos lá chegam. No meu tempo tive um muito justo e humano que veio a ser o gerneral de nome Rui Tavares Monteiro e outro que fazia bem compreender as suas posições, não guardava rancor nenhum e era um simplista, Diogo Neto. Foi derivado a ele que fiquei a gostar do fado de Lisboa. Noites bem passadas. Era tão simples que a última vez que estive com ele, ia eu no metro em Lisboa encostado a uma coluna e a um dado momento a pessoa que entrou e se encostou à mesma coluna ... reconhecemo-nos.
-Então Sr......
-Tchiiiiiiiiiiiiu
-Lá continuei a falar com ele sem dizer nomes nem patentes, quando naquela altura os colegas se passeavam de carro com motorista e alguns até com guarda pessoal. Um Homem que não abandonava as suas raízez.
São os bons momentos para a vida e as amizades que ficaram a todos os níveis mesmo que nunca mais os tenha visto. Sei que continuam meus amigos e é desta faceta desses tempos que gosto de ir lembrando. Bem hajas.
Chico
ResponderEliminarNo nosso caso, a amizade e o contacto prolongou-se para lá da guerra. E já lá vão 42 anos. Nas épocas festivas telefonamos uns aos outros e, para além do almoço anual, há um grupo de 8 ou 9 com as respetivas mulheres, que nos juntamos em Trás-os-Montes, no solar que um dos nossos reconstruiu com os materiais originais e que data do Sec XV.E o Cadavez lá comparece, sempre, como polo aglutinador disto tudo. É, para mim, dos melhores momentos do ano, os que passamos em Trás - os - Montes. Mas já não falamos da guerra. É passado. Apenas confraternizamos e corremos atrás de um galo lá pela quinta, para o comermos de cabidela, acompanhado de vinho do Dão.
Abraço
O Quito fez-me juntar naquele abraço de lágrimas, entre o Jesus e o Cadavez!
ResponderEliminarForça amigo, continua a fazer-nos vibrar com os relatos das tuas vivências, assim, em primeira mão, e bem lá do fundo do teu coração de "manteiga".
Amiga Celeste Maria
ResponderEliminarCoração de "manteiga" é o Cadavez, que não consegue fazer um discurso ao grupo que não se emocione ...
Abraço
E eu chorei também.É assim que sei expressar os meus afectos. E, não tendo amizades da tropa,saber que te tenho como amigo emociona-me.
ResponderEliminarAos dois, a ti e ao Felicio,não preciso de dizer o afecto que vos dedico. E o Chico Torreira, muito tenho gostado de o ler. Um abraço ao trio (que nem conheço) do Canadá.
Os vossos relatos são lidos com entusiasmo
Amiga Ló
EliminarNão transportes para mim, aquilo que é essencial. E essencial é a atitude de um Homem que vive de afetos. Para mim é irrelevante que seja General. Mas sim a sua atitude ao ir procurar um simples e pobre ex -militar, a quem a vida não sorriu. Já agora, como complemento a esta história, dizer que o Jesus tem uma filha casada, que vive relativamente próxima dele e que o vai ajudando nas necessidades mais básicas, como é o caso, por exemplo, de lhe lavar a roupa e em alguns fins de semana o levar para sua casa. Do mal o menos ...
Um abraço
Ló
EliminarObrigado pelo comentário. Notei que não me conheces hoje em dia, o que aconteceu muitas vezes neste blogue comigo em relação a outros. Lembro-me de muitas pessoas pela cara da mãe ou do pai, pois eram muito mais velhos que eu e na minha mente não sofreram alterações. Mas há mesmo muitos/as parecidos/as com os pais.
Um abraço
Quito, desculpa não concordar contigo! Mas não considero o General um coração de manteiga! Considero-o um HOMEM com dignidade, sentimentos, sem falsidades nem soberbas! Enfim, um HOMEM que merece ser GENERAL e sabe sê-lo!
ResponderEliminarAdorei o texto e Fiquei a admirar o Cadavez.
Verdade o que dizes, Alfredo. Não é normal, quarenta anos depois, que um General ande, de noite, à procura de um ex-soldado. A patente militar é irrelevante. Para mim é a atitude que conta ...
EliminarAbraço
Adorei o texto e a amizade é sempre amizade. Vai para 3 semanas que reatei com um amigo que não o via ia para 43 anos, um acaso descobri-lo no USA(Nova York: Andei estes anos a esgravatar pela Figueira e desisti quando me disseram que não estava no país desde a falência da Fábrica Sidney. Quaze todas as noites estou no skipe com ele.
ResponderEliminarAquilo que recordas no texto e o que me aconteceu são momentos únicos.
Um abraço
Fernando AZENHA
Caro amigo Quito! A amizade em "tempos de guerra"... Fica para a vida...é fraterna !!! Nós os que lá andámos temos histórias bonitas e comoventes, com as que nos relatas! O General Cadavez (Cavalaria) era Tenente na EPC em Santarém em 1969!!! Tive o prazer de o conhecer, qd numa noite, como Oficial de Dia...conversámos durante umas horas...com o também Tenente (ou Alferes Mil°) Salgueiro Maia.
ResponderEliminarE claro que tínhamos uma paixão comum....cavalos!!! Grande abraço. 25 de Abril sempre!!!
É certo aquilo que dizes, caro amigo. Em Estremoz muita vez o vi montar no picadeiro. Estavamos a formar batalhão para ir para a Guiné. O General Cadavez, vive agora no Ribatejo e passou à reserva, embora ele, como cidadão e pelas suas atitudes, continue a pertencer à equipa principal ...
EliminarAbraço
Azenha
ResponderEliminarPois continua a celebrar a amizade. Tem piada teres conseguido esse contacto ...
Abraço
Meu caro Quito, como sabes "escapei" à guerra e por isso não me sinto com a suficiente força moral para avaliar quem foi obrigado a vivê-la.
ResponderEliminar" Exemplos destes são raros" diz o Rui Felício e ele, sim, sabe do que fala. O enquadramento social de que fala é soberbo!
Um abraço a ambos.
Realmente, meu caro Viana, são raros. Porém, andam aí por esse Portugal fora, muitos heróis anónimos, fazendo, em silêncio, pelos outros, aquilo que muitos, com grande "altruísmo", gostam de ver publicado nos jornais, para colher dividendos próprios. Não é novidade para ninguém !!!
ResponderEliminarUm abraço